terça-feira, 6 de dezembro de 2011

RICH - UM LOBINHO INESQUECÍVEL E SUA FANTÁSTICA VIAGEM AO MUNDO ENCANTADO DA JÂNGAL


RICK – UM LOBINHO INESQUECÍVEL E SUA FANTÁSTICA VIAGEM AO MUNDO ENCANTADO DA JÂNGAL

- Porque não morri nas garras dos dholes, gemeu Mowgly. Minha força esvaiu-se e não foi veneno. Dia e noite ouço um passo duplo no meu caminho. Quando volto à cabeça sinto que alguém se esconde atrás de mim. Procuro por toda parte atrás dos troncos, atrás das pedras, e não encontro ninguém. Chamo e não tenho resposta, mas sinto que alguém me ouve e se guarda de responder.
Se me deito, não consigo descanso. Corria a corrida da primavera e não sosseguei. Banho-me e não me refresco. O caçar enfada-me. A flor vermelha está a ferver em meu sangue. Meus ossos viraram água. Não sei o que...
- Para que falar? Observou Baloo. Akelá disse que Mowgly levaria Mowgly para a alcatéia dos homens outra vez. Também eu o disse, mas que ouve Baloo? Bagheera, onde está Bagheera? Esta noite se foi? Ela também sabe disso, é da lei.
- Quando nos encontramos nas Tocas Frias, homenzinho, eu já o sabia acrescentou Kaa. Homem vai para homens, embora a Jângal não o expulse.
- A Jângal não me expulsa, então? Sussurrou Mowgly.
- Os irmãos Gris e os outros três uivaram furiosamente: - Enquanto vivermos ninguém, ninguém ousará...

                          Se me lembro bem, foi em um sábado, numa tarde de setembro. Estava com 26 anos quando conheci o Rick. Participava como assistente da Tropa Escoteira e pouco tinha contato com os lobinhos. Mas Rich me chamou a atenção pelo seu porte, estilo, maneiras, diferente de todos os meninos que “zanzavam” na sede em busca de sonhos, da mística, de alegrias e companheirismo. Rich era negro. Possuía olhos enormes, castanhos, um corpo desenvolvido para a sua idade e um porte altivo que chamava atenção quando alguém o conhecia pela primeira vez.
Em pouco tempo, passou a ser admirado e todos se questionavam como ele seria no Colégio e em casa de seus pais. Vários meses se passaram para que tomassem conhecimento das varias facetas que era possuído. Seus pais eram presentes quando convidados para alguma atividade na sede, mas sem assumirem nenhuma função. Não iam levá-lo e buscá-lo aos sábados nas reuniões. Ele vinha e ia só para sua casa. Era um jovem auto-suficiente e a família acreditava nele.
                       Lembro-me bem quando foi admitido. Estava na sala do Diretor Técnico quando seus pais vieram para fazer a inscrição. Rich era de família simples, sua mãe mulata, também com um porte altivo e extremamente educada. Seu pai era Mestre de Obras e trabalhava de sol a sol, muitas vezes aos sábados e domingos. O convite para a vinda de Rich partiu da Akelá que o conhecia no Colégio onde ele estudava. Seus pais ficaram em dúvida em matriculá-lo ou não. A fisionomia de Rich nada dizia. Não dava para saber se estava alegre com o fato. Nosso Diretor Técnico tinha uma fleuma e uma calma que faziam com que todos a primeira vista simpatizasse com ele. Os pais de Rich se sentiram bem ali.
                      Como acontece em toda Alcatéia, os lobinhos o receberam bem. É uma idade em que as fantasias e os folguedos superam tudo que nós adultos não temos e entre eles não a ódio, inveja, rancor, orgulho, vaidade, nada. São amigos e isto enobrece a casta dos lobos da Alcatéia de Seeonee. No primeiro dia Rich conheceu a Gruta da Alcatéia. Disseram que era ali onde morava Mowgly, ele observou que a entrada era baixa e os chefes tinham que se abaixar para entrar. Notou também que tinha uma linda decoração, desenhos de animais da floresta, de Balú, de Bagheera e muitos outros.
                      Assustou-se com o Bastão Totem, mas lhe explicaram o que significava. Durante a reunião aprendeu o que era a Roca do Conselho, assistiu sem participar do Grande Uivo. A Akelá explicou que quando fizesse a promessa ele teria a honra de se reunir com todos e participar com alegria. Não entendeu muito. Eram muitas informações para digerir em um só dia e ele não guardava tudo.
                    Mas logo se assimilou e em pouco tempo fez a promessa. A princípio não observaram que ele era calado, taciturno e nada dizia para demonstrar se estava ou não gostando de seus novos amigos. Participava dos jogos, das canções das danças (ele achava esquisito) e obedecia como poucos o que o primo de sua matilha vermelha dizia quando formada.
                   No primeiro acantonamento da Alcatéia, pela primeira vez ele esboçou um sorriso, mas logo se fechou de novo dentro do ônibus. Não disse adeus para seus pais e nem olhou pela janela durante a viagem. À tarde, após o almoço, alguns lobinhos brincavam em um pequeno gramado e ele se afastou. Sentou-se embaixo de uma árvore frondosa e ali ficou com os olhos semicerrados. Um lobinho de sua matilha foi chamá-lo e estranhou o que ele dizia. Chamou o Balú que junto com a Bagheera viram que ele balançava a cabeça e dizia como se recitasse trechos do Livro da Jângal –:
                   - Não me temam, disse Mowgly, eu sou amigo de vocês. Quando estive com Bagheera na encosta do morro frente à Waiganga, fim de inverno vi um vale semi-deserto. Vi um pássaro cantando notas incertas tentando aprender para quando viesse a primavera. Bagheera lembrou que o tempo das Falas Novas está próximo e disse que precisava recordar o seu canto e se pôs a ronronar. Mowgly adorava as mudanças das estações. Ficava triste, porém porque os outros corriam para longe o deixando sozinho.
                    - Toda a Alcatéia deixou o que fazia se aproximou de Rich. Sentaram em volta e se encantaram com sua historia. Ele mexia com a cabeça para frente e para trás, com os olhos fechados contando de uma maneira tão bondosa tão simples, que o melhor contador de historia teria ali um professor. Ninguém dizia uma só palavra. Tentavam ouvir tudo que ele dizia. – Continuou Rick - Senhor da Jângal, sabe que tenho que viver sozinho – disse Bagheera olhando para Mowgly. Sabe que é na primavera que vou para todos os lugares, fazer coro com os outros animais, onde posso correr até o anoitecer e voltar ao amanhecer. – Sabe que é o tempo das Falas Novas, e eu faço parte de tudo.
                    - Mowgly sabia que naqueles tempos, via-os rosnando, uivando, gritando, piando, silvando e eram tão diferentes! Uma sensação de pura infelicidade o invadiu da cabeça aos pés. Mas se arrependeu. Tratei mal a Bagheera e aos outros. Esta noite cruzarei as montanhas, e darei também uma corrida em plena primavera até os pantanais. Todos já haviam partido. Só Mowgly ficou. Saiu sozinho aborrecido. Correu naquela noite, às vezes gritando, às vezes cantando. Correu até que o cheiro das flores no pantanal ao longe chegou a suas narinas. Avistou uma estrela bem baixa e lembrou-se do touro que lhe deu a Flor Vermelha.
                       Akelá estava perplexa, todos estavam. Mas continuaram ali, hipnotizados pelo conto de Rich, feito de maneira tão gentil, intenso e brilhante que ninguém queria sair. Akelá reviu o programa mentalmente, era hora de um passeio no bosque, onde contaria também uma historia. Mas não disse nada. Viu que sua alcatéia estava ali, quieta, ouvindo, sem dar um pio, e deixou que Rich continuasse. Era um novo item ao programa.
                     - Rich ainda narrando de maneira harmoniosa como se fosse um grande contador de historia, continuou – Mowgly lembrava quando se mudou da Alcatéia de Seeonee. É hora de parar de correr. Ele viu uma pequena cabana onde via uma luz. Cães latiram. Ele emitiu um profundo uivo de lobo, que fez os cães calarem e tremerem. Escondido nos arbustos Mowgly também tremeu. Por outro motivo. Conhecia aquela voz. Entendeu o que ela dizia. Lembrava bem. Quem está aí? Quem está aí? Mogly gritou baixinho: - Messua! Messua! – Quem chama? Respondeu a mulher com voz trêmula. – Nathoo! Respondeu Mowgly. – Vem meu filho. Ela se lembrou. O acolheu, deu-lhe de beber e comer. Cansado Mowgly deitou-se e dormiu sono profundo. 
                   Rich continuava. Todos olhando dentro de seus olhos, prestando atenção a tudo que dizia – Mowgly acordou e ouviu o irmão Gris chamando-o lá fora. Messua olhou para ele. Era um Deus da Jângal, reconheceu. Quando o viu sair abraçou-o. Volte sempre disse. A garganta de Mowgly apertou-se. Disse quase chorando – Voltarei – sim voltarei. Ele gritou com lobo Gris – porque não vieste quando o chamei? – Não foi tanto tempo assim, ainda ontem estávamos junto respondeu. Você sabe, o tempo das Falas Novas chegou não te lembras?
                    - Irmãozinho, que aconteceu? Porque estás comendo e dormindo na Alcatéia dos Homens? – Se tivesse vindo quando o chamei isto não teria acontecido. – disse Mowgly - E agora como será? Perguntou o lobo Gris – Ele ia responder quando viu uma mocinha trajada de branco em direção a alcatéia dos homens. Mowgly a seguiu com os olhos até ela ser perder ao longe. E agora? Perguntou de novo o Lobo Gris. Agora não sei... Respondeu suspirando. Lobo Gris calou-se. Mowgly também. Quando abriu a boca foi para dizer a si próprio: - A Pantera Negra falou a verdade. Disse que o homem sempre volta para o homem.
                       - Raksha, nossa mãe também disse. E Akelá na noite do ataque dos Dholes, e também Kaa, a serpente da rocha. - completou Mowgly. E tu irmão Gris, que disse tu? – Eles te expulsaram uma vez. Disse o Lobo Gris. Eles queriam te lançar na flor vermelha. Mandaram Buldeu te matar. São maus, insensatos. Foste admitido na Jângal por causa deles. - Para! Que estás dizendo? - - Lobo Gris respondeu - Filhote de homem, senhor da Jângal, filho de Raksha, meu irmão de caverna – O teu caminho é o meu caminho. A tua caça é a minha caça e tua luta de morte é a minha luta de morte.
                       Mowgly já tinha resolvido o que fazer. – Vá, disse – Reúne o Conselho na Aroca, irei dizer a todos o que tenho no meu coração.   
Em qualquer outra estação aquela novidade teria reunido na Roca o povo inteiro do Jângal; - Lobo Gris saiu pelas planícies chamando a todos. O Senhor da Jângal volta para os homens. Vamos à Roca do Conselho. Todos respondiam – Só no verão, venha você e ele cantar conosco! – Quando Mowgly chegou a Roca, encontrou apenas lobos irmãos. Baloo que estava quase cego e a pesada Kaa. – Termina aqui o teu caminho, homenzinho? Disse Kaa – Grita o teu grito! Somos do mesmo sangue, eu e tu, homens e serpentes!
                      Rich parou. Sua cabeça ficou firme. Levantou, olhou para todos e saiu rumo à sede onde estavam acantonados. Não disse nada. Todos suspiraram. Esperavam o fim da historia. Era conhecida. A Embriagues da Primavera sempre era contada por Bagheera. Mas não da maneira que Rich contava. Foi um acantonamento marcante. Rich não contou mais historias. Voltou como era e sempre foi. Calado, taciturno.
                     Um dia, Rich deixou sua matilha e foi sentar no primeiro degrau da escada que levava a biblioteca. Surpreendentemente começou a cantar musicas de um vasto repertório de Cantos Gregorianos (canto gregoriano é um gênero de música vocal monofônica, monódica (só uma melodia), não acompanhada, ou acompanhada apenas pela repetição da voz principal com o organum, com o ritmo livre e não medido, utilizada pelo ritual da liturgia católica romana). Todos pararam. Sua voz retumbava em todo o pátio onde se realizava a reunião.
                    Começou baixinho interpretando o “Veni Sancte Spiritus”, depois mais alto o “Lauda, Sion”, continuou com “Ave, Maria... et benedictus” e por fim, “Alleluia, psallite”. Claro, ninguém conhecia tais cânticos, mas eu, que estava participando de uma base onde as patrulhas se adestravam em diversas etapas, fiquei estático com aquele cântico tão bem interpretado por Rich. Conhecia todos eles. Sua voz, linda, maravilhosa, um verdadeiro Castrato, ou talvez um soprano, ou um mezo-soprano. Se ele fosse uma lobinha diria que era uma Contralto.
                   Todo o Grupo Escoteiro parou suas atividades. Ficaram todos ali, embasbacados e os que chegavam não acreditavam no que viam ou ouviam. Rich não precisava de acompanhamento, uma orquestra. Durante mais de uma hora, Rich cantou maravilhando a todos. Não perguntou se podia, se aquela era à hora. Decidiu por si só. Sua mente mandou que ele cantasse. Não era para se exibir para os ouvintes ali sentados no chão. Olhavam maravilhados aquele lobinho de uniforme azul, com seu Boné azul, seu lenço verde e amarelo, sorrindo para todos. Era a primeira vez que sorria. Isto foi surpreendente.
                    Nunca em tempo algum a Alcatéia tinha passado por tal situação. Todos, da Akelá ao Diretor Técnico estavam fascinados por aquele lobinho. Foram surpreendidos, pois nunca esperavam que isto pudesse acontecer com eles. Rich não ligava e não atendia quando o pediam para contar historias ou cantar. Isto vinha naturalmente. Continuou na Alcatéia por muitos anos, foi Lobinho Cruzeiro do Sul. Diversas outras vezes Rich contou historias e cantou. Espontaneamente. Quando isto acontecia, todos acorriam. Dos lobos aos pioneiros. Ficavam ali, sentados, maravilhados com sua voz, sua maneira calma de contador de historia ou de grande cantor que era. Soubemos depois que fazia isto em casa, mas não freqüente.
                   Passou para a tropa de Escoteiros em fins de novembro. Eu estava lá na sua passagem. Tive a honra de orientá-lo na sua Trilha Escoteira.                    Rich ficou por pouco tempo na tropa. Seu pai foi transferido para outro estado pela empresa que trabalhava e Rich foi junto. Todo o Grupo Escoteiro se reuniu na partida de Rich. Durante a cerimônia de Bandeira estavam reunidos. Seus pais foram convidados e estavam lá. Os agradecimentos, os apertos de mão, as palmas escoteiras, o Bravoô, nada fez com que Rich demonstrasse algum sentimento de saudades. Não era próprio dele. Estava taciturno, silencioso. O Diretor Técnico tomou a posição no centro para dar o “debandar”.
                 Surpresa! De novo para espanto de todos, Rich no local que estava, com aquela voz maravilhosa, entoou divinamente a Canção da Despedida. Não houve acompanhamento, todos ficaram em silêncio. Aquele momento era dele. Só ele sabia a importância daquela canção. Não fizeram a Cadeia da Fraternidade, as mãos não foram entrelaçadas, mas ali, naquele momento sublime era como se todos os lobinhos e os escoteiros de todo o mundo, estivessem junto a Rich, dizendo que não era mais que um até logo. No final desejamos a ele tudo de bom que o mundo poderia oferecer. Foi um acontecimento notável e inesquecível.
                Por muitos e muitos anos ninguém nunca mais ouviu falar nele. Não deu notícias. Era próprio dele. Todos que tiveram a honra de conhecê-lo não reclamavam. Ele marcou no coração dos lobinhos daquela época. Seu nome é lembrado até hoje na Alcatéia. Seus feitos ali são contados para os noviços e alguns deles até acrescidos de outras historias que não aconteceram. A Alcatéia o homenageou colocando sua foto em destaque na Gruta da Alcatéia. Ficou ao lado de tantos outros famosos como Balú, Bagheera, Kaa...
               Pelos motivos que o destino nos reserva a qualquer tempo, ganhei dois ingressos para assistir a ópera O Elixir do Amor “Una Furtiva Lagrima” no Teatro Municipal. Fui com minha esposa e ali estava nada mais nada menos que um grande Tenor famoso e que eu nunca poderia imaginar quem seria. Surpresa. Rich, agora com o nome de Boono Lastimer, 31 anos. Interpretou com tanto sentimento que apesar de não conhecer Enrico Caruso, o mais famoso interprete desta opera, Rich nada ficou a dever, foi aplaudido de pé, por mais de 10 minutos.
              Tentei me aproximar de seu camarim. Impossível. Ele não reconheceu meu nome. Claro, nossa intimidade escoteira foi por pouco tempo. Acompanhei por muitos anos a carreira de Rich. Foi convidado a cantar no Teatro La Scala de Milão na Itália e por lá ficou por vários anos. Soube que a sua turnê pela Europa e America fizeram retumbante sucesso.
                Quem diria que aqueles da época puderam ouvir Rich, o grande tenor que hoje é o orgulho de todos os lobinhos e escoteiros do nosso querido Grupo Escoteiro. Fatos e acontecimentos são importantes. Eles nos trazem a vida real, nos marcam e fazem de nós o que somos. De volta ao presente, caminhamos com o passado pensando no futuro. Nunca me esqueci de Rich. Quando penso nele me lembro das palavras de Kaa que na sua nobreza de serpente sempre disse – Somos do mesmo sangue, tu e eu! 

E quem quiser que conte outra...

Lembra-te que Bagheera te ama, disse ela por fim, retirando-se num salto. No sopé da colina entreparou e gritou: Boas caçadas em teu novo caminho, senhor da Jângal! Lembra-te sempre que Bagheera te ama. Tu a ouviste murmurou Baloo. Nada mais há a dizer. Vai agora, mas antes vem a mim. Vem a mim, ó sábia rãnzinha!
- É difícil arrancar a pele, murmurou Kaa, enquanto Mowgly rompia em soluços com a cabeça junto ao coração do urso cego, que tentava lamber-lhe os pés.
- As estrelas desmaiam, concluiu o lobo Gris, de olhos erguidos para o céu. Onde me aninharei doravante? Por agora os caminhos são novos...


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Era uma vez... Em uma montanha bem perto do céu...

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