segunda-feira, 30 de julho de 2012

O cidadão Leo. Um comissário Distrital esquecido.



"A menos que seu coração, sua alma, e todo seu ser estejam atrás de toda decisão que você toma, as palavras de sua boca estarão vazias, e cada ação será sem sentido. Verdade e confiança são as raízes de felicidade."

O cidadão Leo. Um comissário Distrital esquecido.

(esta é uma história de ficção. Qualquer semelhança com fatos, pessoas vivas ou mortas é mera coincidência).

                                        Nem sempre a história é fiel aos fatos. Ela pode ser contada de diversas formas. Claro, dependendo de quem vai narrar ou escrever a história pode ser mudada. Afinal o que é a verdade? Dizem que o começo da sabedoria é encontrado na dúvida. Duvidando começamos a questionar, e procurando podemos achar a verdade. Pablo Neruda em sua suprema sabedoria dizia que a verdade é que não há verdade. Não sei se concordo. Refiro-me ao chefe Leo. Era o comissário do Sexto Distrito Escoteiro. Mais de quarenta anos como distrital. Estava se tornando uma lenda até que o destituíram do cargo. Por quê? Isto me intrigou e muito. Não tinha muito conhecimento dele, afinal o vi algumas vezes aqui e ali. Melhor dizer que não éramos grandes amigos. Respeito sim, afinal via nele uma autoridade Escoteira com altos conhecimentos.
             O escotismo tem uma filosofia de vida que encanta. Ele nos vende uma premissa que ali reina o companheirismo a felicidade e o amor eterno. Nem tanto. Como em todas as instituições e organizações eu sabia que a inveja, a soberba e o orgulho eram um fato e que ninguém podia duvidar. Podíamos dizer que isto era um mal menor comparado às vantagens de toda uma lei, uma promessa, um método capaz de transformar não só os jovens, mas também os adultos em uma pessoa ética, honrada, capaz de dar sem procurar receber.
             Quando soube de sua exoneração e os motivos eu fiquei preocupado. Tinha de me inteirar dos fatos e não dos boatos. Fui procurá-lo pessoalmente e fui recebido como se fosse um "Velho" companheiro de armas. Durante nossa conversa tentei saber o porquê de sua saída. Nada me disse a não ser frases já decoradas – O Chefe Joe era um gentleman, em tempo algum condenou alguém. Simplesmente disse que tinha chegado sua hora, sangue novo, o escotismo agora é outro. E assim por diante. Mostrou-me uma medalha que lhe deram. Não vi brilhos em seus olhos. O que significava tudo aquilo? Um homem que dedicou a vida pelo escotismo agora uma medalha e o ostracismo? Não vi nele sinal de velhice apesar dos seus sessenta e cinco anos. Parecia ainda estar no vigor da juventude. E um conhecimento Escoteiro que qualquer um saberia admirar.
          Tinha que haver alguma coisa. Eu não sou tão antigo no Movimento Escoteiro, mas com meus doze anos de atividade eu tinha visto coisas que pensei nunca iria ver no escotismo. Não se manda um homem como ele para o olho da rua sem ter um motivo forte. Quarenta anos são quarenta anos. Nada melhor que fazer um périplo pelo seu distrito. Cutucar aqui e ali, sondar um e outro e a verdade iria aparecer? Desculpem não me apresentei. Meu nome é Lauro Santana, Sou um simples Chefe Escoteiro e nas horas vagas sou metido a escritor. E quem sabe ali surgiria uma boa história para contar e publicar? Durante quatro meses visitei os cinco grupos que compunham o sexto Distrito Escoteiro. Grupos bons, alegres, fortes e poucos com menos de cinco anos de atividade. Quem os visse a primeira vista diria que nada havia de errado. Do Chefe Leo falavam maravilhas. Mas para dizer a verdade, não sei se a verdade era dita de forma sincera. Claro, não sou psicólogo, e nem tenho o dom de fazer uma autoanálise nas palavras de cada um. Mas por trás daquela fachada descobri que existia uma certa animosidade por um ou outro, falta de sinceridade quando as pessoas estão dialogando entre si.
           Aos poucos a verdade começou a vir à tona. Devagar, calmamente um e outro Chefe fazia pequenos comentários que juntando as peças me mostrou até que ponto as pessoas são em seu âmago e lá no seu interior não são aquelas que mostram ser. O começo de tudo foi um buchicho que nunca se mostrou real e teve muitos que cortaram logo o mal pela raiz. Não aceitaram acusações sem provas e o que diziam era totalmente descabido. Mas quem começou? Uns disseram que foi do Grupo Ventos do Deserto, outros do Grupo Montanha Azul. Não importava. Um nome surgia e logo vi que o novo distrital era o protagonista de tudo. Seu nome? Renildo Marion Silva Bueno. Pouco mais de cinco anos de escotismo já havia conseguido a insígnia de madeira. Um sonhador a altos cargos no escotismo.
           Ele ainda participava do seu grupo. Alto, forte, bonachão, aquele sorriso que encanta, mas que nem sempre mostra ser real. Abraçou-me com força, um aperto de mão tão forte que doeu. Levou-me a apresentar a todos do grupo e vi que muitos não o olhavam nos olhos. Nas entrelinhas vi que não gostavam dele. Eu achei o mesmo. Muito falastrão. Abraços exagerados e sempre a dizer meu grupo, meus chefes, meus escoteiros meu distrito. O dono de tudo. A seu modo me contou o porquê da saída do Chefe Leo. Ele estava cansado. Já não acompanhava os grupos e além dos cinco nenhum novo grupo surgira na área. Falou e falou. Eu só escutei e não gostei de nada. Mas infelizmente não era minha seara. Dizem que quem pariu Mateus que o embale.
          Resolvi procurar o Comissário Regional. Não o conhecia. Não me recebeu bem. Não sei por que uma certa antipatia entre nós. E dizem que somos um movimento fraterno. Os defeitos adquiridos como adultos não mudam. Perguntou de maneira galhofa qual o meu interesse. Expliquei. Não gostou. Disse que eu não teria “ordens” da UEB para publicar. Não disse nada. Com ou sem ordens eu publicaria o que quisesse. Interessante os adultos no escotismo. Não existem salários existem sim sorrisos, uma linda lei e uma filosofia que devia bastar para que eles fossem mais humanos, mais fraternos e sentissem que não são tudo o que querem ser. Refiro-me aos que lutam para alcançar posições dentro da hierarquia Escoteira. Nada com outros milhares que estão ali para ajudar. Dizem que os homens se tornam arrogantes com o sucesso e têm o mau hábito de odiarem aqueles a quem ofenderam.
           Vi muito isto no Movimento Escoteiro. Ainda bem que eu ria da ignorância explicita daqueles que pensam saber tudo. A arrogância dos espertalhões é especialmente ridícula. Mas não fui ali para analisar o Regional. Não. Queria dados e vi que ele não diria nada. Só disse que foi assunto discutido na Comissão de Ética e esta tinha resolvido exonerar o Comissário Joe. Pedi se podia ver a ata e ele riu na minha cara. Ata? Não sabe que é confidencial? Como você vai ler se nem ele ficou sabendo do seu julgamento? Melhor não dizer mais nada. Julgamento a revelia. Sem direito de defesa e sem a presença do acusado. Ban! Falar o que? O homem a minha frente era outro que tinha o dom de ser o dono de tudo. Ao sair uma mocinha de uns vinte e dois anos me fez um sinal e me passou um bilhete. Pediu-me para encontrá-la as cinco no barzinho em frente ao prédio do Escritório Regional.
            Simpática me contou o que sabia. Um Chefe chamado Renildo (o novo distrital) foi quem fez um ofício acusando o Chefe Joe de homossexual. Acrescentou também que poderia ser um pedófilo. Caramba! Que acusação tremenda! E o pior ele nem sabia disto. O julgaram e não teve nenhuma chance de defesa. Que base eu perguntei? Ela não soube responder. Agradeci, disse a ela que ficasse tranquila. Não diria uma palavra que ela tinha me contado. Voltei a minha cidade e aos meus afazeres profissionais. Mas não me dava como satisfeito com o desfecho. Tinha de descobrir a verdade. Que vantagem têm os mentirosos? A de não serem acreditados quando dizem a verdade. E ali tinha muitas mentiras. Procurei um vizinho do Chefe Leo que era amigo de infância. Ele me disse que um homem morou por seis meses com o Chefe Leo. Ele nunca disse quem era. Nunca contou nada. Assim como chegou desapareceu. Eu sabia que o Chefe Leo era viúvo e não tinha filhos. Fiquei intrigado.
            Como descobrir quem era este homem? O Chefe Leo nunca me diria. Na vizinhança ninguém sabia. Mas alguém sabia. Este alguém nada mais nada menos que a empregada que fazia limpeza na casa do Chefe Leo. Não a procurei na primeira semana. Não foi fácil descobrir onde ela morava. – Eis sua história: - Um filho do Chefe Leo. Não da sua esposa falecida, mas de alguém que conheceu no passado. Ele estava sendo procurado pela polícia por roubo, mas tinha jurado inocência. O Chefe Leo não sabia o que fazer. Manteve-o escondido por seis meses em sua casa. Não o deixava sair. Depois a policia descobriu o verdadeiro ladrão do banco. Não era ele. Como já tinha passagem pela polícia não conseguia emprego. Um belo dia sumiu. Chefe Leo ficou desesperado. Seus olhos sempre vermelhos. Os amigos escoteiros não entenderam. Acharam que ele estava apaixonado pelo homem estranho na sua casa.
           A verdade finalmente veio à tona. Lembrei-me das palavras de Santo Agostinho. – Factum audivimus, mysteria requiramus. (ouvimos o fato, busquemos o significado oculto). Pensei comigo e disse para mim mesmo – Vivemos num mundo tão falso, que a verdade virou sinônimo de mentira. O Chefe Joe aceitou todas as acusações calado. Nunca em tempo algum reclamou ou tentou-se explicar ou defender-se. Talvez porque não deram chance a ele. Nunca o procuraram e não deram condições para sua defesa. Mas será que ele se defenderia? Sei que a maioria dos escotistas não sabiam de nada. A preocupação sempre é a de que os jovens tem prioridades. Mas um Comissário que se impôs que se auto delegou dono da verdade e tomou atitudes não condizentes a lei Escoteira não pode ser aceita de mão beijada.
         Procurei o Chefe Joe. Eu não iria calar. Contei para ele tudo que sabia. Seus olhos encheram-se de lágrimas. Lembrei-me do que dizia a Bíblia em um dos dez mandamentos – Não levantar falso testemunho. Em Salmos 51.6 estava escrito “Eis que desejas que a verdade esteja no íntimo, faze-me, pois, conhecer a sabedoria no secreto da minha alma”. Chefe Joe não disse nada. Calado me ouviu calado ficou. Ele sabia que a desonestidade de alguns causa dor e dura tanto quanto uma ferida física. Em Provérbios 25:18 “Malho, e espada, e flecha aguda é o homem que levanta falso testemunho contra o seu próximo.”.
        Mas não julguemos, pois quem julga um dia poderá ser julgado. O escotismo é lindo e simplesmente maravilhoso. Que os tolos e aqueles que se julgam donos da verdade um dia se arrependerão. O bom dele, é que tem chefes que se sentem bem, estão sorrindo sempre e acreditam na sua força para mudar os princípios educacionais e morais dos jovens. Chefe Leo era um Escoteiro de fato. Aqueles que o tiraram do cargo e aqueles que decidiram pela saída dele, não tinham o mínimo de espírito Escoteiro que ele tinha. Mas a história estava feita. Não havia como voltar atrás. Eu não concordava muito. Fiquei entre publicar a história e dizer a verdade, verdade quem sabe minha e não a dos outros.
          Olhei para o Chefe Leo e vi em minha frente um grande homem. Talvez um dos maiores escoteiros que tinha conhecido. Maior que o novo Distrital que era pequeno diante da sua honradez, maior que o regional que se achava o dono da verdade e maior que aqueles que o julgaram, pois em tempo algum procuraram saber a verdade e confiaram na palavra de pessoas que não mereciam confiança. Dei nele um abraço. Apertado. Fiquei ali dizendo baixinho que o admirava mais que tudo. Disse a ele mais – Chefe Leo, homem de verdade é difícil de encontrar, o senhor para mim é um deles. Um dos poucos que conheci. Aceite meus parabéns e me tenha como seu amigo para sempre!
             Voltei em sua casa diversas vezes. Em tempo algum ele mostrou animosidade, rancor ou hostilidade com os que o julgaram. Não disse em voltar, achou que seu caminho não tinha mais volta. Ele sabia que a verdade sempre aparece. Ela emancipa a alma e a completa. Ele tinha a certeza que a verdade e a luz se expande sempre. Ele não tinha dúvidas que a oração aproxima o homem e a caridade propicia a vivência com ela. Chefe Leo, homem humilde, aquele que tem dentro do coração a fé e nos seus sentimentos acredita que a verdade em tempo algum será esquecida. Lembrei-me de Mário Quintana que disse – O segredo é não correr atrás das borboletas. É cuidar do jardim para que elas venham até você. E completando o Chefe Leo – Perdoar é bom, mas o melhor é esquecer!

--"É necessário abrir os olhos e perceber que as coisas boas 
estão dentro de nós, onde os sentimentos não precisam de 
motivos, nem os desejos de razão. O importante é aproveitar 
o momento e aprender sua duração, pois a vida está nos olhos 
de quem sabe ver".



sábado, 28 de julho de 2012

Impisa – “O lobo que nunca dorme!”.


“O teu filho te vê como herói, não te transforme em tirano aos olhos dele.”
“Plutarco”

Impisa – “O lobo que nunca dorme!”.

              Claro que Gegê não era um intrépido. Nem tão pouco valente. Mas tinha lido tantas historias de Baden Powell (BP) que ele pensou que poderia ser um assim. Bem hoje outra época, não existe mais uma tribo dos Ashantís para lutar, e Mafeking hoje é uma cidade pacificada. Pena que ele não pudesse voltar no tempo na guerra do Transwall. Se pudesse! Mas quem sabe ele conseguiria algumas aventuras na sua cidade?
            Gegê tinha treze anos. Um menino cheio de ideais. Um Escoteiro sonhador. Em sua Patrulha todos achavam graça dele. Seu Monitor sabia que sua mente fervilhava. Ele não sonhava como Dibs, o menino em busca de sí mesmo ou como nas Aventuras de Tom Sawyer “O que um menino faz num sonho não faz também quando acordado?”. Dizem que todo menino normal (parodiando Mark Twain) tem hora que surge um desejo furioso de ir a algum lugar e descobrir um tesouro enterrado. Gegê era assim. Um sonhador!
             Gegê não saia à noite. Sempre ia para a varanda de sua casa e ali devorava os livros de Baden Powell (BP). Fechava os olhos e pensava que podia ser um dos dezoito escolhidos por ele para o primeiro acampamento em Brownsea. Sentado na cadeira de balanço de sua vó, Gegê lia e aos poucos seus olhos se fechavam. Algum estranho aconteceu. Gegê se viu em Brownsea, olhou no relógio e viu que era o dia vinte e nove de julho a data do inicio do acampamento.
             Ele não estava acreditando. A ilha era comum, parecia muito com a ilha da Carlinga de sua cidade. Viu os meninos chegando. Contou um por um, não eram mais dezoito. Ele contou vinte! O tempo estava firme. Alguém recebia os meninos e pelas fotos ele reconheceu Sir Percy Everett um amigo de BP.  Ele sabia que a ilha era pequena, menos de três quilômetros por um e meio. Claro tinha muitos bosques, dois lagos e que BP dizia ser um bom terreno Escoteiro.
              Gegê não estava acreditando. Ninguém o via. Mesmo chegando perto era por eles ignorado. Sabia que cada menino participante levou todo o material pedido e que sabiam de cor e salteado os nós direito, escota e volta do fiel. Gegê se lembrava do que tinha lido, pois o convite que ele enviou foi aceitos com entusiasmo. Os pais se orgulhavam dos filhos participarem com um herói de Mafeking como era conhecido na Inglaterra. Lá estava também seu amigo de armas, o Major Keneth McLaren que ficou como seu assistente.
              Nossa! Que vontade de ser visto por eles, de participar de uma das patrulhas. Não importava qual. Poderia ser os Corvos, os Lobos, os Maçaricos ou os touros. Viu que os monitores já tinham sido escolhidos e eram responsáveis por tudo que faziam no campo. Sabiam que BP solicitou que a eficiência e a coragem fosse ponto de honra. Ele sabia que os meninos não usavam uniformes. Viu que cada um recebeu as fitas de Patrulhas com suas cores que ficaram para sempre como símbolo daquelas patrulhas.
              Gegê estava embasbacado. Era tudo real. Viu o treinamento de Técnicas de Acampamento, observação, artes mateiras e como ele era desenvolvido. Assistiu BP contar para eles como era um bom rastreador. No Fogo de Conselho ele mostrou como seguir pistas a noite. No dia seguinte (cada Patrulha tinha uma barraca) BP adestrou os monitores e assim o acampamento seguia seu rumo. Gegê lembrava que ele mais tarde comentou que dar responsabilidade ao Monitor, foi o segredo do sucesso da atividade.
              Gegê olhava e aprendia. Construção de abrigos, fazer colchões, acender fogo, cozinha mateira e se divertiu com os jogos que eles fizeram. Eu queria tanto estar com eles dizia.  O que ele mais gostou foi jogo "Caça ao Urso" - Um dos rapazes maiores é o urso e tem três bases nas quais ele pode se refugiar e estar a salvo. Ele leva um pequeno balão de borracha cheio de ar nas costas. Os outros rapazes estão armados com bastões de palha amarrados por um cabo (ou jornal enrolado) e com os bastões procuram fazer estourar o balão, enquanto o urso está fora da base. O urso tem um bastão semelhante com o qual procura tirar os chapéus dos caçadores. Se isto acontecer o caçador está morto, mas o balão do urso tem de ser arrebentado para que ele seja considerado morto.
               Gegê estava vibrando com tudo aquilo. O bivaque feito só pela Patrulha foi sensacional. Mas as Atividades Práticas da Natureza foram demais. Relatórios de observação da natureza - “Envie suas Patrulhas para descobrirem por observação e relatarem depois, coisas como esses: Como o coelho silvestre cava sua toca? Quando um grupo de coelhos é assustado, um coelho corre apenas porque os outros correm ou olha ao redor para ver qual é o perigo, antes de também correr? Um pica-pau tira a casca para apanhar os insetos no tronco da árvore, ou apanha-os pelo buraco, ou como é que os acompanha? etc.”.
                  Gegê viu que Baden Powell era um esplêndido contador de estórias. Tinha um espantoso estoque de anedotas sobre os heróis de todos os tempos. Para seu próprio uso, ele havia criado um código de ética, baseado nos códigos dos Cavaleiros do Rei Arthur e nas suas próprias reflexões. Agora ele pode procurar instilar nos rapazes os mesmos ideais, contando-lhes as façanhas dos heróis admirados pelos jovens e imprimindo em suas mentes a ideia de “Boa Ação Diária”.
                  Gegê procurou um lugar junto a todos e assistiu o melhor debate que BP teve nesta ocasião com os rapazes. Foi ali que viu cristalizar o seu pensamento e a formular um código aceitável para os rapazes: A Lei e a Promessa Escoteira. Ele experimentou jogos que lhe pareciam capazes de por em relevo e dar expressão prática aos traços de caráter que ele desejava que os rapazes possuíssem. Ele pôs à prova a lealdade e a esportividade deles em jogos de equipe com regras estritas. Pôs à prova a coragem deles com alguns golpes e chaves simples de jiu-jitsu, e a disciplina e obediência num jogo em botes - a caça à baleia.
                Gegê queria intervir queria participar, mas não podia. Alguém o balançava e ele assustado e tremendo acordou com sua mãe o chamando para dormir. Gegê queria chorar. Perdera a melhor oportunidade de sua vida, pois queria muito ver os olhares de todos quando o acampamento terminasse. Mas Gegê sabia que ele sonharia de novo. Poucos muito poucos poderiam dizer que viram boa parte do primeiro acampamento dos escoteiros no mundo. Mesmo em sonhos.
                   Gegê viu. Contar para quem? O sonho de Gegê morreria com ele, Ninguém acreditaria. Mas isto importava? Para Gegê não. O que os outros pensassem dele não tinha nenhuma importância. Sabia que muitos gostariam de estar em seu lugar, e só ele teve esta oportunidade. Nunca deixaria de ser o Escoteiro sonhador. Sonhar é viver novamente e acreditar que o mundo pode se modificar. Os sonhos de Gegê pelo menos na sua inocência poderiam mudar o mundo!
Sonhe Gegê, Sonhe!

E quem quiser que conte outra...

“Miserável país aquele que não tem heróis. Miserável país que precisa de heróis!”
(Bertold Brecht)


terça-feira, 17 de julho de 2012

As incríveis chuvas do Rio do Peixe.


"Minha força está na solidão. Não tenho medo nem de chuvas tempestivas nem de grandes ventanias soltas, pois eu também sou o escuro da noite."
 (Clarisse Lispector).

As incríveis chuvas do Rio do Peixe.

         Não era o primeiro. Claro que não. Chefe Rael nunca fora um pata tenra. Foi lobinho, Escoteiro, Sênior Pioneiro e há quatro anos Chefe da tropa de escoteiros. A tropa com quatro patrulhas só tinha dois noviços que entraram há quatro meses e dois lobinhos, mas que tinham uma experiência muito grande nestas atividades. Era um acampamento que estava marcado desde o inicio do ano. Seriam de seis dias. Férias de janeiro, e resolveram acampar em Rio do Peixe. Um local onde já tinha ido com os monitores e duas excursões relâmpagos com toda a tropa. Acantonaram um fim de semana lá. Difícil para chegar, mas um local espetacular. A cachoeira era linda. Nos remansos se pescavam traíras, mandis, lambaris e pequenos piaus que juntos davam uma moqueca de tirar o queixo da Patrulha. Os cozinheiros de patrulha adoravam. Muito bambu, muita madeira e uma bela floresta.
         O material de campo já estava arrumado. O almoxarife de cada Patrulha fazia questão e o Monitor com mais um ou dois davam cobertura sempre. Na última Corte de Honra Leonel perguntou sobre novos facões para as patrulhas. Estava difícil, Chefe Rael tinha tentado no comercio e não conseguiu. Bem todas tinham um machado do lenhador e uma machadinha. Dava para quebrar o galho. Não seria isto o impedimento para o acampamento. O prefeito Zefir prometeu um caminhão para levar até a balsa do Rio Tarumim. Atravessando a balsa eles sabiam que o senhor Malaquias da Fazenda Rio do Peixe estaria lá com dois carros de bois. Malaquias se tornou um amigo dos escoteiros quando recebeu um lenço nosso durante o cerimonial de bandeira do encerramento.
            Os pais avisados, a matuta pronta, agora era fazer uma inspeção, pois o Chefe Rael fazia questão em dizer que o acampamento não é lugar de bicho, de sujeira, de nada. Era uma extensão de nossas casas e, portanto que cada um procurasse dar ao máximo no seu uniforme, do sapato ao chapéu. Os escoteiros perfilados sabiam o que ele queria dizer. Eram vinte e oito em quatro patrulhas. Raposa, Águia, Leão e Javali. O caminhão a postos, Leventino o motorista era conhecido. Não foi o primeiro acampamento que ele levou a turma. Não ficava lá. Voltava e ia buscar no horário previsto. Desta vez programaram um acampamento para grandes pioneirias. Dispensaram grandes jogos, mas eles insistiram que as noites fossem feitas uma competição de Morse por lanternas. Adoravam esta atividade.
           Os raposas disseram que ia fazer uma parque infantil. Um balanço para dois, um escorregador, um vai e vem e se desse tempo um barco viking. Todos olharam espantados, mas não duvidaram. Os águias pensaram diferente. Iriam fazer uma ponte na parte estreita do Rio do Peixe, com mais de vinte e cinco metros de largura. Ela teria condições de passar a cavalo. Difícil, onde o rio era mais fundo. Os leões se contentaram com um pórtico de doze metros de altura e um elevador para subir e descer.  Enfim, os Javalis disseram que iam trazer água da cachoeira da Manteiga do Rio do Peixe. Eram mais de cento e cinquenta metros. Mas ninguém duvidava.
           Viagem de rotina. A tropa era profissional nestas viagens. Cantorias é claro. Três horas de estrada de terra. Chegaram por volta de onze da manhã. Todos gostaram da travessia da balsa no Rio Formoso. Água Doce o barqueiro contava histórias, de “causos” que aquela balsa se pudesse falar contaria. Do outro lado o Senhor Malaquias acenava e ao seu lado os carros de bois. Uma da tarde e barracas prontas, cozinha com toldo pronta e o refeitório quase. Chefe Rael chamou os monitores. Os dois toques no berrante eram inconfundíveis. – Não sei não, mas quero que se previnam. Lá pelo Sudoeste umas nuvens negras se aproximam. Pode ser uma chuva daquelas de “mangada” ou então de “invernada”. Pelo sim pelo não se previnam. Encham o lenheiro e o cubram bem. Não esqueçam se já não o fizeram das valetas em volta das barracas. Avisem a todos. Uma reunião de Patrulha rápida deve ser feita e... Dispensados.
              Chefe Rael estava só. Desde que Chefe Fernando foi embora para a capital que ele não tinha conseguido nenhum assistente. O Clã com apenas quatro pioneiros ajudavam quando podiam. Mas ele não se importava. A tropa era boa, bem adestrada. Monitores perfeitos. E claro sem contar que todas as patrulhas tinha um ou dois primeiras classes e dois ou três segundas classes. Ele levava sua barraca de duas lonas, duas panelas, pois não incomodava as patrulhas “filando boia”. Quem avistasse de longe aquela turma veria que tudo era sincronizado. Ninguém saia do campo só. Até para buscar água iam com o aguadeiro pelo menos mais um. Não usavam cisal. Caro demais naquela época. Mas conheciam os cipós como poucos.
                Às quatro da tarde, os primeiros pingos aconteceram. Foram aumentando, aumentando e uma chuva torrencial se formou. Chefe Rael preocupado, pois sabia que este tipo de chuva é perigoso. Muito. Sem vento sem barulho, sem raios, sem trovam e a passara esvoaçada a procurar seus ninhos ou arvores copadas para se esconderem. Não havia mais borboletas, os quatis passavam correndo esbaforidos. Dois lagartos na pedra grande correram e se enfiarem em um buraco.  As patrulhas escolheram bem os locais onde iam passar os seis dias. Achava o Chefe Rael que se houvesse enchente no Rio do Peixe eles estariam bem protegidos.
                 Agora não tinham mais o que fazer. Todos foram prevenidos que a chuva não passaria tão cedo. Pelo menos aguardavam ela amainar um pouco. Nada. O tempo foi passando, a chuva aumentando. Anoiteceu. O jantar saiu. Um vento forte começou a soprar. O toldo dos Raposas foi levado pelo vento. Preso em galhadas de arvores altíssimas. Agora os raios e trovões apareceram. Duas patrulhas não tinham jantado. Só os Raposas e os Águias conseguiram terminar. Dividiram com as outras. Deu para “forrar o  estômago”. Chefe Rael não tinha capa. Saiu só de short e  foi de Patrulha em Patrulha saber como andavam as coisas. Em todas viu que as barracas encheram d’água. As valetas mesmo com mais de vinte centímetros de fundo não aguentaram.
                  Chamou os quatro monitores e mais cinco primeiras classes. Vamos fazer uma cabana agora no alto do morro. A chuva não vai nos impedir. Ficar aqui ninguém vai dormir ou descansar. Não era tarefa fácil. Passava das nove da noite. A chuva fazia de tudo um lamaçal. O barulho do rio dizia que estava enchendo. Foram até uma várzea onde havia centenas de pés de bananeira. O Senhor Malaquias havia de perdoar. Era uma emergência. O local estava com água nos joelhos e aumentando. Tiraram de cada pé quatro folhas. Cada um carregou o quanto podia. Voltaram. Agora precisavam de três bons mastros e enquanto cinco cortavam outros três furavam os buracos para elas serem fixadas. Onze da noite. A chuva não parava. Nem amainava. O Chefe Rael chamou os demais escoteiros. Juntem tudo. Mesmo molhado. Levem lá para a cabana que estamos construindo. Se possível levem o máximo de lenha seca que tiverem.
                  Alguns tossiam. Todos molhados. Chefe Rael preocupado. Não era bom sinal. Podia ter ido para a fazenda do Senhor Malaquias, mas era mais de onze quilômetros de distancia e tinham de atravessar o Rio do Peixe. Não sabia o estado da ponte se ela estava ou não coberta pelas águas da enchente. O jeito era continuar. Uma da manhã, com quatro lonas em volta e amarrando as folhas de bananeira conseguiram terminar. Cada patrulha ficou com um canto da cabana. Era bem larga e no centro acenderam uma fogueira. Não muito alta, mas para secar as roupas e alguma lonas. Ninguém dormiu naquela noite. Alguns sentados encostados uns aos outros conseguiram cochilar. De manhã a chuva não parava. Dentro da cabana estava mais seco. As roupas secaram não muito, mas dava para quebrar o galho. Pela fresta da porta podiam ver o rio subindo. Onde estavam acampados a agua do rio tomou conta. O tempo escuro. Chuva a mais não poder. Qual programa? Fazer o que? Vinte e oito Escoteiro presos naquela cabana? Claro se divertiram com alguns jogos de salão.
                 Chefe Rael fez um levantamento da comida. Perderam mais da metade. Dava para mais dois dias e olhe lá. Com algumas pedras que encontraram fizeram um fogão de quatro bocas tipo cruz. Um para cada Patrulha. As panelas que tinham eram para no máximo oito e assim o melhor é cada Patrulha cozinhar para si. Duplas saíram em busca de galhos mais grossos que depois de cortados ao meio estariam secos. O almoço saiu mais cedo. Café da manhã não houve. Só alguns biscoitos secos. O Monitor da Javali propôs fazer uma área coberta por folhas de bananeira com bancos por patrulha. Ideia aceita e lá foram eles a construir debaixo de chuva.
                  Quatro da tarde. A chuva não parava. Os trovões e raios não aconteciam mais. As seis a cabana ficou pronta. Muito boa por sinal. Claro algumas goteiras, mas não muitas. Um belo fogo agora dava para secar quase tudo. Até alguns jogos de força aconteceram. Infelizmente a alimentação mal dava para o almoço de amanhã. Se fossem embora com aquela chuva, nem saberiam se os carros de bois atravessariam a ponte sobre o Rio do Peixe. E pior, a travessia na balsa. Agua Doce o balseiro podia nem estar lá e o caminhão da prefeitura? Tudo era difícil. Chefe Rael tomou uma decisão. Logo cedo iria até a fazenda do senhor Malaquias. Veria como estava a ponte. E depois conversar com ele se emprestaria alguns feijões, arroz e farinha, pois assim poderiam ficar até o ultimo dia. Chefe Rael e os monitores que depois de consultadas as patrulhas se recusaram a ir para a fazenda. Estamos acampando! Nada de moleza. Turma boa essa pensou o Chefe Rael.
                      No dia seguinte apesar da chuva ter diminuído um pouco ainda dava para molhar. Saíram cedo. Ele o Lucas monitor da Leão e Hamilton da Raposa. A ponte dava para passar, mas em alguns pontos  a água do rio passava por cima. Senhor Malaquias estava preocupado. Já tinha preparado um cavalo para ir ver como estávamos. Contamos tudo para ele. Deu-nos arroz, feijão, farinha, e uma lata cheia de carne de porco no toucinho. Uma maná dos Deuses. Partimos e eu disse meu amigo, pode contar que viremos aqui devolver tudo quando voltamos à cidade. – Chefe Rael, um dia vou precisar. Agora não. Voces são meus convidados. Se portem como tal. Falar o que? Até lágrimas nos olhos apareceram.
                     Uma surpresa na volta. As patrulhas resolveram fazer pequenas cabanas em volta da principal. Chefe, disseram, assim é melhor. Teremos nosso fogão, nossa mesa de refeições, fossas tudo diminuto, mas da patrulha. Chefe Rael ficou orgulhoso. Que caia a chuva, que os ventos soprem que os raios risquem o céu e que os trovões trovejem à vontade. A tropa sabia enfrentar. Não deu para cumprir todo o programa, mas muita coisa foi feita. Em forma de cruz, cada uma das cabanas se ligava a principal com passagens cobertas. A Escoteirada se divertia e como se divertia. Chefe Rael até pensou que a chuva foi benéfica. Uniu mais a todos. Ninguém chorou ninguém adoeceu e todos cantavam alto como a dizer “Em canta seus males espanta!”.
                       No ultimo dia quando levantamos o sol estava a pino. Demos um belo de um sorriso e alguém disse – Belo sol. Mas hoje? De qualquer maneira seja bem vindo. Ficamos lá os seis dias completos. Jogos? Só os velhos conhecidos de salão ou mesmo de força com pouca área de atuação. Ninguém reclamou hora nenhuma. Portaram-se como bravos. Foi um acampamento diferente. Muito diferente. Chefe Rael sempre contou este acampamento aonde ia. Ele também ficou orgulhoso de todos. Não foi fácil a travessia na balsa no Rio Tarumim. Cheio. A correnteza parecia que ia arrebentar a balsa. Água Doce o balseiro não sorria. Vamos lá turma! Gritou. Se ajeitem, pois vamos partir! Quase uma hora para atravessar o rio. Leventino o motorista estava lá. Se segurem minha gente, a estrada está igual quiabo. Para ajudar uma chuva fina começou a cair. Eram três da tarde. O vento frio cortava na carroceria do caminhão que dançava de um lado a outro.
                        Nove da noite chegamos. Nenhum pai ou mãe esperando. Naquela época era diferente. Confiança nos chefes, confiança nos filhos. Guardaram o material. Perderam muita coisa. Nada que não pudesse ser recuperado. Na inspeção Chefe Rael estava orgulhoso. Uniforme amarrotado, não tão limpo. Alguns chapéu entortaram, mas na postura de cada um deu para ficar emocionado. A oração de debandar foi feita por Lagosta, o Monitor da Leão. (seu nome era Sergio Antônio e seus pais insistiam para chamá-lo assim.) Tropa é tropa. Patrulha é Patrulha, tradição é tradição, apelidos? Uma tradição de anos. Cada um foi para sua casa. Cansados. Lembranças que ficaram. Nunca mais desapareceram. Um ano depois voltaram lá. O programa que fizeram antes das grandes pioneirias agora foi cumprido. Mas nas rodas que se formavam, nas duplas que saiam para cortar madeira, no fogo do conselho ou mesmo quando do jantar ou almoço nas mesas de madeira simples, só uma conversa existia. O acampamento do ano anterior.
                      São estes que marcam. Que ficam na história. Que nunca são esquecidos. Dizem que os escoteiros são alegres e sorriem na dificuldades. Acredito nisto. Não tenho a menor dúvida. Nem sempre herói é aquele que salva, que lutou na guerra pela sua pátria. Herói também são aqueles que nas horas mais difíceis souberam se portar como tal. Um sorriso nos lábios e força no coração. Escoteiros heróis sim. Não precisavam ser da Raposa, da Águia, da Leão ou do Javali. Poderiam ser de qualquer uma patrulha. E eles sabiam que o possível fariam já e o impossível? – “Daqui a pouco sem moço”.

Qualquer semelhança com um passado que conheço, é mera coincidência. Risos.
E quem quiser que conte outra!

Eu perdi o meu medo, o meu medo da chuva
Pois a chuva voltando prá terra traz coisas do ar.
Aprendi o segredo, o segredo da vida
Vendo as pedras que choram sozinhas no mesmo lugar...



segunda-feira, 9 de julho de 2012

A maldição da montanha.


"A fé move montanhas, pequenas ações movem o mundo e pequenos sentimentos movem o universo”.

A maldição da montanha.

(Esta é uma obra de ficção. Qualquer semelhança com pessoas vivas ou mortas é mera coincidência)

               Por muito tempo uma história sobre esta montanha andou nas conversas escoteiras em todo o país. Nunca me aprofundei tanto como no dia que encontrei com o Chefe Ramon. Eu o conhecia pouco. Conversa vai, conversa vem e resolvemos tomar um chopinho e passar a conversa a limpo. Entramos em um barzinho lá pelas oito da noite e a conversa foi tão interessante que saímos de lá depois das duas da manhã. Foi ele quem me contou da Maldição da Montanha. Não era uma maldição e sim quem sabe a falta de preparo de escoteiros para subirem nos seus cumes e apreciarem a mais linda vista que poderiam ver um dia. Sei que não foram tantos, mas me contaram tanto desta montanha que ela me exercia um fascínio e sabia que mais dia menos dia iria conhecê-la.
              Assim começou Ramon, depois de dois chopinhos no ponto, acompanhados com gostosos bolinhos de bacalhau. Relato aqui a maneira de Ramon. Nada mais nada menos. – Chefe, tudo aconteceu há muitos anos atrás. Anos que nunca esqueci. Ficou gravada na minha memória para sempre. Não sei se as recordações são boas ou se as lembranças de tudo que aconteceu foram somente caminhos que cada um de nós busca encontrar nas diversas etapas do nosso crescimento. Hoje sou funcionário público vivendo o dia a dia de uma rotina que não cessa. Tenho dois filhos uma esposa linda e vivemos modestamente, mas felizes. Toda a família participa do escotismo. Linda é assistente de tropa Escoteira e eu Diretor Técnico. Luan é lobinho e Natieli Escoteira.
           Quando entrei para o escotismo não tinha a mínima ideia do que iria encontrar. Estava com onze anos. Um amigo disse que entrou e estava gostando, mas falaram com ele que iria ter muitas aventuras e até agora só viveram reuniões de sede. Convidou-me a conhecer e lá fui eu em um sábado para ver como era. Em principio poucas novidades, mas a correria, os jogos, as canções me animaram. Um Chefe me deu uma ficha de inscrição que levei para casa. Meu pai no sábado seguinte me levou e fez a minha inscrição. Ele era um pai formidável. Sempre me deu todo apoio. Eu era um jovem alegre, mas muito calado. Gostava de estudar e na classe sempre fui o primeiro da turma.
           Não participava de esportes e minha diversão favorita era correr. Corria muito. Acho que todo o dia corria mais de dez quilômetros. Nas primeiras semanas não achei muita graça nas reuniões. Afinal nos levaram até um jardim para limpar o lixo, depois em outra praça para plantar árvores. Até aí tudo bem, mas não era isto que esperava. Um dos amigos da Patrulha Tigre me emprestou um livro. Lindo! Quantas fotos e dizia que nós escoteiros somos heróis, fazemos acampamentos, excursões, sabemos nós, orientar pelas estrelas tanta coisa linda que procurei o Chefe. Sua resposta? Aguardem, um dia vamos fazer isto. Este dia nunca chegava. Acho que foi em agosto que soubemos que o Chefe Valter iria embora. Mudar de cidade, pois sua empresa o transferiu.
          O novo Chefe Álvaro era uma boa pessoa. Novo ainda no movimento chamou os monitores para conversar. Nesta época estava com doze anos e meio e era o sub-monitor da Patrulha. Como o Levi não veio à reunião estava assumindo como Monitor. O Chefe Álvaro nos contou que era bem leigo. Estava lendo muitos livros e tinha muitas duvidas. Precisava de nossa ajuda. Disse que tinha lido sobre uma Patrulha de monitores e nos perguntou se tínhamos. Bem se não tem vamos fazer uma? E mãos a obra. Gostamos de cara do Chefe Álvaro. Tudo que fazia nos consultava. Nunca tomava uma decisão sem nos ouvir. A tropa começou a melhorar a olhos vistos.
           Não só os monitores, mas toda a tropa ficou muito amiga do Chefe Álvaro. Começamos aos poucos sair da sede. A primeira vez pegamos um ônibus sem destino certo. No ponto final andamos em uma estrada de terra por mais cinco quilômetros e avistamos um riacho. Tínhamos levado uma boa corda e tentamos fazer uma falsa baiana. Como não ficou bem esticada muitos tombos aconteceram. Foi à primeira diversão. Todos gostaram. As atividades foram se multiplicando. Em menos de seis meses a tropa adquiriu uma técnica mateira de dar inveja.
          Soube da montanha por meio de meu pai. Contou-me que lá sumiu um Escoteiro a mais de trinta anos. Nunca mais o acharam. Como assim? Ninguém soube explicar. Seu Chefe foi preso, forçado contar o que não sabia e só com a interferência dos pais do menino que sumiu a policia o soltou. Achei a história interessante. Agora queria conhecer esta montanha. Porque sumir e nunca mais ser encontrado? Era um mistério e meu faro dizia para ir lá. Falamos com o Chefe Álvaro e ele não concordou. Só depois de sugerirmos ir só os monitores e subs ele ficou de pensar.
           Uma reunião ele nos chamou. Os monitores e sub monitores. Nossa tropa era masculina, pois na época ainda não fora autorizado a participação das meninas. Disse-nos que pesquisou muito sobre a montanha e inclusive um amigo do Diretor Técnico, Insígnia de Madeira e residente em uma cidade próxima se prontificou a nos dar todo apoio técnico e tático. Assim ele não via mais problema com a subida nossa ate o pico. Vibramos com a ideia de subir a montanha que todos chamavam de Maldita. Iriamos provar que conosco nada disto podia acontecer.
            Aproveitamos um feriado prolongado e numa quinta pela manhã pegamos o ônibus para Monte Verde. Cidade pequena, menos de cinco mil habitantes. Éramos sete escoteiros. Lucio um sub Monitor não foi. Na cidade encontramos o Chefe Leonel, um grande Chefe já com seus sessenta anos, e nos deu todas as coordenadas que sabia. Explicou que não havia erro. A trilha era fácil, bem sinalizada e podíamos acampar logo após dois quilômetros de subida. Encontraríamos uma boa aguada e no dia seguinte poderíamos atingir o pico. Menos de seis quilômetros e voltar no mesmo dia. Uma vista maravilhosa lá de cima.
            Nada encontramos de aventuras. Sem erro chegamos ao local do acampamento. Não era uma perfeição, mas dava para montar as barracas e fazer uma cozinha um pouco apertada, mas em condições de fazer nossas refeições. O tempo ajudava. Uma temperatura agradável e o sol queimando. Passamos todo o dia armando o campo. Uma mesa, bancos, barracas armadas e não fizemos fogão suspenso. Usamos um pequeno fogão tropeiro. Era o suficiente. A noite um pequeno jogo noturno e fomos dormir.
            Levantamos cedo. Após o café, arrumamos um pequeno bornal (lanche) para cada um, cantis cheios e partimos rumo ao pico da montanha. Não era meio dia e chegamos sem muito esforço. A subida não foi difícil. A vista era realmente maravilhosa. Duas cidades cadeias de montanhas a sumir de vista. Dois rios e foi espetacular vermos uma ferrovia com um trem em movimento. Uma pequena cobra serpenteando o rio. Cantamos algumas canções e as duas retornamos. Na descida menos de uma hora depois lembrei que esqueci no pico o meu cantil.
          E agora? Minha sugestão era eu e o Levi voltarmos pegar o cantil e encontrar todos no acampamento. Ideia que não agradou ao Chefe Álvaro. Mas relutante deixou. Voltamos e o cantil estava embaixo de uma pedra na sombra. Foi aí que aconteceu. Uma serração enorme tomou conta do pico e do caminho. Achamos que podíamos descer, pois dava para ver até dois metros a frente e era só seguir a trilha. Sem erro. Descemos a trilha. Errada. Era outro sentido contrário a quem devíamos pegar. Uma hora, duas três e nada de chegarmos ao acampamento. Levi achou melhor que parássemos. Do jeito que estava à serração não dava para ver nada. Devíamos ter levado a bussola.
          Ficamos ali, a tarde chegou e a noite também. Sabíamos que o Chefe Álvaro devia estar com a cabeça a mil. Agora a lembrança do Escoteiro que desapareceu devia estar fomentando seus pensamentos. Mas não havia nada a fazer. O jeito era nos virarmos e esperar a cerração passar. Não passou. Um frio de rachar. Ainda bem que sempre carreguei um isqueiro pequeno no bornal. Com dificuldades encontramos capim seco e gravetos. O fogo crepitou e deu para esquentarmos um pouco. Estávamos sem abrigo. O plano era subir e voltar ao acampamento no mais tardar às cinco da tarde.
          Não conseguimos dormir. Não dava. O frio era demais. Já estava difícil encontrar gravetos naquela escuridão. Confesso que um desespero abateu em mim e sei que o Levi também estava como eu. Passamos uma noite de cão. Quando o dia amanheceu a serração se foi. Foi então que levamos um grande susto. A menos de cinco metros um despenhadeiro horrível. Cair ali era não ser achado nunca. Ainda bem que paramos na hora certa ou será que foi a mão de Deus! Resolvemos voltar de novo ao pico. Antes de chegar ouvimos os apitos do Chefe Álvaro. Graças a Deus o encontramos. Abraços, choros e retorno.
          À noite fizemos uma fogueira, e lá conversamos muito sobre o acontecido. A consequência de alguém sumir, morrer, desaparecer. Deus me livre. Nem queria pensar nisto. Hoje já crescido exijo mesmo sabendo que será impossível acontecer de novo que todos na tropa recebam um adestramento completo de bússola e orientação. Saber o que fazer se perder. A calma, a paciência, saber que será socorrido. Isto nos valeu e muito. Sem obrigar sugiro a todos que sempre portem no bolso uma pequena bússola. Brinquem com ela, divirtam em seus caminhos da e escola ou onde forem.
          Eu já tinha tomado seis chopes. Minha cota. Estava a pé. Morava perto. O Chefe Álvaro também. Um abraço, um aperto de mão e cada um foi para sua casa. Meditei muito sobre tudo. Sumiu? Desapareceu? Uns dizem que... Melhor não entrar nesta seara. No campo das hipóteses. Isto não é coisa de escoteiros. Nenhum grupo nenhuma tropa pode dizer que nunca passaram ou passarão por isto. Acontece. Aconteceu comigo muitas vezes no passado. Uma outra época. Mais aventureira. E a vida continua e eu continuo escrevendo. Um pouco de ficção, um pouco de realidade. Meus contos são assim, pedaços de sonhos laçados aqui e ali!

E quem quiser que conte outra...
 
As dificuldades são como as montanhas. Elas só se aplainam quando avançamos sobre elas.


Era uma vez... Em uma montanha bem perto do céu...

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