sábado, 7 de junho de 2014

Um tributo merecido ao Chefe Conrado.


Lendas escoteiras.
Um tributo merecido ao Chefe Conrado.

               Quanto tempo? Não me lembro, mas que tem tempo isto tem. Poderia começar a contar a história dizendo: - Era uma vez em um país muito distante... Mas aqui Xerazade não aparece, não são histórias das mil e uma noite e nem existe um tapete mágico para Aladim. Esta é uma pequena história. Pequena no tamanho e grande demais para entender todas as vicissitudes da vida. Falar do Chefe Conrado fazem meus sentimentos voltarem no tempo e pensar que o mundo nos reserva em todos os destinos não escolhidos, mas que fazem parte da vida e nada poderemos fazer para mudar. Lá estava eu em Capitão Martins uma cidade perdida no norte de Minas para uma palestra ao Grupo Escoteiro de lá. Excelente grupo, jovens sorridentes, olhares respeitosos e bons chefes. Durante a palestra no ginásio local com um bom número de pais e simpatizantes observei um Chefe Escoteiro encostado à parede sem usar nenhuma poltrona. Olhava-me com olhos ávidos, uma atenção canina o que me fez perder algumas vezes a continuidade da palestra.

              Aparentava uns cinquenta anos ou mais, não tinha um bom aspecto apesar de muito bem uniformizado. Bermuda e camisa bem passadas, mas velhos. Um chapéu antigo bem posto que na hora usava no peito, seus meiões e lenços impecáveis. Infelizmente um corte enorme no rosto que ia até a boca, uma mancha na outra face e um olho torto lhe davam um aspecto triste e até quem sabe ameaçador. Para piorar gostava de usar cabelos compridos em “rabo de cavalo” o que reforçava seu aspecto bizarro, selvagem e extravagante. Andava de braços abertos, ombros encurvados, mas quando sorria era demais. Uma simpatia irradiante. Após a palestra fui conhecer as sessões com Alcatéia Tropa Escoteira e sênior. Todas as sessões faziam escotismo misto. Lá estava o tal Chefe, encostado na parede esperando que alguém o chamasse. – Perguntei ao Diretor Técnico porque ele não participava. Sua explicação me pegou desprevenido – Chefe, ele apareceu aqui há uns quatro anos. Sempre afastado, pois sabe que sua fisionomia assusta. Todos nos já acostumamos com ele, muito servil, sempre pronto a ajudar e isto o faz feliz. Um nosso Chefe que mudou de cidade doou o uniforme para ele.

                 O conselho de Chefes foi contra convidá-lo para uma sessão. Por vias das duvidas fizemos sua promessa, mas nunca foi registrado. Os pais não viam com bons olhos e por ser analfabeto alimentamos seu sonho de estar conosco, mas colocá-lo em uma sessão é preocupante. Sempre é o primeiro a chegar e o último a sair. É de uma vassalagem gritante. Limpa a sede, prepara materiais de jogos e mais nada. Nem mesmo é convidado para um jogo ou uma canção. Tudo ele faz aqui encostado à parede e sorrindo. Se vier a sede a noite aqui vai encontrá-lo. Lá está sentado no meio fio como a fazer ponto na porta da sede. Já emprestei para ele alguns livros que ele só vê figura. Sei que entrou em uma escola de adultos e já lê alguma coisa. Acostumamo-nos com ele como se acostuma com um... Ele ia dizer cão amigo, mas preferiu se calar. Não queria desmerecê-lo. Olhe Chefe ele trabalha no moinho do português e mora em um quartinho na periferia da cidade.

             Passou-se alguns anos e de novo retornei aquela cidade. No Grupo Escoteiro não vi o Chefe Conrado. Seu lugar que ficava estava vazio. Questionei o Diretor Técnico e com lágrimas nos olhos e vi também tristeza nos demais me respondeu: Desapareceu um dia e nunca mais voltou. Nesta hora foi que vimos à falta que ele fazia. Era como se tivesse perdido parte de nós. Arrependo-me até hoje por não ter dado o valor que ele merecia. Agora sei que era um homem de valor e seu desejo de ser um Chefe o que nunca foi martela até hoje no coração de todos. Durante este tempo sempre esperamos encontrá-lo sentado ao meio fio nos esperando e os jovens também sempre perguntavam por ele. Duas semanas sem aparecer fomos ao moinho. Seu Manoel o proprietário nos contou que foi ao quarto dele onde morava com a polícia. Vazio anda com tudo bem arrumado da cama ao guarda roupa. Fomos até lá para ver. – Chefe foi como uma punhalada no coração, nunca vi um quarto assim. Ele fez do seu quarto uma sala de sede escoteira. Lindo quadro de nós e sinais de pista, bandeirolas de semáfora presa à parede, não sei como tinha um quadro de Baden-Powell, uma colcha branca bordada com uma flor de lis jazia em sua cama. Na estante uma Bíblia aberta onde se lia o Salmo. Ficamos chocados com tudo.

               Não havia cartas, papeis nada que pudesse saber de onde veio e se tinha familiares. O tempo passou e cinco meses depois soubemos que ele tinha sido atropelado em uma cidade próxima, imprensado em um poste morrendo na hora. Mesmo com sua identidade não souberam de onde era e de onde tinha vindo. Foi enterrado como indigente. Como estava com um cinto Escoteiro um dos investigadores resolveu fazer uma consulta à direção escoteira regional. Em vão, ele não tinha registro lá. O Doutor Jamil em passagem por aquela cidade conversa vai conversa vem se apresentou como Escoteiro a amigos da cidade. Um deles sabia da morte de um Escoteiro e comentou. Doutor Jamil ao ver a identidade sabia quem era. Quando soubemos foi um choque. Não sei se foi boa ideia, mas reunimos todo o grupo e em um domingo fomos à cidade onde havia sido sepultado. Em uma campa simples fizemos um circulo em volta e cantamos a canção da despedida, todos chorando e Chefe, foi difícil cantar toda ela. Dizer que não era mais que um até logo e um breve adeus era difícil de pronunciar.

            Após a canção e uma oração nos preparávamos para voltar e vimos um Beija Flor azulado, sozinho, batendo as asas em volta do túmulo sem pousar. Todos não tiravam os olhos dele. Se fosse um sinal do Chefe Conrado eu fico em duvida. Sou cético para estas coisas. Voltamos tristes e silenciosos. Não havia canções no ônibus e só as lembranças do Chefe Conrado estava presente no íntimo de todos nós. Depois que ele se foi é que entendemos que o coração é maior que a aparência. Só demos o valor tarde demais. Não houve medalhas, não houve abraços, não houve apertos de mãos e nem sequer um certificado de gratidão. Nem mesmo um simples agradecimento verbal. Só ficou a lembrança, saudosa, dolorida e que nunca vai ser esquecida pelo Grupo Escoteiro. 


            Fiquei pensando que o valor da escrita, da formação intelectual e docente devia ser mais bem avaliada caso a caso. Como disse o grande Arquiteto do Universo há muitas moradas na casa de meu pai. Ele se sentia feliz em ajudar. Não pediu nada em troca. Tais indivíduos temos em vários lugares. Não damos os valores que merecem e chamá-los de escotistas de chefes o que para eles seria uma honra nunca vai acontecer. No meu retorno meditava sobre isto. Ele era um homem cumpridor de seus deveres, nunca almejou nada. Fazia seu trabalho sem recompensas. Ele no Grupo Escoteiro era o lixeiro, o carregador, o apanhador de sonhos. Hã! Lei dos Escoteiros. Vale tanto para nós como valeu para ele. Nunca mais voltei lá. Não porque não quis, não houve oportunidade. Mas o chefe Conrado ficou marcado para sempre em minha memória.


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