segunda-feira, 11 de agosto de 2014

O último acampamento do chefe Escoteiro.


Conversa ao pé do fogo.
O último acampamento do chefe Escoteiro.

                Essa história foi-me narrada por um Comissário Distrital muito meu amigo, quando o visitei em sua residência a muitos e muitos anos atrás. Era comum visitá-lo. Nos conheciamos desde o tempo da patrulha senior. Juntos nós fizemos belas atividades Escoteiras. No seu distrito havia um chefe Escoteiro bem antigo, bem "Velho" alíás. Ficou toda a vida em um só Grupo Escoteiro e era amado e bem considerado por todos. Deixou de frequentar por problemas de saúde. Com 82 anos claudicava, tremia, respira mal e sua vóz quase não se entendia. Um dia resolveu lembrar o passado. Comprou um pequeno balão de oxigênio, que dava para seis dias, preparou um bornal para ele, de maneira a não atrapalhar o que iria fazer.

               Isso mesmo. Seu último acampamento. Ele queria fazer um antes de morrer. Ria e contava para todo mundo. Ninguém acreditava. Mas ele era teimoso. Muito obstinado. Sua esposa horrorizada tentou demovê-lo da idéia. Não conseguiu. Chamou os filhos (eram três) nada obtiveram. Vieram amigos escoteiros, desistiram em pouco tempo. Chegaram à conclusão que se ele não fosse morreria alí na sua casa em poucos dias. Quem sabe bem tutorado ele podia ir? Claro os filhos sem ele saber iriam vigiá-lo de longe. Um deles era médico. Assim ficou combinado.

              Chefe Zezé (como era conhecido) preparou tudo com calma. Tirou sua mochila do baú, seu uniforme, ele mesmo lavou e passou. Sua manta de fogo de consêlho, seu chapéu de tres bicos, ainda prensado no porta-chapéu. Colocou seu tope que comprou em 1947, seu penacho azul de dirigente (tinha o verde e amarelo de Diretor Técnico, e os demais de outras sessões, hoje não se usa mais). Engraxou sua botina de campanha, olhou seu meião com carinho, a jarreteira deixou no lugar. Não iria usar. Pediu à esposa que pregasse os seus barretes na camisa cáqui. As medalhas ele levaria consigo, mas guardadas na mochila. Seria seu troféu de campo.

               Estava ainda lá sua faca escoteira, limpa e com saudades viu que ainda possuia o talco que colocou antes de embainhar. Seu facão limpo, sua machadinha pequena e lá bem escondido em um canto do baú, sua bússola silva. Olhou tudo, viu que o cinto de couro ainda estava firme, e a fivela brilhando. Até mesmo uma bandeira nacional bem antiga ele levou. Sua mente só via o acampamento que iria fazer. Tinha de ser superior a todas as noites de acampamento que fizera. Nem mais e nem menos. Deveria marcar sua vida para sempre. Não levaria seu lenço de insígnia. Iria com o verde e amarelo quando fez a primeira promessa. Lembrou do seu primeiro acampamento de lobos (na época lobinhos acampavam), sua promessa escoteira, sua patrulha senior, e vários amigos que junto a ele fizeram com que as matas, florestas, campinas, serras, montanhas e tantos lugares fossem incrustados para sempre na sua memória.

            Disse que iría na semana seguinte. As margens do Rio da Serpente. Sozinho. Não queria companhia. Todos os filhos sabiam onde era. Já tinham ido lá com ele várias vezes. Sorriram e não disseram nada. Ele preparou tudo com carinho. Ração C para três dias. Capa leve de chuva. Uma lona simples e macia para montar um pequeno toldo de sua cabana (ia fazer uma), seus remédios, seu inalador, e no bornal o bujão de ar. Pelo telefone comprou a passagem. Eram quatros horas de viagem. Pediu a seus filhos para o levarem à rodoviária. Estava uniformizado. Na entrada subiu sozinho. Deu até logo e disse que não precisava de ajuda. Subiu as escadas com dificuldade. Fingiram não o observar. Viram quando ele entrou no ônibos. Um dos filhos seguiu de carro atrás. O filho chegou à cidade de destino primeiro. Sabia que dali até a as margens do rio seriam mais quatro quilometros. Ele disse que iria alugar um animal. Cavalo ou burro. Não dava para subir a pé.

           O ônibos chegou. Desceram todos. Surpresa! Chefe Zezé não estava no ônibus! O motorista disse que ninguém tinha viajado com aquelas características. O filho ligou para os outros. Todos se dirigiram para a cidade de destino. Reunião de família. O que fazer? Onde estaria seu pai? Onde? Procuraram por todos os lugares, por toda a parte. Nada. Um dia, dois três. Se ele resolveu dar um golpe e seguir sozinho a outro lugar, pois sabia que aonde ia seria vigiado, deveria estar de volta à noite do terceiro dia. O dia amanheceu. A familia desesperada. Policia acionada. Busca em todos os lugares. Bombeiros, elicópteros. Nada. Chefe Zezé sumiu! Não sabiam mais o que fazer. A polícia desistiu. Ninguém quis mais procurar. Seus filhos precisavam voltar à luta. Tinham seus empregos. Esposas, filhos. A vida continua.

           Duas semanas depois a esposa do chefe Zezé, parou de chorar. Os olhos vermelhos inchados. No décimo quinto dia, receberam um recado. Um telegrama. Um vaqueiro disse ter visto um homem parecido conforme foto nos jornais na serra do Canta Galo. Todos os filhos foram para lá. Bem longe. Mais de nove horas de viagem. Serra desconhecida para eles. A cidade pequena. Alguns tinham visto quando ele chegou quinze dias atrás. Conseguiram um guia, encontraram o vaqueiro. Arrumaram cavalos e subiram a serra. Local ermo e de difícil acesso. Tinham medo, muito medo do que iriam encontrar. Avistaram ao longe uma fumaça branca subindo aos céus. Pequenas esperanças. Quem sabe está vivo? Chegaram ao local. Viram-no enconstado em uma árvore, como se estivesse desfalecido. Correram até ele. Respirava e parecia dormitar. Abriu os olhos, sorriu. Como me encontraram disse?
           O filho médico o examinou. Achou estranho. Sua respiração parece ter melhorado. Viu o bujão de ar ainda cheio. Ele não tinha utilizado. Ele se levantou, olhou para o céu, para as arvores, um pássaro preto em um galho voou. Alguns outros se juntaram a ele. Todos voando em volta do chefe Zezé. Borboletas surgiram. Azuis, vermelhas, verdes e amarelas. E então vamos? - Disse. Com sua cabeleira vasta e caindo na testa, cantava a pleno pulmões – Avançam as patrulhas, ao longe, ao longe! Adeus meus amigos, ou melhor, até breve, eu voltarei, disse ele olhando os pássaros, a mata, o riacho e não viram mais nada.

            Arrumou sua mochila, sempre com calma e bem arrumada nas costas gritou! - À frente tropa! Bandeiras ao vento! Marche! Agradeceu a oferta de ir a cavalo. Andava como uma lebre. Incrivel pensavam. Mais acima dois quatís acompanhavam e mais ao longe dois lobos guarás do rabo curto também. Uma passarada foi com eles até a cidade. Uma figura o chefe Zéze. Dizem que na cidade todos bateram palmas. Os pássaros quando ele entrou no automóvel do filho, cantaram alto. Mas o que houve com ele? Perguntei ao distrital. Olhe, soube pela esposa que tinha um livro e anotou tudo que aconteceu. Uma especie de diário. Ela me emprestou. Soube que já com seus 91 anos tem uma saúde de ferro. Não toma mais remédios. Voltou ao Grupo Escoteiro. Sempre colaborando. Fui para casa e nem bem cheguei “apoitei” em minha poltrona favorita. Lí com sofreguidão e pressa tudo o que o "Velho" Escoteiro escreveu.

            Que doce leitura. Linda. Que aventura! Que inveja do chefe Zezé. Quanto daria para estar no lugar dele. Vivam comigo essa explêndida historia de um "Velho" que se transformou através de um acampamento só dele. Cheio de amigos, amigos que todos nós gostariamos de ter. Amigos sinceros, leais, sem interesses, e que não ficavam azucrinando com aquelas palavras chatas que ouvia. "Velho" gagá, babão, seu lugar é em casa. - Preparei tudo. Meu plano fora traçado. Combinei com um chapa carregador de malas, para colocar um chapéu parecido com o meu, e levar minha mochila até o ônibus. Fingiu que entrava e deu meia volta. Embarquei duas horas depois. Não fui para as margens do rio da Serpente. Sabia que iriam me monitorar. Queria liberdade.

      – Cheguei à cidade de Catuava, e lá aluguei uma mula. Para 20 dias. Arrumei tudo e parti para a Serra do Canta Galo. Vi em mapas e li sobre ela. Linda. Achei um local maravilhoso. Um pequeno bosque, mais ao longe uma mata linda, próximo uma cascata, águas limpídas, bem arejada. Neste dia montei minha cabana. Ficou “joia” Toda de galhos e folhagem verde. À tarde construí uma mesa e o fogão suspenso. Que saudades das que eu fazia no passado. Uma fossa de liquido, outra de detrito e retirado uns 50 metros um WC. O vento soprava do meu campo para ele. Almocei linguiça na brasa. Dois pães. Um suco. Mais tarde fiz um café. Saudades do meu café mateiro. Atrás de umas folhagens avistei dois quatís. Olhavam-me espantados. Sorri e eles se aproximaram. Daí para frente seriam meus amigos para sempre. Notei que um pássaro preto me encarava. Sorri para ele. Ele cantou uma canção e pousou em meu ombro. Outros pássaros se aproximaram. Comecei a conversar com eles. A noite chegou. Uma coruja veio e também pousou no meu ombro. Arrumei alguns galhos e fiz uma fogueira.

         Foi minha primeira noite. Antes de dormir lembrei que não tinha tomado meus remédios. Não sentia falta. Não usei mais. O ar entrava em minhas narinas de maneira agradável e apetitosa. O sono veio. Nem olhei as estrelas, nem a brisa gostosa que soprava. Deitei e dormi não sem antes agradecer a Deus pela vida maravilhosa que me dava. Há muito tempo não dormia assim. Sonhei coisas lindas canções lindas. Acordei com o cantar da passarada na mata. Os dias foram passando. Eu não queria contar. Estava vivendo os mais belos dias da minha velhice. Horas? Não tinha interesse. Minha ração começou a acabar. Achei na beira do riacho uma boa plantação de “taioba” adorava taioba. Comi taioba por três dias. Um pequeno remanso e vi trairas e lambarís bocarra. Lindos, fáceis de pegar. Peixe frito no almoço e na janta. Um pé de maracujá. Minha sopa preferida. Depois dois pés de mamão carregados. Maduros e verdes. Vagem mais abaixo do riacho. Amigos alí era um édem. Poderia ficar a vida inteira neste paraíso.

         Não sei como, a tarde um casal de capivaras apareceu. Ficaram em volta do meu campo por dois dias. No segundo nasceram três capivarinhas. Um espetáculo incrivel. Mas o melhor mesmo foi à amizade que fiz com dois lobos guarás. Eles me seguiam aonde ia e o pássaro preto nunca me abandonou. Uma tarde vi um homem a cavalo. Fui encontrado. Deixei lá meu amigo pássaro preto, a coruja “buraqueira”, que me acompanhou todas as noites quando deitava na relva e ficava a imaginar como seria o universo. Valeu. Disseram-me que foram quinze dias. Dias maravilhosos. Quantos amigos eu fiz lá. E olhe só eu falava e eles educadamente me ouviam. Ainda vou voltar lá, O caminheiro e a Midiata, nome que dei aos lobos guarás eu sei que estarão lá me esperando. Até hoje no meu quinta lá estão na castanheira em frente a minha casa, os sabiás que cantavam na serra e hoje cantam para mim todas as tardes. Sei que acham que sou louco. (Risos) não sou. Que pensem assim. Não me importo. No próximo verão irei voltar. Saudades da minha serra querida, dos meus amigos, bons tempos que não quero que termine nunca mais.


          Fiquei ali na minha poltrona por muito tempo. Parecia um conto inexplicável, contado de uma maneira tão simples, tão pulcra, que muitos iriam dizer que se tratava de uma fábula. Que seria uma história inverossimel mal contada e que o chefe Zezé nunca existiu. Será?


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Era uma vez... Em uma montanha bem perto do céu...

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