Lendas
Escoteiras.
Coração
Escoteiro.
Para dizer a verdade eu até
hoje não sei por que Tiago entrou para os Escoteiros. Até seus pais se
entreolharam quando ele disse que iria participar e precisava da autorização
deles. Que eu o saiba nunca se interessou. Olhe, eu confesso que muitas vezes o
convidei e ele olhava de lado e não respondia. Bem, eu sei que Tiago era
diferente de muitos meninos de sua idade. Caladão, nunca encarava ninguém, não
discutia e pelo que me informaram não era um aluno com notas altas. Dava para o
gasto diziam seus colegas de classe. Como todos os meninos naquela época ele
trabalhava para ajudar sua família e comprar o que precisava. Dizem que era o
melhor engraxate da cidade. Fazia horrores com a flanela e as duas escovas
macias e ele com suas piruetas conquistava a todos seus fregueses, mas sempre
de cara fechada. Na estação de trem era proibido engraxates, mas Tomazelli o
Chefe da estação abriu para ele uma exceção. Lembro um dia que embarcamos todo
o grupo Escoteiro para Nova Fonte. Um grupo novo surgia na cidade e nos
convidou para a festa de abertura. Hora nenhuma vi Tiago nos olhando. Engraxava
o sapato do Tenente Jairo e serio não dizia nada.
Isto não era comum pensei.
Afinal éramos mais de cento e cinquenta jovens, lobos, Escoteiros, seniores e
pioneiros zanzando para todo lado, bateria tocando. Foram dois vagões de
primeira classe gentilmente cedido pela Vale do Rio Doce. Uma época que
tínhamos regalias não só pela estrada de ferro como também na prefeitura, no
Batalhão de Polícia e no Tiro de Guerra. Não esqueço aquele dia de reunião que
um caminhão do Batalhão parou na porta da sede. Desceram o soldado Belarmino e
o Cabo Zito. – O Capitão Barbosinha mandou entregar eles disseram. Mãos na massa
para descarregar trinta barracas de duas lonas, cinco de oficiais, cem
mochilas, cem cantis, trinta facões, e marmitas usadas no exercito. Junto veio
dois bumbos, quatro cornetas, cinco caixas claras, três tambores mor e oito
tarois. Tudo em perfeito estado de
conservação. Foi uma festa e para minha surpresa vi o Tiago ajudando a
descarregar. Foi só terminar e ele sumiu.
Se ele tinha algum amigo
eu nunca vi. Eu morava na Rua Bem-te-vi e ele na Garça. Duas ruas atrás da
minha. Quando ia para a escola ou para a sede sempre passava em frente a sua
casa. Um dia tomei coragem e bati em sua porta. Sua Mãe dona Noca atendeu. –
Queria falar com Tiago senhora. Ela o chamou e ele apareceu na porta de
esguelha. Nada disse. – Estou indo ao Campo dos Afonsos. Acampamos lá na semana
passava e dei falta de um canivete que preso muito. Quer ir comigo e me ajudar
a procurar? Não queria ir sozinho. – Ele pensou, pensou e pulou na garupa de
minha bicicleta. Gastamos quase cinco horas para ir e voltar. Ele achou o
canivete. Olhou-me com um ponto de interrogação no rosto como a dizer: - Falta
de atenção não é Vado Escoteiro! Bem, ele não disse nada. Tentei manter uma
conversa com ele e nada. Lembro que um dia o Chefe Ventania comentou que nem
todo mundo nasceu para ser Escoteiro. – Falou logo o Velho chavão até hoje
conhecido e falado por muitos chefes no Brasil – Ser Escoteiro tem de ter
sangue, tem de ter vontade, tem de ser homem para enfrentar as dificuldades.
O tempo passa, o tempo
voa, e eu voei com ele nas andanças que fiz. Isto aconteceu em 1953 quando
deixei a cidade de Porto Feliz. Em 1964, fui fazer um curto Básico de Lobo e
quando a turma se formou um susto eu levei. Lá estava Tiago de uniforme do Ar.
Olhou-me educadamente, mas não disse nada. Esperei a hora propícia. Quando
perguntei, ele me deu um meio sorriso e entre os dentes disse baixinho: - A
hora chegou. – Que hora pensei? Ele adivinhou meu pensamento. Entrei logo após
você ter se mudado da cidade. - E gosta mesmo do escotismo? – Quer saber Vado, eu
ate hoje me faço esta pergunta. Quando via você esbanjando alegria com seu
uniforme, esbanjando vontade de vencer nas atividades Escoteiras eu perguntei a
mim mesmo – Porque não? Vamos olhar e ver como é que fica! Faz onze anos que
entrei e ainda estou na fase de duvidas e nem sei bem onde vou chegar.
Hoje me pergunto se o que
disse o Chefe Ventania eram fatos ou somente pensamentos abstratos. Sei que
Tiago ainda é Escoteiro. Se o seu coração mudou eu não sei. Sei sim que ele faz
tudo pelo escotismo em sua cidade. Mudou muito é verdade, pois hoje é Prefeito
e respeitado pela população. Já se comenta em fazer dele um deputado ou
senador. Pelo menos é um homem Escoteiro que podemos acreditar. Eu brinco com
muitos chefes que tive a honra de ter sua amizade quando falam que o escotismo
não é para qualquer um. – Não é, mas qualquer um pode ser Escoteiro, basta
querer. Se for ficar ou não é outra história. A vida nos leva a ver e
reconhecer que nem sempre podemos afirmar o que pensamos como certeza de vida.
Não podemos dizer simplesmente que Coração Escoteiro não é para qualquer um.
Ainda acredito que tem muitas maneiras de ver o escotismo. Tem aqueles que veem
e sorriem por ser um e tem aqueles que pensam em ser mais um, mas ainda não chegaram
a lugar nenhum.
Sei que nós os Velhos
Escoteiros acreditamos sem sombra de dúvidas que nosso coração é Escoteiro.
Como interpretar isto faz parte da individualidade de cada um. Uma certeza eu
tenho, conheci milhares de jovens e adultos que ingressaram no escotismo e hoje
não estão mais. Conheci outros tantos que nunca foram Escoteiros e eu tinha
certeza que seus corações tinham tudo para ser. É como entender o Espírito
Escoteiro. O escotismo traz dentro de si uma verdade, se fizermos o caminho
corretamente seria como se saltássemos vários obstáculos que a vida nos
reserva. Mas acredite, não precisa ser Escoteiro para isto. Muitos nunca foram
e tem uma norma de conduta a fazer inveja a qualquer um. Tiago mesmo antes de
ser um de nós já tinha seu coração Escoteiro. Faltava um pequeno empurrão para
ele se transformar em um verdadeiro homem de espírito que esperamos dos nossos
rapazes e moças. Como dizia o célebre poeta, a vida é mesmo assim, tem começo, meio e fim.
Nenhum comentário:
Postar um comentário