terça-feira, 8 de março de 2016

O último por do sol.


Lendas Escoteiras.
O último por do sol.

                  - Eu era Chefe de uma tropa Escoteira lá no Bairro do Berilo. Não era longe e a pé chegava a menos de quinze minutos. Era uma boa tropa. Eu tinha bons Monitores que me ajudavam muito. No grupo havia uma tropa feminina, separada com apenas duas patrulhas. Genny a Chefe era muito esforçada. Nilo um amigo era meu assistente. Não sei se acontece com todo mundo, mas tem escoteiros tão bem comportados que quase passam despercebidos. Assim era Waldo. Entrando nos quatorze anos tinha todas as qualidades que a gente pensa possuir um elevado “Espírito Escoteiro”. Na Patrulha Quati Waldo era uma espécie de conselheiro dos demais. Não era o Monitor, mas cativava a todos pela sua ponderação, pelo seu exemplo não só na tropa como na escola e em sua vida familiar. Quando eu tinha algum problema na tropa chamava o Waldo. Ele possuía um jeitinho próprio de conversar que conquistava qualquer um que estivesse ao seu lado.

                      Não foi minha surpresa que um sábado de maio ao chegar à sede não vi o Waldo. Era o primeiro a chegar e o último a sair. Perguntei ao Antonio seu Monitor se ele sabia de alguma coisa. Não sabia. Pensei comigo – Deve ter sido o motivo muito forte para ele ter faltado. Fiquei de ligar para ele ou seus pais para saber se uma gripe o impediu de ir à reunião. Quem atendeu foi sua mãe. – Chefe, o melhor é o Senhor vir aqui em casa. Não dá para falar por telefone. Só na quinta deu para ir até lá. Eu estava preocupadíssimo. O que seria? A Mãe dona Aurora e o pai seu Rodolpho me receberam na porta. Estavam tristes e taciturnos. – Chefe, falou dona Aurora, Waldo me pediu para ele mesmo dizer. Acho que o Senhor deve ficar prevenido. A notícia vai chocá-lo e muito. – Vi que lagrimas caiam dos olhos de ambos. O Senhor Rodolpho estava com a voz embargada.

                       Subi ao quarto de Waldo, ele me esperava sentado na cama. Senti nele um sorriso tênue e sua voz que já era baixa de natureza estava rouca. Seus cabelos estavam caindo e aquilo me assustou. – Olá Chefe, Sempre Alerta! Ele tinha ficado em pé. Dei-lhe um aperto de mão e um abraço. – Waldo, todos estão sentindo muito sua falta e as saudades são grandes. Ele sorriu de leve. – É Chefe, vai ser difícil minha volta. Vou direto ao assunto. Melhor ser honesto com o Senhor. Estou com Leucemia no cérebro. O médico disse para minha mãe que eu tenho no máximo quatro meses de vida. Foi como se eu tivesse levado um soco, uma pancada. Fiquei chocado. Sentei em sua cama. – Calma Chefe, isto acontece com um e outro, eu fui o escolhido por Deus desta vez e sorriu. – Meu Deus! Pensei. Que calma deste garoto! Incrível! – Olhe Chefe, eu convenci minha mãe. Ela e meu pai não queriam, mas eu gostaria antes de ir me encontrar com meus ancestrais lá na vivenda de Capella, eu queria ir ao acampamento do próximo mês no Vale dos Sinos.

                        – Mas como Waldo? Você mal fica em pé e nem pode andar direito! – Eu sei Chefe, mas eu preciso. Não posso partir sem ver meu último pôr do sol nas escarpas cintilantes. - Me lembrei do que ele falava. Lá das escarpas o pôr do sol era maravilhoso. O mais lindo que tinha visto. Eu nunca pensei que ele pudesse lembrar e nem eu mesmo lembrava mais. Olhei para Waldo. Não podia negar aquele último favor. Se ele queria eu não iria dizer não. Combinei com seus pais de passar lá no dia marcado pela manhã para pegá-lo. Não disse nada para a tropa e nem para os chefes. Insisti para que ninguém faltasse. Queria dar a ele uma despedida inesquecível. Seria o maior Fogo de Conselho que eu iria dirigir e ele participando. – Passei lá no dia determinado. No local do acampamento ele insistiu em ficar com sua Patrulha. Estava tremendo, fraquejava, mas dizia que iria dormir na barraca da Patrulha.

                       Poderia ter armado uma barraca só para ele, mas ele foi enfático em ficar na patrulha e não queria dormir sozinho. – Chefe, é câncer! E sorria. Nada mais que o cancerzinho idiota. Não vai ter perigo para ninguém. Ele não é transmitido assim. Não é contagioso! – Menino! Que Escoteiro era aquele? Waldo de quatorze anos me dando lição? Eu tinha levado uma cadeira de praia para ele ficar sentado. O dia que ele quisesse eu o levaria em minhas costas até as Escarpas Cintilantes. Ele recusou a cadeira. Vou fazer a minha de madeira Chefe. Devagar mas vou fazer. A Patrulha viu que ele estava doente. Disse para ela que ele estava se recuperando de uma forte pneumonia. Ele quase não participava das atividades, mas ajudava na cozinha sempre. Fez uma bela cadeira. Sentava e fechava os olhos. Seus lábios entreabertos pareciam sorrir. No penúltimo dia vi que ele respirava com dificuldade. – Waldo, eu vou levá-lo para sua casa. – Chefe nem pensar. Me leve agora até as Escarpas Cintilantes. Meu tempo está se esvaindo.

                            Fui sozinho com ele. Em principio foi andando depois o vi fraquejar. O coloquei no colo. Uma palha de tão magro. Em menos de meia hora chegamos. Sentei junto com ele na barranca que dava para todo o Vale dos Sinos. Um espetáculo a parte. Deviam ser umas cinco e meia da tarde. Chefe eu posso fazer meu último pedido? Claro meu amigo. Claro. Quando eu estiver ido para a terra dos meus ancestrais no campo santo, eu não quero que cantem a canção da despedida. Cantem todas aquelas alegres que sempre cantamos, para que eu tenha boas lembranças. O sol foi aos poucos tentando se esconder atrás das montanhas do Grilo Feliz. Waldo sorria. Não tirava os olhos. Eu engasgado. Danação! Eu não era como ele. Estava difícil aguentar. Queria chorar e não podia. Não podia chorar naquele instante. Não podia. Eu sabia que eram seus últimos momentos. Waldo me olhou. Piscou os olhos e me disse – Chefe foi a maior alegria que já tive. Vou levar para sempre esta lembrança comigo. Obrigado Chefe. Obrigado. Foi aos poucos deitando no meu colo. Esticou suas perninhas secas. Waldo morreu sorrindo no meu colo naquele anoitecer frio de junho. Ficou ali imóvel como se estivesse dormindo.


                    Fiquei ali chorando por muito tempo abraçado ao corpo de Waldo. Alguém bateu no meu ombro. Olhei e não vi ninguém. Lá onde o sol se pôs vi uma nuvem branca brilhante que logo desapareceu. Desci as escarpas com ele no colo. Uma eternidade até chegar ao acampamento. Uma dor profunda. Toda a tropa chorava. Voltei para a cidade. Não chorava mais. Meu coração sumiu. Minha vontade não era minha. Naquele momento achei que eu também tinha morrido com o Waldo. No dia seguinte estávamos todos na sua exéquias. Cantamos ao som de um violão a Stoldola, Avante Escoteiro, Lá ao longe muito distante e outras. Todos cantavam com vigor escoteiro. Muitos choravam. Eu também. Não dava para segurar. Os anos passaram. Nunca me esqueci de Waldo. Nunca me apareceu em sonhos. Nunca falou comigo em espírito. Deve estar feliz, muito feliz em Capella, a terra dos seus ancestrais.

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Era uma vez... Em uma montanha bem perto do céu...

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