sábado, 15 de julho de 2017

A dor de uma saudade.


Lendas Escoteiras.
A dor de uma saudade.

                 Está fazendo hoje 45 anos que Nico morreu. Todo início de ano, no primeiro de janeiro meu coração teima em lembrar-se de um passado que gostaria de esquecer. Porque ele? Porque não alguém que não merecia continuar neste mundo? Tem tantos por aí, mas o Chefe Tomázio sempre dizia para todos nós: - Os desígnios de Deus só ele sabe o porquê. Escoteiro menino de quatorze anos eu não entendia bem o que ele queria dizer. Mas hoje sei que cada trilha percorrida tem sua razão de ser. Josiel o Monitor da Picapau era como eu. Achava que se Deus o levou não pensou bem o que fazia. Havia um certo orgulho entre nós de só abrir vaga na patrulha quando um fosse para os seniores ou acontece um imprevisto familiar.

               Nico era magrinho, um “pipote” de gente e quando chegou achamos que ele deveria ir para a alcatéia. – Tenho doze anos! Tentou falar grosso, mas não conseguiu. Eu era o terceiro Escoteiro investido como escriba e sinaleiro da Patrulha. Só havia uma vaga de bombeiro lenhador ou aguadeiro. Ele timidamente me perguntou o que deveria ser. – Bombeiro Nico. Quanto a aguadeiro não se preocupe, no “pega prá capá” todos nós somos. A amizade foi surgindo aos poucos. Dormíamos na mesma barraca, fora do escotismo íamos juntos para o colégio, à noite sempre nos encontrávamos para um papo. Eu era o terceiro na fila e com a entrada dele passei para o quarto. Conta errada? Não, o monitor era o primeiro e o sub o segundo. Claro que Totonho o Sub era o último da fila. – Ele retoca os demais escoteiros na fila disse para Nico.  

               Poeta o quinto Escoteiro custou para fazer amizade com Nico. Sempre se achava superior com seus versos e seus escritos, mas no fundo era um grande amigo na patrulha. Petardo o cozinheiro caladão não gostava muito de falar. Moeda o intendente sempre com aquele olhar de desconfiança. – Olhou bem o facão? Dizia. Tem dois V. Vai e volta. Batuta sabia conservar a tralha da patrulha com maestria. Na mão dele nada podia simplesmente desaparecer. Só Joel Construtor de Pioneirías que não aceitou bem a Nico, mas quando ele se foi chorou por uma semana seguida.

              Perdi a conta dos acampamentos, das excursões das viagens de trem que a patrulha ou a Tropa fazia, das escaladas no Morro do Chapéu, e quando sem contar para ninguém fizemos uma jangada de piteiras que nos deixou a deriva no Rio Corrente próximo a Santa Fé do Sul. Quando fiz minha jornada de primeira classe insisti para o Chefe Tomázio deixar que ele fosse comigo. Foi bom demais só nós dois explorando a mata do Roncador, saltar o Rio Vermelho para alcançar a trilha do Xavante, dar belas gargalhadas no campo de patrulha e quando ele resolveu fazer um pórtico foi testar o pórtico veio abaixo. Foi demais.

              Quando Munir Boca de Ouro me convidou para treinar o Clarim pedi que ele arrumasse uma vaga para Nico na Banda. – So taroleiro, disse. Dois anos juntos, dois anos mantendo uma amizade sem sequer uma discussão, uma discordância ou mesmo uma desconfiança. No Sete de Setembro nos preparávamos para o desfile. Eu recém-investido no Clarim estava todo orgulhoso com uniforme nos trinques e portando uma luva branca de pano, sorria para Nico, com seu pequeno tarol também todo cheio de sí. Munir tomou a frente, Chefe da Banda e dos Corneteiros deu a ordem para iniciar o desfile. Um passo dois e notei Nico caindo aos poucos no chão em plena Praça da Independência. Corri até ele. Olhava-me choroso dizendo: Vado, eu não quero morrer!

               Uma bala perdida. De onde veio? Quem deu? Ninguém sabia. No Tiro de Guerra o Sargento disse que usavam bala de festim. Bandoleiros? Alguém querendo matar o prefeito? Nico foi enterrado no dia seguinte no Cemitério da Santíssima Trindade. Quem sabe sessenta ou setenta pessoas presente. A Banda se formou em volta do seu tumulo. Munir fez questão de tocar o Silêncio com os tarois repicando baixinho. Nunca esqueci Nico, chorei por muitos meses e hoje homem feito ainda choro. Sempre o imagino como Chefe Escoteiro que era seu sonho quando crescesse. A vida tem disto, nada é previsível.

                45 anos. Lembranças que machucam. Lembranças de uma patrulha que mora no meu coração. Joel é Bombeiro, Moeda carpinteiro, Poeta nunca escreveu poesia e trabalha na Radio Novo Mundo.  Josiel casou e se mudou da cidade. Petardo ainda dá suas escoteiradas. Josiel dizem foi para o estrangeiro. Eu sou Escoteiro do mundo. Um faz tudo que sabe que nunca fez nada tão bem. E como disse o poeta, o destino une e separa pessoas, mas mesmo ele sendo tão forte é incapaz de fazer com que esqueçamos pessoas que por algum momento nos fizeram felizes!


Patrulha Pica Pau. – “Arranka, uenka, lellenka! Litta tellita Ravá. Pica Pau? Sempre a lutar”! - Joel construtor de Pioneirías, Moeda o intendente. Poeta escritor e auxiliar de cozinheiro – Nico o novato – Coruja (sou eu) – Josiel o Monitor - Petardo o cozinheiro – Totonho o sub. Monitor.

nota: - Uma pequena historia que nunca foi contada. Nada demais. Triste como sempre o final. Sou danado para terminar alguns contos assim. Mas tem muitos que dá alegria em saber que tudo deu certo. Fiquem a vontade para ler e se não gostar comentar! Ops! Se gostar também, risos.

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