domingo, 16 de julho de 2017

“Flor do Campo”. O sonho não acabou.


Lendas Escoteiras.
“Flor do Campo”. O sonho não acabou.

                      Esta história aconteceu há muito tempo. Não dá para esquecer. Eu era Chefe de um Grupo Escoteiro, um grupo simples sem muitas pretensões de ser grande ou o melhor. Era um bairro afastado do centro de classe media e muitas favelas já urbanizadas próximas.  Habitava este mundo escoteiro vivendo cada dia, cada hora, cada minuto de minha jornada Escoteira sem contagem regressiva. Eu sabia de cor o nome de todos os chefes, pioneiros, guias e seniores, escoteiros e escoteiras, lobinhos e lobinhas. Tinha muitas amizades entres os pais e frequentava os mesmos lugares que eles.

               A história começa quando no pateo vendo o andamento das reuniões notei a presença de uma menina magrinha, não mais que dez ou onze anos, vestida com simplicidade. Nas reuniões seguintes lá estava ela sempre com a mesma roupa, um sorriso ingênuo e cativante, Era realmente simpática mesmo na humildade de sua roupa simples que vestia Cabelos castanhos com uma pequena trança e seu semblante era de uma atenção cautelosa. Olhava-me de soslaio. Notei que não tirava os olhos da tropa das escoteiras. Seus olhos negros brilhantes se transportavam para as meninas que ali brincavam, riam, cantavam e vi que ela de longe sonhava em ser uma delas como se estivesse em uma patrulha participando. Ela ficava sempre confinada em um canto do pátio e nunca se aproximava.

               Foi em uma promessa de uma Escoteira que vi seus olhos brilharem. Quando entreguei o lenço vi que seus olhos se encheram de lágrimas.  Ela em seus sonhos pensava que um dia poderia ser ela com aquele lindo uniforme e ser ela a promessada. Para ela era um momento prodigioso que transpunha no seu imaginário, forçando entre o sonho e a realidade uma transferência física, como se estivesse ali com a mão direita em saudação e acreditando que de agora em diante sua vida seria outra. Uma escoteira. Mas tudo não passava de uma doce ilusão.

                        A Chefe Melanie a convidou várias vezes para entrar na tropa. Sempre com a mesma expressão não dizia nada. Naquela tarde ela foi convidada a participar de um jogo. Das três patrulhas duas estavam com sete e uma com seis. Completar seria mais lógico para haver igualdade de competição. Acreditem, não tenho palavras para descrever sua alegria. Jamais vi alguém participar de um simples jogo com tanta energia e vibração. Ao final do jogo um agradecimento e vi que ela tentava se enturmar, mas sem estar presente na Patrulha. Prestava atenção ouvindo e tentando entender o que as patrulhas faziam, com cabos pequenos, bandeirolas, e uma parafernália de papeis e desenhos misteriosos.

                     Um dia renovei o convite: - Mocinha por que você não quer ser uma delas? Ela não me respondeu. Seus olhos se encheram de lágrimas e saiu correndo. Não entendi. No sábado seguinte ela estava lá e quando olhei para ela saiu correndo. Pedi então a Chefe das Escoteiras que conversasse com ela. Foi então que fiquei sabendo de seu padrasto. Homem mau, não trabalhava e exigia tudo que sua mãe ganhava como faxineira para beber e gastar o único sustento da casa. Contou a Chefe que tentou autorização com sua mãe e na segunda vez levou uma sova de seu padrasto. Era sempre assim. Ele batia nela por prazer de bater.

                  Sua mãe sabia como ele era, mas o medo fazia com que se mantivesse calada. Parecia historia da Cinderela sem sapatinhos de cristal e com um final triste sem o príncipe encantado. Nada podíamos fazer. É impossível o escotismo ajudar neste processo, pois ele depende e muito dos pais. Ela continuou a vir e assistir as reuniões. Um dia chegou à sede um homem dos seus 50 anos, grisalho, estatura mediana e um semblante arrepiante com uma cicatriz no queixo. Vestia de maneira desleixada e não era nada amistoso. Dirigiu-se ao meu encontro e levantou levemente sua blusa mostrando estar armado. Não gosto disto. O olhei sem cumprimentar. Perguntou onde estava “Flor do Campo”. Balancei a cabeça como a dizer que não sabia. Com o dedo em riste me ameaçou dizendo que ela sempre vinha à sede e ele nunca a deixaria ser uma de nos.

                 - Vocês são uma turma de riquinhos. Ela fugiu de casa e se até amanhã não aparecer o senhor é o culpado, falou cutucando o revolver na cintura. Fiquei sabendo depois que ela jogou uma chaleira de água fervendo em seu rosto quando ele tentou agarrá-la e saiu correndo.  - Olhe moço ela fugiu de casa sem nada levar. Procurei por ela em todo o bairro e nada. – Calado nada disse. Alguns membros diretores que permaneciam na sala estavam atemorizados e sobressaltados. Eu mais ainda. Nunca fui herói, não lutava karatê e de luta livre não entendia nada. Ele saiu da sede resmungando e fazendo ameaças. Deu-me prazo de um dia para ela aparecer se não eu seria responsabilizado.

                  Durante dias fiquei preocupado sem saber como agir. No sábado seguinte, esperei ele aparecer. A surpresa foi à vinda de sua mãe e ela. Educadamente se apresentou. Chorando contou sua história salpicada de novas informações. Ele era um bandido perigoso e fora morto na tentativa de um assalto a banco. Olhei para “Flor do Campo” cujo sorriso era contagiante. Acreditava que agora seu sonho em ser Escoteira seria real. De um padrasto violento via que seu mundo mudou para melhor. “Flor do Campo” foi aceita. Nunca vi uma jovem como ela. Sua promessa foi inesquecível. Chorou de alegria como se estivesse vivendo um conto de fadas.

              Ficou conosco por seis anos. Foi escoteira e guia. Conseguiu todos os distintivos possíveis. Amava o escotismo e quando fez dezoito anos sua mãe voltou para sua cidade no nordeste. Ficamos tristes, pois tínhamos por ela muita afeição e ternura. Sua mãe tinha recebido uma pequena herança de um sítio de sua avó. Na rodoviária nos despedimos com a Canção da despedida. Muito choro, mas todos orgulhosos de “Flor do campo”.  Cinco anos depois, uma surpresa - recebemos na sede a visita dela. Desta vez acompanhada de seu marido e dois filhos. Apresentou-nos a todos com orgulho. Estava a passeio e contou que era Akelá de lobinhos em um Grupo Escoteiro na cidade onde morava. Sorria nos encantando a todos.


                  Foi emocionante e havia ainda muitos da sua época. Até hoje costumo receber uma pequena cartinha dela onde conta suas aventuras e sua vida escoteira. Costuma enviar fotos e pede sugestões. Ela mesma confirma que vai admiravelmente bem na trilha do sucesso. Eu um Velho Escoteiro tenho um grande orgulho em ser amigo dela. São coisas impossíveis que se tornam possíveis pela obstinação de um movimento incrível. Sempre digo que o escotismo é uma filosofia, uma maneira de realizar sonhos, sorrir e viver feliz para sempre!

nota:  Uma história que peca pelo inverossímil, mas cuja realidade está viva até hoje. São fatos da vida escoteira e sempre lembro que nem todos eles tiveram um final feliz. Mas quem tem? A vida é uma constante, viemos com uma finalidade, mas que pode ser alterada pelo simples fato de termos liberdade para decidir. Nunca me esqueci de Flor do Campo. Já tem tempo que não vejo falar dela. Só desejo que ela esteja bem e que a felicidade tenha encontrado morada em seu coração.

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