sexta-feira, 1 de setembro de 2017

Lendas escoteiras. Viver por viver...


Lendas escoteiras.
Viver por viver...

                      Ela ficava por horas sentada no banco da praça, pintado de azul com propaganda da Perfumaria Delmarche. Nunca soube se era para ver o por do sol na Montanha do Cisne ou se era para se isolar do mundo que podia não gostar. Olhava para ela e ela não olhava para mim. Quase não mexia os olhos sempre abertos como a fitar um infinito perdido em sua mente. Seu nome eu sabia. Ouvi alguém chamá-la Soninha. Todas as vezes que terminava a reunião eu corria para a praça e ficava junto da figueira onde tinha vista perfeita para olhar para ela a montanha do Cisne e o por do sol. Vez ou outra saia do lugar e passava em sua frente, mas ela não me olhava. Não sabia que eu existia.

                      Quando a noite chegava, uma senhora distinta pegava em sua mão e ambas iam embora rumo a Rua da Flor Vermelha. Um dia eu fui atrás e vi ambas entrarem em um casarão que todos sabiam pertencer ao Barão Von Friedrich já falecido. Pensei que a Mansão estava vazia e que não morava ninguém. Ia sempre à praça nos dias de semana para ver se ela estava lá. Não. Só aos sábados. Não sabia quando chegava, pois minha reunião escoteira sempre iniciava as duas e quando passava na praça ela ainda não tinha chegado. Eu me perguntava o que sentia por ela, mas nos meus catorze anos não sabia. Amor? Amizade? Atração? Não tinha a menor ideia.

                      Quando fiz a promessa, me esmerei por fardar na melhor apresentação que um escoteiro sonha ser. Foi um dia marcante, quase chorei. Fiz questão de ir até a praça de uniforme e passar em frente a ela para ver se chamava sua atenção. Notei com surpresa que ela me acompanhou com os olhos e mais nada. Ela sempre vestida com uma saia plissada bege, uma blusa de gola verde e sempre um pequeno gorro azul na cabeça. Usava uma meia branca três quarto e uma sandália azul sem adorno. Dificilmente há via com outra vestimenta. Nunca ouvi sua voz, seu sorriso, ou mesmo seu cantar. Ela parecia não ver o mundo ou não se interessava por ele.

                        Por anos tentei averiguar quem era de onde veio qual família e nada consegui. Cheguei a ficar horas observado o casarão, mas ele parecia destonar de outros que tinha vida e sorrisos nas portas e janelas. Até as flores não eram belas e mesmo bem cuidadas não davam o “it” que se esperava em um jardim como aquele. Parecia um casarão fora do nosso mundo, existente em outra dimensão que só eu via e mais ninguém. Porque insistia? Porque continuar aquela procura do nada que não iria encontrar? Anos olhando para ela, anos vendo o tempo passar como se ele não tivesse passado e ela sem ao menos sorrir para mim.

                       Quando partia para meus acampamentos, excursões e ou atividades aventureiras eu me perdia em sonhos de não vê-la nos radiantes dias de sol dos sábados em que ela estaria lá e eu não. Um dia resolvi sentar ao seu lado e abruptamente me sentei. Ela nem pestanejou. Fiquei ali ao lado dela até a senhora distinta vir buscá-la. Noutro dia tremendo peguei na sua mão. Ela parecia não se importar. Olhei sua face corada, sua tez macia e seus olhos negros que não diziam nada. Meu coração bateu forte e agora eu sabia que a amava e a queria para sempre.

                      Um pequeno escoteiro crescido, entrando nos seus dezessete anos poderia ter esta ilusão? Por quem? A senhora distinta chegou para levá-la. Interpelei. Ela me olhou bondosamente. – Soninha escoteiro é autista disse. E nada mais falou levando-a pela mão. Meu coração disparou. Batia como se fosse um machado do lenhador a cortar uma arvore em uma floresta imensa. Autista? Não sabia o que era. Na biblioteca encontrei: - Uma pessoa voltada para si mesmo, não estabelece contato visual e nem com o ambiente. Algumas falam outras não. Li mais e mais e chorei. Porque chorava? Por ser um sonho irrealizável?
                   
                       Passaram-se muitos anos. Anos demais que me deixaram com sonhos inacabados. Ela partiu, nem sei para onde. Escoteiro eu era e escoteiro ainda sou. Zanzando por aí a procura de alguém que nunca mais encontrei. A cidade para mim perdeu o luar, o sol, as estrelas e ficaram meus sonhos impossíveis. Passei parte da vida acampando na Montanha do Cisne. Quem sabe lá eu a encontraria? Um dia o banco azul da praça escrito Perfumaria Delmarche foi pintado de verde. Alguém escreveu em vermelho – “Viver por viver, sonhar jamais”! Uma história sem começo e sem fim.


“E como diz o poeta, não acrescente dias a sua vida, mas vida aos seus dias”.

Nota de rodapé: - “Você já se perguntou o que marca o nosso tempo aqui? Se uma vida pode realmente ter um impacto no mundo? Ou se as escolhas que fazemos importam? Eu acredito que sim e acredito que um homem pode mudar muitas vidas para o melhor, ou para o pior.”

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