sexta-feira, 17 de agosto de 2018

Lendas Escoteiras. Pedras brancas de gelo na Mata do Quati.



Pedras brancas de gelo na Mata do Quati.

Nota - O tempo passa depressa demais e a vida é tão curta. Então — para que eu não seja engolido pela voracidade das horas e pelas novidades que fazem o tempo passar depressa — eu cultivo um certo tédio. Degusto assim cada detestável minuto. E cultivo também o vazio silêncio da eternidade da espécie. Quero viver muitos minutos num só minuto.

Atemporal do tempo...

17 de agosto de 2018.
Faz tempo que não vejo enormes temporais em minha cidade. Fico aqui na minha varanda relembrando a queda de granizo em quantidades para encher minha rua. Gosto do barulho da chuva das pedras de gelo caindo sobre as telhas da minha varanda. Música sublime para mim. Amo isto eu adoro a chuva. Não sei por que ela se prendeu a mim e ficou presa no meu coração para sempre. Voltei no tempo atemporal. Seria como se eu tivesse a mágica de transitar no tempo sem necessariamente pertencer ao passado o presente ou ao futuro. Sem querer me lembrei de um conto que li – Sempre me lembro dele: - Ontem chorei. Apronto agora os meus pés na estrada. “ Ponho-me a caminhar sob sol e vento“. Vou ali ser feliz e já volto”. Um dia quem sabe vou postar todo ele. Atemporal, voltar no tempo sem medo de perder o presente e o futuro. Com todo o frio que fazia na minha rua, minha mente se foi. Plantou-se em um passado que nunca esqueci.

20 de janeiro de 1958.
Seis Escoteiros Seniores. Olhos vivos a perscrutar com a vista todos os lugares naquela noite escura, sem luar sem medo da chuva ou vento. Acampamentos vividos que alguns não esqueciam jamais. Em volta do fogo, eles comiam banana assada. Pareciam mais pioneiros que sêniores. A moda índia sentaram a vontade naquele foguito e se esquentavam de uma noite fria. Um “foguito” pequeno. Chamas baixas, muitas brasas para não adormecer o café no bule, já perdendo seu esmalte de anos e anos de uso. – Parece que vai chover... – Tãozinho custava para falar. Era um sênior miúdo e de olhos vivos. Minutos se passaram. – Gosto da chuva, adoro uma boa dificuldade debaixo de tempestades. – Helinho ria para ele mesmo. Que o visse naquela hora achava que estava louco. – Israel olhou de soslaio. Não disse nada. Ele nunca esqueceria o acontecido. Darcy não perdia a pose de dar uma boa gargalhada. – Valeu! O melhor acampamento que fizermos. – Chico o menorzinho dos seniores queria dizer alguma coisa. Não sabia o que dizer. Eu estava com os olhos fechados. Queria reviver o momento. Voltar no tempo. Sentir as tremuras, o medo e a força que fizemos em reviver, em refazer um acampamento destruído.  

04 de janeiro de 1954.
Cantantes, sorridentes, cada um já sabia o que fazer. O esqueleto da barraca suspensa entre quatro árvores estava quase terminado. Faltava ainda boas amarras nos tripés. Chico e Israel adentraram mais fundo na mata. Precisavam de bons cipós que não quebravam. Sisal? Nem pensar. Nem existia ainda. Aboletado lá no alto Israel e Tãozinho elevavam no ar uma bela tora que serviria de escada até o alto da árvore. Eu e Helinho terminávamos nossa cozinha. Planos futuros para ela também ficar suspensa. Belos planos. O céu escureceu. Tãozinho gritou! – Nuvens baixas cor de cobre? Todos juntos responderam – É temporal que se descobre. Melhor armar duas barracas de duas lonas para nos abrigar. O toldo foi jogado em cima da cozinha. Darcy correu a cobrir o lenheiro. Uma patrulha que sabia o que fazer. Não eram amadores. Ploc! Ploc! Uma pedra, duas um punhado. Pedras de gelo enormes!

20 de janeiro de 1958. 
Em volta do “foguito” que dormitava e queria apagar, cada um pensava na vida que tinham levado em belos acampamentos no passado quando Escoteiros da Patrulha Leão. – Foi duro, não foi fácil. Disse Helinho. Lembra Darcy das barracas? – Tãozinho riu. Ele não gostava de rir. Viraram peneiras. Enterramos antes de voltarmos. Perdemos quase tudo. – E o raio? Disse Darcy. Caiu como um chumaço na base do estrado que fazíamos para as barracas. Não sobrou nada. – Silêncio profundo. Cada um voltava no tempo. Chico levantou e pegou alguns biscoitos – Alguém aceita? Foi você Vado que correu na frente de todo mundo para ficar embaixo da enorme aroeira? – Israel gargalhou forte. – Ele parecia um corisco com medo da chuva! – Medo das pedras enormes que caiam, eu disse. – Bons tempos, disse Israel. Dormimos presos uns aos outros molhados sem poder ou sem onde abrigar. – Todos concordaram com um leve levantar de sobrancelhas. Seniores, quando se encontram em volta de um “foguito” tem histórias para contar. Um vento forte levantou fagulhas no ar. – Vai chover? Disse Tãozinho. Se tem vento e depois água? – todos responderam: Deixe andar que não faz mágoa.  – Vou dormir eu disse. Uns foram outros ficaram. Coisas gostosas para lembrar. Passado que se foi.

17 de agosto de 2018.
Meus olhos ficaram húmidos. Lembranças sempre me tocam o coração. Tempos bons, tempos alegres, cheio de aventuras... Tempos que não voltam mais. Olhei a chuva fininha que caia. Acalento para minha alma. Outro dia recebi um telefonema. Era Israel. A mesma voz. O mesmo estilo mineiro que adoro. Onde anda o Darcy? O Tãozinho? O Helinho? O Chico deve estar zanzando por aí. Era o mais novo. Gente fina. Escoteiros e seniores que tiravam o chapéu quando uma dama bonita passava por eles. Lembranças... Dizem que quem não tem lembranças não viveu. Passou pelo tempo como se não tivesse passado. Hã quanto não daria para entrar em uma máquina do tempo. Mas ela ao me levar teria que fazer menino de novo. Dizem que foi Clarice quem disse: -
O tempo passa depressa demais e a vida é tão curta. Então — para que eu não seja engolido pela voracidade das horas e pelas novidades que fazem o tempo passar depressa — eu cultivo um certo tédio. Degusto assim cada detestável minuto. E cultivo também o vazio silêncio da eternidade da espécie. Quero viver muitos minutos num só minuto.

E as pedras brancas embranqueceram minha rua que tanto amo molhadas pela chuva que caia copiosamente!

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