domingo, 16 de junho de 2013

A lenda do Escoteiro do mar. Só o vento do mar azul sabe a resposta.

A lenda do Escoteiro do mar.
Só o vento do mar azul sabe a resposta.

Não te prometo a terra, nem o céu, nem o mar; Mas pra sempre, eu vou te amar!

                        Uma linda tarde de setembro. Um céu azul, um vento
sul soprando perfumes que o mar generosamente nos oferecia sem nada em troca. Minhas tardes de sábados estavam chegando ao fim. A Bandeira tinha sido arreada. Os sete silvos do apito de marinheiro ainda corriam pelos cantos da sede como se fossem ecos perdidos no tempo. O Grupo Escoteiro do Mar Almirante Graça Aranha teve mais um dia de história. História que ficaria na mente de todos como fantasmas amigos para sempre. Os lobinhos ainda tinham no rosto aquele mote de quero mais. Os Escoteiros aqui e ali se reunião em seus cantos de Patrulha para os avisos finais. Posicionei-me como sempre fazia na saída da sede. Uma rotina. Fazia questão de apertar a mão de cada um e dizer – Obrigado por estar conosco. Conto com você na próxima reunião. Sempre fiz isto nos últimos setenta anos. Poucos ligavam para o que eu fazia. Não davam nenhum valor. Nunca me importei com isto. Chamavam-me de Almirante Ramon. Eu sabia que não era e nunca fui almirante. Para dizer a verdade nem me lembro de quem me apelidou assim. Claro eu amava com todas as forças os Escoteiros do mar. E toda minha vida sempre tive em meu coração o Grupo Escoteiro do Mar Almirante Graça Aranha.

                         Fui até o escritório. Precisa mais de mim? Perguntei ao Chefe Cornélio. - Não Almirante pode ir – respondeu. Sai devagar e com calma. Meu andar já não era o mesmo. Muitas vezes cambaleava e alguns transeuntes achavam que eu tinha bebido. Risos. Quem sou eu. Fui sim um alcoólatra, mas hoje não sou mais graças a ela. Precisava de uma bengala. Meus proventos do INSS não dava. Eu sabia aonde ia. Sempre fiz este trajeto todos os sábados por muitos anos. Menos de um quarteirão descia uma pequena encosta e o mar com todo seu esplendor ali estava a me esperar. Amo o mar. Sempre amei. Só ela estava acima deste amor que eu tinha por aquelas águas azuis que encantaram e encantam gerações. Avistei o Scaler de fibra de vidro, ao lado o Caique (alguns chamam de caiaque), o bote também de fibra de vidro e o barco de alumínio fundo chato movido a motor de popa. Todos do meu querido Grupo do Mar Almirante Graça Aranha.

                         Já não eram os mesmos do meu tempo, afinal fazia mais de setenta anos que tudo aconteceu. De dentro do barco tirei meu banco de madeira. O sol em pouco tempo ia se esconder no horizonte. Engolido pelo mar. Sentei como sempre fazia e esperava ela chegar. Nunca se atrasou. Fazia questão de ver o por do sol junto comigo. Eu sempre sonhei em participar como Chefe. Tirar minha carteira de habilitação de Arrais, e sabia que a Capitania dos Portos nunca ia me reprovar. Todos os chefes do grupo tinham sua habilitação. Seis jovens seniores de dezesseis anos conseguiram autorização para conduzirem suas embarcações sozinhos. Ostentavam com orgulho o seu distintivo de Veleiro. Como sempre meus pensamentos eram como ventos revoltos. O passado não me abandonava. Meus sonhos nunca se concretizaram. Nem Chefe me autorização ser. Dizia que eu não falava muito, que não ria que meu semblante não transmitia o oitavo artigo da Lei do Escoteiro. Para ser Chefe diziam tem de ter estilo, aparência e um histórico diferente do meu.

                          Nunca desisti de ser Escoteiro do Mar. Mesmo depois que tudo aconteceu eu Insistia em ir ao Grupo Escoteiro todos os sábados. Pela manhã passava a blusa, a calça com perfeição. O meu chapéu de Marinheiro de brim branco nunca perdeu o vinco. A camisa e o calção de brim mescla nunca mudei. Meu cinto de couro tinha o maior carinho. Meu ritual começa ao colocar o meião preto, e ver se os sapatos estavam engraxados. Fazia questão de o lenço estar bem postado. Nem um botão desabotoado. Ao sair ainda dava outra olhada no espelho. 86 anos. 76 fazendo o mesmo todos os dias. Sempre pensei em comprar um dia o uniforme de gala. Nunca tive condições financeiras. O tempo! O tempo não se apaga, ele faz questão de mostrar que nada pode ser esquecido. Se ele pudesse falar diria que só assim poderemos crescer na eternidade. Como esquecer Bella? Como?

                         Lembro-me de tudo. De cada minuto que a conheci e vivi ao seu lado. Não era da minha patrulha. Eu fui da Lobo e ela da Onça Parda. Quando ela foi apresentada ao grupo no cerimonial o
Chefe fez questão de tocar seu apito de marinheiro por sete vezes. Uma espécie de saudação pela primeira jovem que iniciava conosco. Ali, aqueles meninos do clube do bolinha que só sabiam pensar nas aventuras que poderiam fazer no mar não olharam com bons olhos. Eu e Bella ficamos amigos. Passamos a nos encontrar durante a semana não todos os dias. Um dia sim um dia não. Seu pai nos encontrou. Eu tinha quatorze anos e ela treze. Tentei explicar que era Escoteiro do mesmo grupo, mas ele nem deu resposta. Procurou o Chefe da Tropa que me proibiu de vê-la. Impossível. Eu só pensava nela. Até meus estudos estavam sendo prejudicados. Minha mãe me chamou atenção. Meu pai eu não sabia quem era. Sumiu no mundo e nunca mais voltou.

                         Olhei de novo para o horizonte. Mais alguns minutos o sol iria se por. Mais alguns minutos ela ia chegar. Meu coração sempre batia descompassadamente. Pensando no meu passado relembrei um poema que li em um blog – O Escoteiro do Mar representa a água, que garante a vida de todos. Peço a ajuda de Poseidon para que mande um Tsunami e destruir as maldades do mundo, das injustiças e peço também a este Tsunami que se transforme em um manso regato para acalmar todos os corações aflitos e ansiosos. Quando lembrava uma emoção tomava meu ser. Machucava. Amar alguém sem poder tocar? Sem estar junto todos os segundos do tempo? Afinal o que é o tempo? Eu não sabia das respostas. Mas como se fosse um grande tela de cinema, comecei a ver o meu passado que os ventos do sul me traziam. Era assim todos os sábados. Por quê? Eu sabia de tudo. Cada segundo estava preso no fundo do meu coração. Não precisava recordar.

                            Bella! Venha comigo, vamos dar uma volta no mar? Só próximo à praia. Não tem perigo! – Bela me olhava curiosa e renitente. Sorria. Que sorriso. Nunca esqueci. Treze anos e linda como uma deusa. Joguei o Barco de alumínio nas ondas que insistiam em ir e vir. Dentro dois remos comuns. O motor não estava lá. Bella não queria. Uma volta somente eu prometi. Você sabe, vou passar uma semana sem ver você. Sei pai disse se nos ver juntos tira você do Grupo Escoteiro. Ainda não escureceu. A reunião hoje acabou mais cedo. Temos tempo. Ela não queria. Encontrávamo-nos ali onde ficavam as embarcações do grupo. Por ser distante de residências tínhamos liberdade de correr, de sorrir e uma vez ou outra eu pegava em sua mão. Quente. Macia, perfumosa. Ia para casa sentindo o aroma de seu perfume. Relutava em tomar banho. Não queria que ele desaparecesse.

                              Entrei no barco e ela entrou comigo. Eu ria, cantava, fiquei empolgado e em minha mente sonhava estar singrando os mares em um grande veleiro, ela ao meu lado sorrindo, perfumosa e eu a beijava. Um beijo a moda antiga. Um roçar de lábios que marcaria a minha vida para sempre. Até hoje não sei o que aconteceu. Estávamos a menos de vinte metros da praia. Um pé de vento? Um retorno mais forte de uma onda que voltou da praia? Não sei. Nosso barco começou a se afastar da costa. Gritava para ver se alguém nos ouvia. Ninguém. A terra sumiu. Em todos os lados só água e água. Na Patrulha aprendemos que se vai para o mar, avie-te em terra. Não tínhamos nada. Nem água. A noite chegou brava. Nuvens escuras apareceram. O barco a deriva mais a deriva ficou. Não tinha condições de remar. Nem ela. Meus braços que tentaram muito agora estavam prostrados. A tempestade gritava com trovões assustadores e seus raios iluminavam as enormes ondas que se formavam.

                               Eu sabia me orientar. Mas para que? A chuva e o vento forte faziam do barquinho uma folha de amoreira. Mesmo que avistasse o farol do Forte nada adiantaria. Pedia a Deus que outras embarcações quem sabe poderiam aparecer e nos ajudar. Mas quem sabia onde estávamos? Ninguém nos viu. Lembro-me das palavras do Chefe, nunca bebam água do mar. Ainda bem que chovia em um canto do barco a água empossou. Eu e ela estávamos de uniforme, mas sem nenhum apetrecho. Cantil? Em reuniões comuns? Deus ainda ajudou, pois o barquinho aguentou as enormes ondas. A chuva amainou. Estava molhado e cansado. Eu e ela dormimos ali aquela noite. Dois perdidos no meio do oceano. Acordamos pela manhã. Não havia pássaros sinal de que estávamos longe da terra. O sol chegou forte. Ainda deu para beber o resto da agua que se armazenou no bote. Era pouca. Logo ela sumiu. À tarde a sede era enorme. Ainda não tinha fome e nem ela. Ela chorou só noite. Encostou sua cabeça em meus ombros e chorou por muito tempo. Eu não sabia o que dizer. Consolar como? Estávamos perdidos e só Deus poderia nos salvar.

                              No segundo dia comecei a ficar desesperado. Foi ela quem teve as palavras de consolo. Não se desespere! Disse. Lembro que minha Chefe me dizia que o que aconteceu não tem volta. Nunca deveríamos ter saído despreparado. Nem uma lona temos para armazenar água. Se tudo agora aconteceu precisamos manter a calma. Dormi a pior noite da minha vida. Bella me abraçou. Acordamos com o sol queimando meus olhos e o dela. Deitados no
barquinho sentimos que ele estava parado balançando com as ondas. Levantei com dificuldade. Meu Deus! Era uma ilha ou o continente. Acordei Bella. Ela gemia. Estava febril. Com muito custo saímos do barco. Puxei-a pelos ombros até sair da água. Vi ao longe uma senhora correndo em nossa direção. Desmaiei. Acordei dois dias depois. – Dona! Onde está Bella? Pelo amor de Deus me diga que ela está bem! – Está sim. Seus pais vieram buscá-la. Ela não os reconheceu. Parecia estar cega!

                               O tempo passou. Um ano talvez. Sempre ficava horas e horas em frente à casa de Bella. Nunca ela apareceu. Um dia na Missa de São Pedro eu a vi. Usava óculos escuros. Foi como uma faca penetrando em meu coração. Pensei em me aproximar, mas o olhar de seu pai me assustou. Fora tudo culpa minha. Quase não ia mais ao grupo. Parecia que eu era culpado sem direito a defesa. Era mesmo. Provoquei tudo. O tempo foi passando e um dia tomei uma decisão. Bati a porta da casa de Bella. Sua mãe assustou. – Bella vai casar comigo. Eu a amo. Nós vamos ficar juntos para sempre! – Demorou para convencer seus pais. Fiz dezoito anos e ela com dezessete me abraçou e jurou ser minha para sempre na Igrejinha de São Raimundo. Voltamos a frequentar o grupo. Era minha segunda paixão. Não fui o escoteiro do mar que deveria ter sido. Mas com Bella ao meu lado eu seria de novo. Mesmo sem enxergar eu seria seus olhos. Eu mostraria a ela a beleza das flores, ela iria sentir o perfume da primavera. Nada iria faltar. Trabalhava na Fabrica do Doutor Romeu.

                              Dez anos de casado. Dez anos de felicidade. Bella tinha uma angina no peito. Ninguém sabia. Morreu de um ataque fulminante num dia qualquer de janeiro. Eu queria morrer com ela. Não podia. Não tinha condições de viver sem ela. Dediquei-me mais ao Grupo do Mar. Era minha segunda paixão. Quem sabe ele poderia me dar à paz que eu queria? Cada sábado era esperado como se fosse ontem. Parei de sorrir. Não havia motivos. Falar? Falar o que? Por muitos anos todos me culparam pelo acontecido. A chefia do Grupo foi contra meu retorno. Mas aceitaram. Passei a ser um faz tudo no grupo. Nunca seria Chefe. Ninguém iria confiar em mim para sair mar adentro. Também não insisti, não adiantava. Ali no grupo Escoteiro eu a via em todos os lugares. Falava com ela. Riam de mim. - Agora deu para isto diziam. 

                             Olhei de novo para o mar. Meus pensamentos desapareceram. Ela estava chegando. A mais linda gaivota que um dia existiu. Não era uma gaivota qualquer. Era branca como a neve e eu sempre quando a via ficava fascinado pela sua beleza. Não chegava sem antes fazer lindas acrobacias. Desenhava no céu com suas asas enormes nomes que ninguém nunca soube o que era. Só eu. Ela com seus escritos fantásticos no céu dizia – Amo você! Amarei por toda vida! Eu ali com meu garboso uniforme de Escoteiro do Mar me levantava. Ela vinha suavemente pousar em meu ombro. Bicava de leve minhas faces. E juntos ficávamos vendo o por do sol, até ele sumir do outro lado do oceano. Ficávamos os dois até altas horas da noite. Quem um dia passasse por ali diria que era loucura. Uma gaivota não fala. Um Velho a conversar com ela?

                              Demorou-se mais de uma semana para darem falta do Almirante Ramon. Ninguém nunca pensava nele como mais um. Não havia mais rancores, mas ele era apenas uma figura apagada. Deram falta de um caíque. Seis meses depois uma fragata da marinha o encontrou a deriva bem longe da costa. Em um sábado uma Patrulha de valorosos Escoteiros do Mar preparava-se para partir rumo a Ilha das Cabras. Acampamento de dois dias. Puseram-se no mar e um deles percebeu duas gaivotas sobrevoando seu Scaler. Todos olharam para o céu e pareciam que elas queriam dizer alguma coisa. Maria Bonita uma escoteira do Mar conseguiu ler. Não acreditou, mas mostrou aos demais Escoteiros o que estava escrito. – Bons Ventos escoteiros do Mar! Não façam do mar um obstáculo, pois ele é o caminho (Amyr Klink). Todos ficaram estupefatos. O vento soprou com mais força, a vela esticou suas asas para frente. Um sorriso brotou e logo o barco navegava para mais uma aventura. Era como se fosse o Rataplã dos Escoteiros do mar! Alguém gritou – Rumo sota-vento! Em frente vamos navegar!


Seja como as ondas do mar
que mesmo quebrando contra os obstáculos,
encontram força para 
recomeçar.


** -- Alguns termos técnicos usados neste conto, foi uma colaboração do Chefe Ronaldo Morgado.


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Era uma vez... Em uma montanha bem perto do céu...

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