Comece fazendo o
que é necessário, depois o que é possível, e de repente você estará fazendo o
impossível.
Lendas escoteiras.
As memorias do Capitão
Pedro Muriel.
“Esta é uma história de
ficção, qualquer semelhança com fatos, pessoas vivas ou mortas não passam de
uma coincidência”.
Estive em Diamantina Minas Gerais duas
vezes. Antigo Arraial do Tejuco foi crescendo quando da descoberta de diamantes
em 1729. Existem mil histórias da cidade terra natal do nosso inesquecível
Presidente Juscelino
Kubitschek de Oliveira e das lembranças dos exploradores de diamantes, que
deram bons filmes e enredos de uma centena de livros. Hoje somente vou
contar uma. Afinal é uma história escoteira e nada melhor que entreter meus
amigos com contos que trazem saudades e que fortalecem o presente. Tudo que lá
existe me prendeu na primeira e na segunda vez. Lá pelos idos do final da
década de sessenta lá estive a pedido de Diretores do Lyons Clube da cidade que
se interessavam em iniciar um Grupo Escoteiro. Na pensão de Dona Adelina me
sentia em casa. Gostava da sua cozinha e o restaurante era nos fundos, com uma
linda vista de montanhas e um lindo lago de águas azuis, claro durante o dia.
Foi ali que conheci um senhor grisalho, já com seus oitenta ou mais anos que sentado
na mesma mesa pouco trocávamos palavras. Ele não me olhou uma única vez.
Fiquei três
dias em diamantina. Era para ser dois. Esta história é o motivo do terceiro. No
segundo dia no almoço lá estava à figura de cabeça baixa sem prestar atenção a
ninguém. Quando me sentei ele me olhou e disse – Escoteiro? – Sim senhor,
respondi. - Humm! Tenho boas lembranças. O almoço foi servido e não falamos
mais nada. À tarde sentei na varanda que fazia vista com a cidade esperando
chegar a hora do retorno. Meu ônibus partiria às oito da noite. Vi quando ele
sentou ao meu lado. No inicio calado e olhando o horizonte como se fosse voar e
sair do seu habitat e ir viver em plagas distantes. Sem me olhar perguntou – O
escotismo hoje como está? – Em breve resumo expliquei para ele como estávamos
naquele final de 1967. Ele não me olhava e mantinha os olhos firmes no
horizonte. Não me interrompeu uma única vez para perguntar. Dona Adelina com
sua eterna gentileza nos serviu café biscoitos e bolos. O silêncio reinou por
alguns minutos quando ele começou a falar.
- Há muitos e
muitos anos nós tivemos um Grupo Escoteiro aqui em Diamantina. Foram mais de
doze anos a garotada se divertia a beça correndo aqui e ali em busca de suas
aventuras. Nunca tivemos nada igual. Se não fosse o Capitão Pedro Muriel que
foi quem organizou e depois de tudo que aconteceu, quem sabe o grupo existiria
até hoje. – Me interessei pelo assunto, mas não falei nada. Deixei-o narrar.
Nunca me olhou nos olhos a não ser quando terminou a história. – Ele narrava
pausadamente, com dificuldades, pois sua respiração não era boa. – O Capitão
Pedro Muriel apareceu um dia na cidade e ninguém sabia de onde veio e para onde
ia. Aqui assentou praça e nunca mais saiu da cidade. Comprou uma casinha lá no
fim da Rua Santa Cecília, e ele mesmo pintou de azul claro, janelas e portas
brancas, fez uma cerca de metro de altura em volta casa e pintou também de
azul. Ele não fazia nada durante o dia a não ser cuidar de sua casa. Plantou
flores, árvores frutíferas e o novo dono hoje se deleita com as mangas, goiabas,
laranjas e mexericas que dizem são as melhores da redondeza.
- Ele continuou
devagar, mas sem ficar matutando o que ia dizer ou mesmo a tentar recordar todo
o passado do Capitão Muriel. Quando deram as primeiras laranjas e goiabas a
meninada ficava em volta de “butuca” pensando em como tirar algumas delas já
que o Capitão não saia nunca de casa. Um dia ele abriu o portão e deixou a
turma se refastelar das frutas maduras. Exigiu somente que as verdes deixassem
no pé. Assim começou uma bela amizade entre eles. Tonico, Mateus, Nonato, GG,
ou melhor, Geraldo e Acácio eram frequentes. Passaram a frequentar sua casa e
tanto insistiram que ele foi almoçar na residência de cada um. Os pais ficaram
encantados, pois ele sempre ia com seu uniforme de Capitão apesar de que
ninguém nunca perguntou de qual exército ele pertencia. Uma amizade das famílias
cresceu de tal forma que vizinhos parentes e outros queriam conhecer o Capitão
Pedro Muriel. Interessante que ninguém nunca perguntou a ele de onde tinha
vindo, se tinha família, se tinha casado, nada.
Não demorou
muito tempo para ele sugerir fundar um Grupo Escoteiro na cidade. A ideia
fervilhou de canto a canto. Centenas de meninos queriam ser os primeiros
Escoteiros e foi preciso à intervenção do Doutor Euclides, Juiz de Direto da
cidade, que mandou chamar o Capitão Pedro Muriel. Quem pediu que houvesse
investigação foi o Prefeito Maciel, pois entregar a um desconhecido centenas de
meninos poderia ser um perigo para os bons costumes da cidade. Ninguém soube o
que o Doutor Euclides conversou com ele, mas a partir daquele dia eles ficaram
grandes amigos. Não me pergunte o que houve, pois eu sei, mas não vou contar. O
grupo começou a todo vapor. Não foi tão rápido, pois ele ficou com oito rapazes
por dois meses e só então admitiu mais jovens e olhe que a fila era imensa. Os
que não puderam entrar reclamaram com o Padre Odorico, mas nada adiantou. O
Capitão Pedro Muriel foi irredutível. Havia sim uma chance, mas ele queria
primeiro ver se tudo daria certo. Se assim fosse ele iria convidar rapazes
aventureiros da cidade para serem treinados como chefes Escoteiros. Mocinha de
Jesus uma linda jovem dos seus dezenove anos foi escolhida para os lobinhos.
De vento em popa
o Grupo Escoteiro tomou um rumo que na cidade não se falava de outra coisa.
Precisando chamem os Escoteiros, era o lema. Nas paradas eles brilhavam e
próprio Capitão dava sua colaboração nos dois Colégios e os Grupos Escolares
como Professor de educação física. A cidade sorria com a escoteirada
uniformizada e muitos compareciam nas escolas vestidos como Escoteiros.
Fazendeiros disputavam seus terrenos e locais para que eles fossem acampar. Era
sempre uma festa a chegada deles e a saída. Um dia Mocinha de Jesus chegou
chorando em casa. Não quis contar o que aconteceu e nunca mais voltou para seus
lobinhos. Ela tinha duas assistentes que sorriram embevecidas com tal honra de
chefiar as alcateias que já eram duas. Ninguém perguntou ao Capitão Pedro
Muriel o que aconteceu e até hoje acho que só ele sabe, pois Mocinha de Jesus
foi embora da cidade e nunca mais voltou.
Um dia o Juiz Doutor Euclides já
amicíssimo do Capitão Pedro Muriel recebeu uma carta da Direção Escoteira da
Região, perguntando se existia ali um grupo e porque não foi registrado
conforme normas. Inquirido o Capitão não disse nada. Se ele achava que assim
estava bem o Doutor Euclides não tocou mais no assunto. Foi então que aquela
saga de um escotismo forte e rijo nas plagas diamantinenses começou a
desmanchar. Em um acampamento no Vale da Neblina um Escoteiro de doze anos
chamando Gilberto sumiu. – Como sumiu todos perguntaram ao Capitão Pedro
Muriel. Ele deu de ombros e sumiu nas matas do Vale da Neblina por vinte dias.
Ninguém sabia o que fazer e esperavam o capitão para saber o que realmente
aconteceu. A patrulha só deu pela sua falta a tarde, pois participavam de um
grande jogo e nem notaram. Os Pais de Gilberto, gente humilde estava
desesperada. O Delegado Jota Man organizou um centena de moradores e foram
todos procurar no Vale da Neblina.
Dois dias
depois, bem perto da nascente do Jequiri encontraram o menino encostado a um
enorme Jequitibá florido, em volta dele centenas de pássaros e pequenos animais
que lhe davam água e comida tirada das matas, em sua cabeça uma enorme coroa de
flores e ele o menino estava vivo! Levado as pressas para o hospital os médicos
disseram que ele estava forte e não sofreu nada com a falta de alimentação. O
Capitão Pedro Muriel sumiu sem ninguém saber para onde tinha ido. Gilberto
nunca contou o que houve. Parecia que uma nevoa se formou em sua mente. Lembrava-se
de tudo da escola do grupo e sua tropa, mas como ele foi parar ali nunca soube.
Sem uma liderança o grupo Escoteiro foi aos poucos encerrando suas atividades.
A meninada voltou as suas lides de folguedos e em meses quase ninguém falava
mais em escotismo. Por mais de oito anos ninguém deu noticia do Capitão Pedro
Muriel. Ele devia saber o que houve para sumir assim.
Dez anos
depois ele surgiu maltrapilho, barbudo, sem dentes saindo de dentro das matas
do Vale da Neblina. Parecia mudo cego e surdo. Em sua casinha morava os pais de
Gilberto que homem feito foi para a capital fazer sua vida. Ninguém explicou
porque o Tabelião Salatiel tinha em sua posse um documento que passava a casa
do Capitão para o nome dos pais de Gilberto. Dona Adelina acolheu o capitão. Um
quartinho nos fundos, alimentação e outras pequenas despesas. Ele lavava sua
roupa e passava e ficava o tempo sentado aí onde o Senhor estava a olhar para
as montanhas ou para o vale escondido nos fundos da pensão. – Ele parou de
falar e notei uma pequena lágrima em seus olhos. – E ninguém soube o que houve
com a Akelá por ela ter saído do grupo? – Ele não respondeu. – E o menino
Gilberto? – Ele me olhou com os olhos marejados de lágrimas e me disse que
Gilberto foi uma vitima do destino. Ele não ia morrer, pois sabia que o Capitão
quando foi a sua procura o encontrou, mas não pode reconhecer. O capitão parece
que tinha ficado cego surdo e mudo. Um Deus todo poderoso fez o seu milagre e
os animais e pássaros a sua parte.
Ele parou de falar, abaixou a cabeça e
entrou na Pensão. Olhei no relógio e eram seis e meia. Tinha uma hora para
acertar as contas com dona Adelina e chegar à Rodoviária. Ao pagar perguntei a
Dona Adelina sobre a história que tinha ouvido – Ela me olhou e calmamente
disse que sabia pouco. Chegou à cidade a menos de seis anos e só tinha ouvido
falar de tudo. - Mas olhe completou, dizem que Mocinha de Jesus nunca se casou.
Dizem que seu amor pelo Capitão foi maior que tudo e foi embora de tristeza por
não ser correspondida. Ela voltou um dia. Quase ninguém a reconheceu. Tinha
umas economias e montou uma pensão. – Olhei para Dona Adelina perplexo! A
senhora? Ela riu e completou - A vida é assim meu jovem. Nada pode parar neste
mundo e tudo tem uma razão de ser – E o Capitão ainda é vivo? – Claro que sim!
Respondeu – Você não estava a conversar com ele na varanda?
“O impossível
existe até quando alguém duvide dele e prove o contrário”.
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