A compaixão pelos animais
está intimamente ligada à bondade de caráter,
e quem é cruel com os animais
não pode ser um bom homem.
As aventuras de Juliano – Um valente Escoteiro e a Jaguatirica
Amarela do Pântano do Demônio.
A noite havia
chegado de mansinho. A fumaça naquela clareira se misturava com o orvalho que soprava
de leste para oeste. A pequena brisa da tarde ainda trazia em nossas faces o
frescor da primavera. Gil tinha feito uma sopa de macarrão com batata nos
“trinques”. Ao lado do fogão tripé, um bule negro de alumínio fazia nosso café
noturno borbulhar. Estávamos em cinco. Nossa Patrulha os Tigres Brancos tinha sete
patrulheiros. Ali estava eu, Nuno, Gil, Denis, Tiago o Monitor. Maneco e
Toninho não vieram. Estavam com caxumba. Como reclamaram por não vir. As duas
barracas de meia lona já estavam armadas. Nossas tralhas preparadas para
dormir. Estávamos na estrada há dois dias. Um acampamento volante de quatro
dias. O Chefe Gustavo nos encarregou de visitar o sitio do Padre Totonho, que
agora aposentado da igreja vivia ali seus últimos dias. Ele mesmo nos convidou
a acampar lá. Longe, quase vinte e cinco quilômetros para chegar. Se achássemos
um bom lugar, devíamos fazer um relatório e um croqui. Fácil. A Patrulha
tiraria de letra. Para chegar lá Denis ficou encarregado do Percurso de Giwell.
Nuno logo
tirou sua gaita cromática da mochila. Ele tocava maravilhosamente. Dominava bem
todas as musicas escoteiras e quando as notas musicais da Canção da Despedida
eram lançadas no ar, parávamos de conversar e nossos pensamentos viajavam para
o passado, onde vários fogos de conselhos deixaram saudades. Desta vez tocou
outra, A Canção do Clã. Ele ouviu quando os pioneiros acamparam conosco no ano
passado. Era outra musica linda. Em uma montanha bem perto do céu, existe uma
lagoa azul! Quando ele tocava era como se nos estivemos escalando uma linda
montanha azul. Algum tempo depois, jogando conversa fora Gil me pediu que
contasse de novo a viagem com meu pai no Pântano do Demônio. – Mas já contei
duas vezes, falei! – Mais uma, insistiu. Acho que Nuno e Tiago ainda não
ouviram. Era uma história real. Aconteceu quando fiz onze anos. Ou seja, há três
anos. Não sei se me trazia boas lembranças, mas meus amigos não só da Patrulha
como da tropa sempre me pediam quando em conversa ao pé do fogo como agora ou
em Fogo de Conselho que contasse a história. Ninguém nunca reclamou. Desde
pequeno que tinha o dom de Contador de Histórias.
Estávamos
sentados em um tronco seco, que já estava ali e onde fizemos nosso fogão tripé
para aquela noite. Era uma sexta e desde quinta marchávamos na estrada para o
nosso acampamento volante e sabíamos que no dia seguinte no sábado iriamos
chegar. Senti que numa Aroeira próxima, uma coruja “sustava” a nos olhar com
seus olhos negros reluzentes. Eu era reconhecido como amigo dos animais e das
plantas e tinha por todos os bichos, pássaros e insetos um respeito enorme. Não
só pelo nosso sexto artigo da lei, mas porque sempre fui assim desde que nasci.
Incapaz de fazer qualquer maldade com eles. Diferente do meu pai. Eu gostava
muito dele, mas ele adorava caçar. Nunca me deu chance de dizer para ele que
era errado. Um dia achei umas palavras de Chico Xavier e como meu pai se dizia
espiritualista entreguei para ele o que estava escrito: - Nós seres humanos
estamos na natureza pra auxiliar o progresso dos animais, na mesma proporção
que os anjos estão para nos auxiliar. Portanto quem chuta ou maltrata um animal
é alguém que não aprendeu a amar.
Acho que não
ajudou em nada. Meu pai tinha uma sala separada da casa aonde guardava seus
troféus de caça. Na parede ele tinha cabeças empalhadas de Tamanduá Bandeira,
Queixada, Jacarés, Ariranha, Cachorro do mato lobo Cinzento, Veado-galheiro e
outras dezenas. A única que admirava era uma linda Arara Azul. Morria de pena,
pois sempre gostei de ver as aves voando e os animais soltos nas campinas ou
florestas. Todos sabiam meu amor pelos animais e pássaros. Quando acampávamos
na Mata do Riacho Grande, havia um Pintassilgo, que eu chamava de Doce de Coco,
que sempre vinha ficar no meu ombro. Eu podia correr cantar, armar barraca,
fazer pioneirias e lá estava o Doce de Coco no meu ombro. Todos ficavam
abismados. Ele não ia ao ombro de ninguém. Claro sempre levei na mochila um bom
bocado de alpiste e ele adorava. Não só ele como dois Tico-ticos amarelos que
vinham comer em minha mão.
Ajeitei-me
melhor no tronco, estiquei as pernas, peguei minha caneca esmaltada e coloquei
um cafezinho. Logo Gil serviu alguns biscoitos em um prato. Respirei fundo e
comecei a contar minha história. Eu gostava dela. Não sei por quê. Quem sabe
foi uma que me marcou muito. – Voces todos conhecem meu pai, comecei. Eu o amo
muito, mas ele gosta de caçar. Sempre se achou um grande caçador. Nunca me
contou, mas soube que quando jovem fez um Safari na África. Tem muitos troféus
lá em minha casa e voces viram, mas não tem troféus de animais africanos. Ele
sabe do meu amor pelos bichos. Não me condena. Sei que gosta muito de mim e
quase não me conta suas histórias, suas jornadas, suas aventuras de caçada nas
selvas brasileiras. Uma vez me contou que esteve no Alto Amazonas. Não conseguiram
caçar nada. Ele, seus amigos Zé Barrica e Zoroaldo o Barbeiro foram
aprisionados pelos Kalapálos. Não entrou em detalhes. Só contou que uma unidade
de selva do exercito brasileiro os soltaram.
Mas meu
pai nunca se dava por satisfeito. Mesmo com a proibição de caça pelo IBAMA ele
dava suas escapulidas sem ninguém saber. Todos voces sabem que minha mãe morreu
quando nasci. Meu irmão Ricardo agora moço, está estudando Engenharia
Mecatrônica na capital e pouco nos visita. Ele trabalha e se sustenta. Minha
irmã Matilde casada mora na Espanha. Ele me escreve muito e diz que é muito
feliz. Já se ofereceu para pagar minha passagem para conhecer meus sobrinhos lá
em Salamanca. São cinco. Ela me disse que perto de sua casa tem escoteiros e escoteiras.
Que eu vou gostar de ir lá. Mas continuando, um dia meu pai me chamou até ao
seu habitat preferencial. Ou seja, a sala de Troféus. Vi nele um semblante de
alegria, seus olhos brilhavam quando estava ali.
-
Juliano, mês que vem eu o Zoroaldo e O Zé Barrica, iremos fazer uma caçada no
Pantanal do Mato Grosso. Zoroaldo vai levar seu filho Dondinho. Ele já fez
dezoito, mas pensei em convidar você. Nunca o chamei para isto. Sei que não
gosta. Mas meu filho será minha última caçada. Não farei mais nenhuma. Você não
precisa matar nenhum bicho. Prometo que vai gostar do lugar. É lindo. Iremos comer
pela manhã um Sarrabulho, um prato delicioso, vai beber o Tereré, servida em
cuia, e farei para você um caldo de piranha pantaneiro que você nunca mais vai
esquecer. Dê-me este prazer meu filho. Adoraria sua companhia. Iremos de avião
até Corumbá e você vai poder conhecer a cidade, fica a margem esquerda do Rio
Paraguai. Faz fronteira entre o Paraguai e a Bolívia. Dizem que é considerada a
Capital do Pantanal. Iremos ficar lá um dia e de Chalana iremos subir o Rio
Paraguai até a Serra de Albuquerque. É lá que iremos encontrar a Jaguatirica,
um gato do mato, considerado um dos maiores felinos do brasil.
Fiquei
pensando naquele convite. Dizer o que? Um pedido do meu pai? Nunca ele me pediu
nada. Sei que estava "Velho", mas ainda tinha forças para trabalhar
na sua oficina de carpintaria. Nunca pensei em vê-lo atirando em um animal
qualquer. Seria um visão que não gostaria de guardar. Mas negar? Afinal seria
uma viagem maravilhosa. Eu Escoteiro de Primeira Classe teria oportunidade de
aprender muitas coisas. Disse sim ao meu pai. Estávamos em junho e no dia cinco
de julho iriamos partir. Voces lembram quando dei adeus para cada um. Não fui
ao acampamento da tropa na cidade de Viçosa. Queria ter ido. Dizem que os
escoteiros de lá eram amigos e estavam prontos a nos receber com carinho. Mas o
convite do meu pai não podia ser negado. Nunca tinha viajado de avião. Foi
fantástico. Fiquei na janelinha. Que coisa maravilhosa meu Deus! Chegamos pela
manhã em Corumbá. Ficamos em uma pensão que meu pai já conhecia as margens do
Rio Paraguai.
À
tardinha meu pai e seus amigos compraram tudo que precisavam. Iriamos ficar cinco
dias na Serra do Albuquerque. Acamparíamos as margens do Pântano do Demônio.
Ele não sabia por que este nome. Era uma linda lagoa com águas azuis. A viagem na
Chalana do Capitão Traíra (que nome eim?) foi de tirar o folego. À tardinha
desembarcamos próximo a Serra de Albuquerque. Disseram-nos que com uma hora
chegaríamos até ao Pântano do Demônio. Para mim tudo bem. Estava acostumado.
Quem reclamou muito foi o Dondinho, filho do Zé Barrica. Não estava acostumado.
Armamos as barracas e eu fiz um fogo e claro um fogão tropeiro meu conhecido de
longa data. Achei uns troncos finos e entrelaçados deram bons bancos para nós
quatro sentarmos. Fui dormir tarde. Eu não sabia das qualidades do meu pai em
conhecer a natureza, ao belo por do sol, e principalmente da esfera celeste.
Ele me explicou as direções e movimentos dos corpos celestes e outros pontos do
céu. Falou dos princípios círculos máximos da abóboda celeste. O equador, a
eclíptica e o horizonte. Era incrível como ele conhecia os círculos máximos,
onde surgem os equinócios e os pontos cardeais. Passei a admirá-lo mais e mais.
Era outro pai.
Levantamos cedo. Meu pai me disse que ficasse no campo. Ele o os outros
iam atrás da Jaguatirica. Na beira da lagoa acharam suas pegadas. Ele disse que
era questão de horas. Não foi preciso muito. Quando saiam por uma picada ela
apareceu. Imponente. Enorme. Toda rajada de amarelo. Não era uma, mas duas. Um
casal. Vi que a fêmea estava prenha e o perigo era grande. Meu pai estava com
sua Winchester 44 sem balas e os outros também. Nunca esperam que a Jaguatirica
aparecesse assim de repente. Ainda mais com uma companheira. Meu pai assustado
gritou para mim – Corra Juliano, corra muito! Vai ser uma carnificina a quem
ela pegar primeiro! Olhe, era um belo animal. Olhos grandes, um felino que
devia pesar uns sessenta quilos ou mais. Só o pulo dela daria para jogar no
chão cinco homens adultos. Não corri. Não era meu feitio. Nunca tinha visto
nada igual, mas caminhei em direção a elas calmamente. Meu pai gritou. Zoroaldo,
Zé Barrica e Dondinho sumiram no meio do mato.
Abri os
braços e sorri para elas. Meu pai não estava entendendo nada. A fêmea se
aproximou de mim. Lambeu minhas mãos. E depois deitou aos meus pés. O macho
ainda desconfiado. Mas chegou mais perto e pude acariciar seu pelo liso e isto
me trouxe uma enorme felicidade. Ambas deitaram aos meus pés. Sentei na grama.
Fiquei ali acariciando e falando baixo. Meu pai não se aproximou. Acho que
naquela hora acreditou que eu tinha pacto com o demônio. Só podia ser para
fazer aquilo. Zé Barrica, Zoroaldo e Dondinho estavam estupefatos. Fiquei ali
bons minutos com as duas Jaguatiricas. Depois elas se levantaram e foram embora
calmamente. Não houve tiros. Meu pai desistiu. Disse para mim que nunca mais
iria ar um tiro em um animal. Depois do que ele viu não tinha dúvidas. Falei
para ele baixinho o que tinha lido há tempos sobre matar os pobres dos animais
– Pai, eu li que os animais selvagens nunca matam por divertimento. O homem é a
única criatura para quem a tortura e a morte dos seus semelhantes são
divertidas entre si.
Ficamos
lá quatro dias. Sem dar nenhum tiro. Só conhecendo a beleza da Serra do
Albuquerque e do Pântano do Demônio. Nunca disse para ele, mas varias vezes saia
para um passeio na mata e encontrava as duas Jaguatiricas de pelo amarelo. Elas
corriam e eu corria atrás delas. Elas paravam e pulavam em mim. Sem machucar é
claro. Eu ria. Cheguei a fazer de montaria em uma delas que me jogou ao chão
gostosamente. Voltamos pela mesma Chalana do Capitão Traíra. Foi um dos
passeios mais maravilhosos que realizei. Dali em diante eu e meu pai mantivemos
uma amizade que nunca pensei em ter com ele.
Parei de
contar a história. Gil, Nuno, Denis e Tiago me olhavam com espanto e admiração.
Sabia que um dia iriam pedir para eu contar novamente. As lembranças seriam
eternas. Nunca iria esquecer a grande aventura que realizei com meu pai. Fomos
dormir. Cedo levantamos e partimos. Muitos sonhos na mente e no coração. Eu
gosto do escotismo. Amo tudo que faço. Adoro de coração acampar, viver ao ar
livre. Sou mesmo amigo dos animais. Queria vê-los todos eles soltos, os
pássaros no céu cantando alto. Quem sabe uma Jaguatirica para brincar comigo
nos meus acampamentos da vida. Isto é escotismo. Sempre disse aos meus amigos e
a todos que encontro. Escotismo? Sim, uma maneira de ser feliz!
As criaturas que habitam esta terra em
que vivemos, sejam elas seres humanos ou animais, estão aqui
para contribuir, cada uma com sua maneira peculiar, para a beleza e a
prosperidade do mundo.
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