Atenção! Se você tem coração fraco, não leia esta história. Pode
se emocionar demais.
As mais lindas histórias escoteiras.
Gloria feita de sangue. A última Luta de Manuelito.
Não
dá para esquecer, foi no último verão de sessenta e um. As chuvas de Santo
Inácio que todos esperavam não aconteceram como o previsto e ali, a beira da
Lagoa do Lagarto, o fogo de conselho já havia terminado. A escoteirada já se
recolhera. Aqui e ali a fogueira ainda se esforçava para mandar aos céus uma ou
outra fagulha brilhante. Todos já haviam se recolhido e eu resolvi ficar.
Panchito me fazia companhia. Bom amigo. Conhecemos-nos em Aguascalientes no sul
do México em cinquenta e oito. Ele já morava no Brasil há vinte anos, mas seus
pais residiam nesta cidade e ele a cada cinco anos voltava para fazer uma
visita. O motivo porque estava em Aguascalientes fica para outra história.
Deitamos a beira da lagoa sobre uma lona leve e admirávamos o vai e vem dos
cometas e satélites que giravam em torno da terra a grandes velocidades. Já
sentia o orvalho da madrugada se aproximando quando vi que Panchito chorava
baixinho. – O que foi? Perguntei. Olhe Chefe, sempre quando me lembro de
Manuelito meu coração bate forte.
Deixei
que ele se acalmasse e foi assim que ele me contou toda a história de
Manuelito. – Era um jovem de seus doze anos. Magro, raquítico, tamanho normal
para sua idade. Cabelos loiros, olhos negros fundos, nariz afilado estava na
tropa havia oito meses. Falava pouco e ficamos amigos. Assim como ele eu também
era da Corvo. O Gentil era o Monitor. Ótima pessoa. Tudo começou quando Gentil
comentou que na Corte de Honra foi discutido a data do próximo Grande Desafio. Nos
últimos três anos sempre foram realizados. Nunca fiquei sabendo como tudo
começou. Toda a tropa só comentava a vinda de mais três tropas de cidades vizinhas.
Ia ser um espetáculo a parte as disputas naquele ano. Seriam realizadas no
Estádio do Azulão Futebol clube, pois no ano anterior houve grande aglomeração
de pessoas no campinho de pelada em frente à sede prejudicando em parte a visão
de todos. – Não estava entendendo, mas deixei que Panchito continuasse sua
narrativa. – Chefe, precisava ver o olhar de Manuelito quando disse que o
primeiro lugar ganharia uma Faca Suíça e um Cantil do Exército. Nunca o vi
sorrir daquele jeito. – Fiquei com pena. Manuelito não tinha a mínima condição
de chegar as finais.
- Sabe
Chefe quando conto esta história para alguém, dão risadas. – Uma simples briga
de galo? – Mas isto se faz em todas as tropas a século! Mas Chefe, conosco era
diferente. Havia uma técnica própria. Cheguei a ver em um ano dois contendores
ficarem uma hora e meia lutando. Vi tantas lutas que eu mesmo desisti, pois
nunca cheguei além do nono lugar. Manuelito não. Perguntou-me a data, como ia
ser a seleção e se todos podiam se inscrever. – Disse a ele tudo que perguntou
e mais alem, disse também que ele nunca tinha lutado. Pediu-me que mostrasse
como se luta. Ficamos uma hora lutando. Ele mal se matinha em pé. Caia sempre.
Desistir? Jamais. Manuelito sonhava com a Faca Suíça. Só falava nela. Queria
ter uma e sabia que nunca poderia comprar. Uma semana antes da seleção, que
seria feita com todas as patrulhas por duplas Manuelito disse que estava
preparado.
-
Chefe, Manuelito estudou tudo. Desenhou. Treinou horas e horas em sua casa a
ficar parado ou pulando em um só pé. Suas mãos as costas pareciam aço. Não se
soltavam. Sabia fazer com perfeição uma Asa Direita ou esquerda (cotovelos em
forma de V). O Joelho do Papagaio aprendeu rápido. Mas era magro, respirava com
dificuldade e mesmo assim se mostrou um valente. O primeiro, segundo e terceiro
lugar já tinham dono. Neco, Lastimer e Juventino eram os melhores. O quarto
lugar foi disputado com galhardia. Manuelito a muito custo conseguiu o quarto
lugar. O Chefe Wantuil não acreditava no que via. Ele ficou preocupado. O corpo
de Manuelito não foi feito para aquele tipo de luta. Tentou falar com seus pais
que sempre arredios não iam à sede. Desistiu e deixou que Manuelito
participasse. Arrependeu-se muito depois. O grande dia chegou. Centenas de
pessoas já estavam alojadas nas arquibancadas. Poderia jurar que ali no inicio
do Grande Desafio tinha mais de três mil pessoas. Os parentes e vizinhos das
outras três cidades compareceram em peso.
Chico Nonato o comissário distrital abriu a competição. Chamou um a um
os dezesseis finalistas gritando alto seus nomes e conquistas escoteiras.
Quatro por tropa. Formaram em linha. Todos parrudos, fortões e Manuelito se
destacava pela sua magreza. Nas arquibancadas gritavam – Tira o magrelo! Tira o
minhoca! Ele de cabeça baixa não se incomodava. Sonhava com a Faca Suíça. Ele
sabia que não poderia ficar lutando por muito tempo. Sabia o que tinha
internamente e se ele brotasse em seu estomago iria ser levado à boca e aí não
ia ser fácil. Seria desqualificado na hora. Isto não poderia acontecer! – Não
foi difícil para Manuelito chegar as quartas de finais. Aprendeu e treinou dias
e dias a rodopiar com seu Joelho do Papagaio e deixava que os outros pulassem
sobre ele. A Joelhada era fatal. Ninguém acreditava no que via. Ficaram quatro
competidores finais. Ele ia lutar com um dos campeões do passado. Matusalém era
famoso. Quando ele olhou para Manuelito sorriu. – Este está no papo. - Não quer
desistir? Perguntou. Uma hora de luta. Sempre Manuelito se esquivando.
Manuelito o sentiu no estomago. Deus! Deus meu! Não deixe que suba! Ajude-me.
Eu preciso desta Faca Suíça! E meu sonho meu Deus!
Ganhou para espanto de todos. Sentiu que suas pernas e suas entranhas
não aguentariam a final. Botelho Papa Léguas era o finalista da Tropa de
Jaguatiruna. As apostas perdiam a graça. Ninguém apostava em Manuelito. Eram
trinta por um e à medida que ele vencia caia. Agora estava em dez por um. Um
silêncio enorme e a luta de morte começou. Ambos se estudando. Botelho Papas
Léguas não subestimou Manuelito. Se ele chegou até ali é porque era bom. Viu
uma brecha, viu os olhos de Manuelito piscando e se fechando. Deu oito saldo
longos e pegou Manuelito de jeito com a asa direita. Manuelito conseguiu se
esquivar, mas a esquerda roçou com força seu olho direito. Uma dor incrível!
Manuelito quase perdeu o equilíbrio. Não iria aguentar outra. O sangue agora
estava enchendo sua boca. A hemorragia que seu pai sempre falava estava chegando.
Sabia que uma ou duas veias tinham partido. Se não parasse iria morrer.
Não podia, não podia parar! Meu Deus me ajude! Dê-me mais uns minutos,
daria minha vida para ter esta Faca Escoteira!
Botelho Papa Léguas não sentiu piedade. Ele também queria ser o campeão
do torneio. Nunca tinha ganhado. Entrara para o escotismo pelo premio e claro
pela fama. Afinal perder para aquele escoteirinho de nada? Raquítico, pequeno,
e agora chorando? Sim Manuelito tinha os olhos cheios d’água. A asa esquerda o
pegou de jeito entre os olhos. O sangue quente na boca. Firmou os lábios.
Tentou engolir. Não deu. Não iria soltar o sangue na grama verde. Seria
desqualificado! Pulou uma duas vezes. Fez um sinal para Botelho Papa Léguas
como a dizer – Venha moleza! Botelho Papa Léguas não se fez de rogado. Pulando
com uma rapidez incrível preparo sua asa direita para liquidar logo esta
contenda. Infelizmente ele sabia que Manuelito ia se estatelar no chão. Mas não
podia ter pena nem dó e nem piedade. Como dizia sua Avó, jogo é jogado e
lambari é pescado.
Manuelito viu num relance o que Botelho Papa Léguas ia fazer. Sabia que
não podia desviar muito. Se pulasse o sangue ia jorrar de sua boca. Ele sentia
mais e mais a pressão do sangue subindo goela acima. Uma dor incrível no
cérebro, o corpo tremendo. Esperou. Faca Suíça! Não vou perder você. Deus vai
me dar forças! Manuelito esperou até que Botelho Papa Léguas se virasse e
novamente usasse a lateral esquerda para lhe bater a toda no seu ombro com a
Asa Direita. Quando sentiu o hálito quente da respiração de Botelho Papa
Léguas, Manuelito abaixou e levantou de uma vez. Pegou Botelho Papa Léguas
desprevenido. Ninguém esperava que ele usasse este truque. Velho conhecido de
todos. O vai e vem do corpo subindo e descendo. Botelho Papa Léguas perdeu o
equilíbrio. Nas arquibancadas um murmúrio alto. Todos ficaram em pé. Não
acreditavam no que viam. Todos só viram Botelho Papa Léguas se esparramar pelo
chão. Os apostadores não acreditavam na cena estática que se apresentava. Eram
dez por um. Impossível diziam.
Manuelito se equilibrou ainda na perna direita por alguns segundos. Suas
mãos se soltaram e foram forçadas no ventre como a querer interromper o sangue
que agora saia aos borbotões dos seus lábios. Não dava para segurar mais.
Rodopiou em si mesmo e caiu esparramado no chão gemendo alto e querendo sorrir.
Afinal ele ganhou a luta. A Faca Suíça era sua! O sangue vermelho se misturou
ao verde da grama. Um colorido sem graça. Vários chefes acorreram. Viram
Manuelito com enorme hemorragia interna. Desmaiado. A morte parecia que ia
chegar. Um carro apareceu no campo. Ele foi transportado para o hospital da
cidade. Uma semana depois souberam que ainda estava na UTI. Perdera muito
sangue. Precisava ir para a Capital. Seus pais choravam, mas não condenaram o
filho. Se ele morrer foi porque sabia que seu sonho seria maior que a morte!
Seis
meses depois em uma tarde de agosto bolorenta, um sol preguiçoso no céu
Manuelito apareceu na sede em uma cadeira de rodas uniformizado. A tropa parou
espantada. Ele sorria, um sorriso tênue como se o sol ali como ele estivesse
esperando para levá-lo. Seu pai estava junto. Disse que ele insistiu em vir.
Queria receber a Faca Suíça dos seus sonhos. O Chefe Wantuil foi até sua casa e
voltou com ela. Todo o grupo se formou. Honra ao mérito ao escoteirinho herói.
Como bons escoteiros todos prestaram continência em posição de sentido a
Manuelito. Pediu que eu entregasse a ele a faca e colocasse no seu cinto do
lado direito. Uma honra para mim Chefe! Um Anrê foi dado. Uma explosão de
alegria em todos os presentes. Um exemplo para ser lembrado por toda a vida.
Manuelito ainda viveu mais um ano. Morreu com treze anos. Só então
ficamos sabendo que ele era tuberculoso. Sua família também. Uma época em que a
medicina não tinha cura nestes casos.
Seu pai sabia, mas como tantos outros escondiam, pois ele tinha exemplos
de pessoas portadoras de tuberculose que foram defenestrados pela sociedade.
Eram párias abandonados à própria sorte.
Uma semana antes de morrer, Manuelito me pediu que quando fosse para o
Campo Santo, que a Faca Suíça estivesse no cinto, pois queria estar
uniformizado. Chefe, meu Deus! Quanta tristeza. Milhares de gente ali em volta
da sua ultima morada chorando. Eu Chefe, era o que mais chorava. Não sabia como
enfrentar tudo daí para frente. Ate hoje ainda vou lá visitá-lo. Falo com ele sempre.
Sei que ele não está ali, mas isto alivia minha dor e me conforta.
Panchito
se levantou. Chorava copiosamente. Desculpe Chefe. Desculpe. Melhor é ir para
minha barraca. E lá foi ele me deixando ali a beira daquela lagoa cinzenta, ao
lado de uma fogueira apagada, só cinzas e um orvalho caindo e molhando minhas
faces. Vi que as minhas lágrimas também se misturavam ao doce orvalho do
amanhecer. Uma bruma cinzenta pairava sobre a lagoa. Pensei em ir dormir e ir
para minha barraca. Não fui. Sentei a moda índia e fiquei ali até o amanhecer
de olhar fixo no horizonte, acima da Lagoa do Lagarto. Não houve sol aquele
dia. Uma chuva leve e intermitente começou a cair. Um peixinho pulou sobre as
águas cinzentas da lagoa. Minha mente voltava ao passado. Manuelito, um sonho
realizado. Uma morte honrosa. Um menino que foi homem para aceitar o seu maior
desafio. Uma luta sem gloria. Ou melhor, Gloria feita de Sangue!
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