quarta-feira, 10 de julho de 2013

O Mistério do Corvo da pena dourada.

Lendas escoteiras.
O Mistério do Corvo da pena dourada.

Ave ou demônio que negrejas!
Profeta, ou o que quer que sejas!
Cessa ai, cessa! Clamei, levantando-me, cessa!
Regressa ao temporal, regressa
À tua noite, deixa-me comigo.
Vai-te, não fica no meu casto abrigo
Pluma que lembre essa mentira tua,
Tira-me ao peito essas fatais
Garras que abrindo vão a minha dor já crua. "
E o Corvo disse: "Nunca mais.”.
Edgar Allan Poe.

                  Tanto tempo são passados, mas as lembranças permanecem eternas. Quem me contou foi Lávio, ou melhor, o Chefe Lávio quando em uma noite linda sem luar, reunida em volta de uma
fogueira perdida na margem do Rio Vermelho um sono enorme e eis que ele começa a contar uma história, parecendo tirar as palavras de dentro do chapéu de três bicos que foi trazida pelo vento noturno que soprava o sudoeste do acampamento. Era um acampamento de chefes. O terceiro que participava. A cada dois anos se fazia convite aos grupos, e cada um levava seus chefes em patrulhas de cinco, com seu material de sapa e intendência. A taxa era mínima e este ano não passou de dez reais para que cada um recebesse um distintivo e uma pasta pequena com lembranças do campo. Sempre fora sucesso na região. Neste terceiro passávamos de quatrocentos chefes. Uma apoteose. A cada ano um nome diferente de uma tribo indígena brasileira. Este era o III Kalapalo. Tribo da região do Alto Xingu no Mato Grosso.


                   Eu sabia que a história do Chefe Lávio seria diferente. Já o conhecia de outras plagas. O típico Chefe que não ri. Discreto um olhar profundo e muito ponderado. Mas sabia que sua Tropa o adorava. Deitei em minha manta, o céu lindo estrelado, sorria a passagem de uma estrela cadente. A aragem vinda da margem do rio era gostosa e saudável. – Foi a muito, há muito tempo. Ele começou. Eu ainda morava em Monte Azul. Uma pequena cidade esquecida de Mato Grosso do Sul. Vida simples, meninada solta nas ruas a soltar suas pipas, a brincarem com suas bolinhas de gude, abaixar a cabeça em sinal de respeito para dona Marly ou dona Noêmia nossas professoras quando passavam. Na missa de domingo a melhor roupa. Eu mamãe e papai nunca faltamos. Padre Lemos na porta a nos esperar. Cumprimentar um a um. No púlpito uma surpresa. Um calafrio correu na meninada presente – Amigos! Nossa cidade vai organizar um grupo de Escoteiros. Inscrições abertas no Clube Remanso todo sábado à tarde!

                    Acordei às três da manhã. Papai! Vamos! - Onde? Fazer minha inscrição. Nem almoçamos. Uma fila enorme. Chefe Noel risonho cumprimentava a todos. A inscrição está feita. Agora é aguardar. Iremos treinar alguns para serem os lideres e daqui a três meses vamos chamar todos. Não foram todos. Eram muitos os inscritos. Tempos depois, eu quase esquecendo um Escoteiro uniformizado bateu em nossa porta avisando. A vaga do Lávio está aberta. Deve comparecer sábado às duas da tarde. Poxa, o tempo não passava. As onze almocei e as doze lá fui eu levando meu pai pelas mãos. Meu primeiro dia. Sorteio. Tropa I. Patrulha Corvo. Que orgulho. Sete patrulheiros. Era mais um. Leones o Monitor nem sempre calmo com a gente. Primeiro acampamento em Águas Cantantes. Fiquei maravilhado. Nunca me senti herói como agora. Não falava outra coisa. O Monitor disse que eu devia passar um dia na biblioteca para conhecer nosso líder. O Corvo. Decorei tudo. Não faltou nada. Orgulhava-me de ser um corvo.

                     Seis meses depois já me considerava um veterano. A Patrulha se movimentava bem e apesar de não ser a melhor não devíamos nada as demais. Quando fizemos um ano de Patrulha fizemos um acampamento em Morro Sião. Ao pé do morro uma formidável cascata formando um lago ideal para dar uma boa pescada. Dizem que não é verdade, mas em um campeonato de pesca noturna com vara pesquei uma traíra de mais de três quilos. Ficamos acampados por quatro dias. No terceiro estava programada uma jornada de seis quilômetros, que o Chefe chamou de Procura da Mina do Fantasma. Deu a cada Patrulha um croqui, uma bussola, e uma carta prego. Nela as instruções eram claras. Duas horas de caminhada rumo NNE, encontrar uma grande seringueira de mais de quinze metros de altura. Virando-se para WSE encostados a árvore devíamos seguir por cento e cinquenta metros a contar no passo duplo. Sem erros. A Patrulha era boa nisto. Assim foi feito. Havia uma passagem em um barranco, largo, mas que dava para um enorme despenhadeiro. Ficamos longe dele.

                   Precisávamos tomar novo rumo. E a bússola? Quem ficou responsável? Era eu. Não achei em meus bolsos e nem no bornal que levei. Deu vontade de chorar. Leones me olhou com cara feia. Jair nem falou. Até Nonato o cozinheiro meu amigo não disse nada. – E agora? – Pense Lávio. Tente lembrar onde pode ter esquecido! – Fiz tudo e nada. Resolvi voltar pela trilha. No Barranco na trilha onde passamos parte dele cedeu. Toda a patrulha foi arrastada para o fundo do despenhadeiro. Mais de oitenta metros de queda. Ainda bem que não foi queda livre. No fundo da ravina caímos em vários arbustos cheios de espinhos. Uma dor horrível. Eu gritava de dor e meus companheiros também. Ficamos em pé. Difícil de mexer. Todos sentindo dores enormes. Tínhamos de sair dos espinheiros. Para onde ir? Até o Leones Monitor não sabia o que fazer. Ouvimos ao longe um grasnado de um Corvo. “Croc, Croc, Croc.” O avistei a uns cem metros em uma árvore. Ele voou em cima de nossas cabeças. Sempre indo a uma direção.

                   Não sei por que falei para o Leones que devíamos seguir o corvo. – Por quê? Ele disse. – Porque ele é o guia de nossa Patrulha. Ninguém riu. Com dificuldade conseguimos sair do espinheiro no
rumo que o Corvo voava. Paramos a beira de uma pequena nascente para retirar os espinhos. Grande jogo de seis horas porque levar primeiros socorros? Começou a escurecer. O corvo sempre voando sobre nossas cabeças e depois indo a uma direção. Perdemos a noção de tudo. Mas sempre seguindo o Corvo. Escureceu. Não dava para andar mais. O Chefe e as demais patrulhas devem estar aterrorizados com nosso sumiço. Fazer o que? Um frio forte trazido por uma bruma da ravina nos pegou em cheio. – Alguém tem fósforos? Ninguém. – Lembrei que papai colocou um isqueiro na minha mochila. Porque cargas d’água o coloquei no bolso não sei.

                    Na ravina dava para avistar o céu. Ficamos em baixo de uma Guaritá frondosa. Dormir com aquele frio? Melhor acender um fogo. Com muito custo recolhemos vários gravetos e duas boas achas de madeira. Olhei para um galho na árvore e lá estava o corvo. Ele desceu voando e pousou no meu ombro. Todos dormiam ninguém viu. Interessante que uma pena sua era dourada e as demais pretas. Ele no meu ombro me fixava como se me conhecesse. Ficou ali por muito tempo. Acordei com a alvorada e o fogo apagado. Leones começou a cantar e dançar a musica dos cavalos trotando. Todos nos o acompanhamos. Deu para esquentar. O corvo de novo voando sobre nossas cabeças e seguindo em uma direção. Lá fomos nós. Duas horas depois avistamos o acampamento. Eu agradeci a Deus e quase chorando todos nós nos abraçamos. Não houve acesso de gritos do Chefe a não ser a gozação das demais patrulhas.

                   Até o dia seguinte na partida o corvo ficou lá, próximo ao nosso campo sempre voando e grasnando. Croc. Croc. Croc. Na partida ele nos acompanhou por muitos quilômetros. Da janela do ônibus eu o avistava e ele muitas vezes bicou os vidros querendo dizer alguma coisa. Um sono pesado e dormi feito um anjo. Confesso que nunca achei mais a bússola. Ofereci-me pagar e o Chefe não aceitou. – São coisas que acontecem claro, desde que lhe sirva de lição! Ele disse. No sábado seguinte a Tropa formada para o Cerimonial de Bandeira. Ao final do hasteamento fui convidado para dirigir a oração. Fiquei no meio da Ferradura. - Senhor ensinai-me a ser generoso, a servir-vos como mereces, a dar sem contar, a trabalhar sem descanso... Parei. O corvo estava ali voando em círculos sobre nós. Chamou a atenção de todos. Ficamos olhando seu bailado. Ele desceu até onde estava. Pousou no meu ombro. Tinha preso no bico uma pena dourada. Vou para cima do meu chapéu de três bicos. Colocou lá a pena e saiu voando e grasnando rumo sul. Sumiu no céu azul daquela linda tarde de primavera.

                  Um silencio sepulcral. Ninguém dizia nada. Até o Chefe estava extático e deslumbrado com o fato. Ele sabia da história do Corvo. Não acreditou em nós quando contamos. Tirei meu chapéu. Coloquei a pena dourada do meu querido corvo entre a correia e meu chapéu. Não ficou ali para sempre. Só colocava o troféu do meu amigo corvo nas atividades e solenidades que participávamos. A pena dourada fez história. Tornou-se um mito. Está lá em letras de forma toda a história no livro de Ata da Patrulha. Contam até hoje sua saga em todas as Patrulhas e no Grupo Escoteiro. – Olhei para o Chefe Lávio. Todos olhavam para ele com um ar de incredulidade. Ele se levantou e foi até sua barraca voltando em seguida. No topo do seu chapéu de três bicos lá estava a pena dourada. Linda, nunca tinha visto igual. Ah! Histórias são historias. Algumas marcam outras lembramos de tempos em tempos. E como diz um Velho Chefe Escoteiro:

Boi não é vaca, feijão não é arroz... E quem quiser que conte dois!


E o Corvo aí fica; ei-lo trepado
No branco mármore lavrado
Da antiga Palas; ei-lo imutável, ferrenho.
Parece, ao ver-lhe o duro cenho,
Um demônio sonhando. A luz caída
Do lampião sobre a ave aborrecida
No chão espraia a triste sombra; e fora
Daquelas linhas funerais
Que flutuam no chão, a minha alma que chora
Não sai mais, nunca, nunca mais!


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Era uma vez... Em uma montanha bem perto do céu...

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