Nós não herdamos a Terra de nossos antecessores,
nós a pegamos emprestada de nossas crianças.
Lendas escoteiras.
O repouso do Guerreiro.
Ele não podia medir o
tempo. Seus antepassados não lhe ensinaram. Mas ele sabia que muitas luas
haviam se passado e seu fim estava próximo. Ele não foi o único, seus pais já
tinham ido para as Terras Bravias do Sol Nascente. Seus dias estavam próximos a
terminar. Ele sabia que breve iria se juntar a eles. Não ia deixar nada escrito,
pois na tribo somente as lendas passavam de pais para filho. Ele era uma lenda?
Não era. Nunca foi. Sabia que era um simples índio que conhecia as histórias
dos seus ancestrais, pois conseguiu sobreviver de muitas guerras com os
Tapuias, os Caraíbas e tantas outras tribos que sempre tentaram raptar suas
mulheres e tirarem o que era deles. Foi o único que sabia conversar em Macro-Jê,
Tupi e Arauak. Aprendeu nas guerras e nas inúmeras vezes que fora aprisionado.
Acostumou-se a sentar embaixo da Aroeira que dizem os espíritos foi plantada
por Aplanã, um valente guerreiro, que dizem que correu pelos céus a mil luas
atrás. Seus olhos miúdos percorriam as inúmeras Tabas de sua aldeia. Quanto
tempo! Nada é mais como antes. O homem branco nada trouxe de bom.
O Grande Espirito já o
tinha avisado que sua morte seria breve. Não tinha medo dela. Nunca teve. Já a
enfrentara inúmeras vezes. Afinal fora um guerreiro cujo nome se espalhou por
toda a Floresta de Akanã. Amanara sua mulher o olhava de longe. Porque nunca
tiveram filhos? Ele daria tudo para ter um herdeiro que levasse seu nome através
da história. Que pudesse narrar seus feitos. Sabia que quando fosse para as
Terras Bravias nada sobraria de sua vida na terra. Seus pensamentos velejavam
através das nuvens brancas espalhadas pelo céu. Teria milhares de coisas para
recordar. Viveu uma época que hoje seus descendentes não irão viver. O homem
branco agora mandava. Eles não passavam de meninos obedecendo para onde ir, o
que fazer e que comer. Desobedecer? Muitos da sua tribo se tornaram homens sem
valor. Bebiam, faziam arruaça, viajavam e diziam representar a tribo. Nunca
seriam nossos representantes. Eram sim de si próprios em busca de facilidades
que um verdadeiro guerreiro desprezaria.
O viu chegando em sua
jangada como sempre fazia quando atravessa o Rio do Morcego. Não sabia o que
ele vinha fazer. A cada cem ou duzentas luas ele aparecia. Lembrou quando
chegou pela primeira vez. Jovem ainda, sempre com cabelos brancos soltos ao
vento, olhos pequenos azuis, um chapéu esquisito, um lenço amarrado no pescoço,
um calção da cor da camisa da cor de uma folha de bananeira desbotada, uma meia
que ia até os joelhos e uma botina preta. Desceu de sua jangada e fez um sinal
de alô. Não disse mais nada. Ele nunca falou. Aproximou-se de mim e levou sua
mão esquerda ao meu coração. Como ele sabia? Nos velhos tempos só os fortes
entre os mais fortes se saudavam assim. Fiz o mesmo que ele e um sinal a
Ibaretama aquele que veio do céu para que não o matasse com sua lança. O homem
branco nunca fora bem recebido na Aldeia. Uma época que os Bororós eram
temidos. Cabelos da Neve sentou embaixo da Aroeira. Cruzou as pernas como se
fosse um de nós, tirou de seu bornal um cachimbo pequeno e o fumou por horas.
Não disse nada. Chegou calado e calado ficou. Lembro que Amanara levou-lhe uma
cuia com cuscuz cozido e ele comeu com gosto.
Otinga o Pajé logo que a noite chegou
começou uma pajelança pela cura de Oititaba, um jovem que caiu da Pedra Solta
bem depois da curva do rio do Morcego. O viu bebendo o tafiá e mesmo evocando
os espíritos de seus ancestrais e muitos animais da floresta não houve cura de
Oititaba. A tribo dançou com ele euforicamente e fez as mimicas conhecidas do
animal que estava incorporado a Otinga. Oititaba morreu pela manhã. Cabelos da
Neve recusou dormir em alguma Taba ou mesmo na sua. Dormiu ali embaixo da Aroeira
sob o calor de um pequeno fogo que fez. Não o vi pela manhã. Ao raiar do dia
deve ter partido. Sua jangada não estava apoitada na areia branca do rio do
Morcego. Passaram mais de duzentas luas quando ele voltou. Parecia mais Velho
assim como eu. De novo nos cumprimentamos e pouca conversa. Ele nunca falava.
Apontou a Montanha dos Abutres. Por sinal por a mão em meu peito e me convidou
sem falar a subir até o topo.
Não podia ir. Minhas
pernas recusavam a obedecer. A tribo aprendeu a admirá-lo. Colocou sua mochila,
atravessou seu bornal e partiu rumo à montanha. Uma semana depois voltou.
Descansou por algumas horas e em sua Jangada sumiu nas águas tranquilas do Rio
do Morcego. Mais uma vez fiquei só. Ou melhor, sempre estava só, mas quando Cabelos
da Neve aparecia havia no ar um certo encantamento. O passado não perdoa o
presente. Éramos milhares e hoje? Um punhado que vinte ou trinta tabas
acomodavam todos. As nações indígenas foram dizimadas. Caçar, plantar, pescar
já não era a maneira correta de sobrevivência. Um posto da Funai nos dava o que
Comer. Parecíamos mendigos sem nome, sem honra a depender do homem branco a
nossa sobrevivência. A nossa terra não era mais nossa. Nossas crenças
desapareciam. As forças da natureza que nos impeliam a continuar não existiam
mais. Os espíritos dos nossos antepassados riam de nos. Deuses e espíritos
fugiram das nossas cerimonias, dos rituais e festas. O Pajé era uma figura que
ninguém mais dava valor.
Na centésima lua desde
que ele se foi fiquei doente. Muito. A pajelança não adiantou. Era questão de
dias para me encontrar com os espíritos dos meus pais e dos meus ancestrais. Já
tinha passado o meu poder de Cacique ao Conselho da Tribo. Cabia a eles agora
escolher quem devia conduzir a aldeia, as mudanças e as guerras se elas
tivessem que existir. A mim me restava à lembrança do que fui e do que sou.
Preferia não olhar o mundo ao meu redor. Quanta injustiça, quanto sofrimento e
dor. Eu sabia que todo mundo sofre insuportavelmente até a morte. Um guerreiro
tem de saber enfrentar tudo em qualquer situação mesmo que a falta de amor, da
indiferença e da ambição fosse como uma espada a cair sobre ele. Mesmo nos meus
últimos dias eu ainda me considerava um guerreiro. Vieram me dizer que ele
chegou. Cabelos da Neve com seu chapéu esquisito cumprimentou-me a moda índia.
Na taba em que eu agonizava ele sentou com as pernas cruzadas. Tirou seu
cachimbo e rolos de fumaça encheram o recinto.
Deixaram-me só com ele.
Ele me olhava e eu a ele. Tirou o chapéu e fez uma espécie de saudação. Com as
mãos no peito começou a cantar baixinho uma canção. Dizia que não era mais que
um até logo, não era mais que um breve adeus. Eu não o ouvia mais. Meu espirito
abandonava meu corpo e me vi junto aos meus ancestrais. Eram centenas de amigos
que agora estavam ali nas Terras Bravias do Sol Nascente. Voltei um dia depois.
Meu funeral não teve nada diferente. Envolvido na rede dentro da minha maloca,
fiquei por dois dias. Nivelaram a superfície da minha sepultura com barro
socado. Quando me retiraram a maloca foi queimada. Seria abandonada para
sempre. Todos os meus pertences estavam comigo. Em cima da minha sepultura
Cabelos de Neve colocou uma placa de metal em formato de uma flor de lis. Todos
já tinham ido e ele permanecia sentado de pernas cruzadas, fumando seu cachimbo
e olhando para o céu. Eu o ouvia cantar a mesma canção: - Não devemos perder as
esperanças de um dia tornar a nos ver.
Uma semana depois ele
se levantou. Deu um leve sorriso, fez o gesto de amizade colocando a mão
esquerda no meu coração invisível. Fiz o mesmo com ele. Parece que ele sabia
que eu estava ali, pois disse baixinho que breve, muito em breve nos tornaremos
a nos ver. Entrou em sua jangada e partiu nas aguas calmas do Rio do Morcego. A
história não termina aí, os dois guerreiros repousaram e dizem que até hoje se
encontram sempre na Aroeira que um dia pertenceu à tribo dos Bororós e que hoje não mora mais ninguém.
Sou índio, sou africano, sou europeu
Sou budista, sou cristão, sou judeu
Sou amarelo, sou branco, sou negro
Sou mistura do mundo, com prazer sou brasileiro.
Sou budista, sou cristão, sou judeu
Sou amarelo, sou branco, sou negro
Sou mistura do mundo, com prazer sou brasileiro.
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