Lendas
escoteiras.
Um tributo
merecido ao Chefe Conrado.
Quanto tempo? Não me lembro, mas
que tem tempo isto tem. Poderia começar a contar a história dizendo: - Era uma
vez em um país muito distante... Mas aqui Xerazade não aparece, não são
histórias das mil e uma noite e nem existe um tapete mágico para Aladim. Esta é
uma pequena história. Pequena no tamanho e grande demais para entender todas as
vicissitudes da vida. Falar do Chefe Conrado fazem meus sentimentos voltarem no
tempo e pensar que o mundo nos reserva em todos os destinos não escolhidos, mas
que fazem parte da vida e nada poderemos fazer para mudar. Lá estava eu em
Capitão Martins uma cidade perdida no norte de Minas para uma palestra ao Grupo
Escoteiro de lá. Excelente grupo, jovens sorridentes, olhares respeitosos e
bons chefes. Durante a palestra no ginásio local com um bom número de pais e
simpatizantes observei um Chefe Escoteiro encostado à parede sem usar nenhuma
poltrona. Olhava-me com olhos ávidos, uma atenção canina o que me fez perder
algumas vezes a continuidade da palestra.
Aparentava uns cinquenta anos ou
mais, não tinha um bom aspecto apesar de muito bem uniformizado. Bermuda e
camisa bem passadas, mas velhos. Um chapéu antigo bem posto que na hora usava
no peito, seus meiões e lenços impecáveis. Infelizmente um corte enorme no
rosto que ia até a boca, uma mancha na outra face e um olho torto lhe davam um
aspecto triste e até quem sabe ameaçador. Para piorar gostava de usar cabelos
compridos em “rabo de cavalo” o que reforçava seu aspecto bizarro, selvagem e
extravagante. Andava de braços abertos, ombros encurvados, mas quando sorria
era demais. Uma simpatia irradiante. Após a palestra fui conhecer as sessões
com Alcatéia Tropa Escoteira e sênior. Todas as sessões faziam escotismo misto.
Lá estava o tal Chefe, encostado na parede esperando que alguém o chamasse. –
Perguntei ao Diretor Técnico porque ele não participava. Sua explicação me
pegou desprevenido – Chefe, ele apareceu aqui há uns quatro anos. Sempre
afastado, pois sabe que sua fisionomia assusta. Todos nos já acostumamos com
ele, muito servil, sempre pronto a ajudar e isto o faz feliz. Um nosso Chefe
que mudou de cidade doou o uniforme para ele.
O conselho de Chefes foi contra
convidá-lo para uma sessão. Por vias das duvidas fizemos sua promessa, mas
nunca foi registrado. Os pais não viam com bons olhos e por ser analfabeto
alimentamos seu sonho de estar conosco, mas colocá-lo em uma sessão é
preocupante. Sempre é o primeiro a chegar e o último a sair. É de uma
vassalagem gritante. Limpa a sede, prepara materiais de jogos e mais nada. Nem
mesmo é convidado para um jogo ou uma canção. Tudo ele faz aqui encostado à
parede e sorrindo. Se vier a sede a noite aqui vai encontrá-lo. Lá está sentado
no meio fio como a fazer ponto na porta da sede. Já emprestei para ele alguns
livros que ele só vê figura. Sei que entrou em uma escola de adultos e já lê
alguma coisa. Acostumamo-nos com ele como se acostuma com um... Ele ia dizer
cão amigo, mas preferiu se calar. Não queria desmerecê-lo. Olhe Chefe ele
trabalha no moinho do português e mora em um quartinho na periferia da cidade.
Passou-se alguns anos e de novo
retornei aquela cidade. No Grupo Escoteiro não vi o Chefe Conrado. Seu lugar
que ficava estava vazio. Questionei o Diretor Técnico e com lágrimas nos olhos
e vi também tristeza nos demais me respondeu: Desapareceu um dia e nunca mais
voltou. Nesta hora foi que vimos à falta que ele fazia. Era como se tivesse
perdido parte de nós. Arrependo-me até hoje por não ter dado o valor que ele
merecia. Agora sei que era um homem de valor e seu desejo de ser um Chefe o que
nunca foi martela até hoje no coração de todos. Durante este tempo sempre
esperamos encontrá-lo sentado ao meio fio nos esperando e os jovens também
sempre perguntavam por ele. Duas semanas sem aparecer fomos ao moinho. Seu
Manoel o proprietário nos contou que foi ao quarto dele onde morava com a
polícia. Vazio anda com tudo bem arrumado da cama ao guarda roupa. Fomos até lá
para ver. – Chefe foi como uma punhalada no coração, nunca vi um quarto assim. Ele
fez do seu quarto uma sala de sede escoteira. Lindo quadro de nós e sinais de
pista, bandeirolas de semáfora presa à parede, não sei como tinha um quadro de
Baden-Powell, uma colcha branca bordada com uma flor de lis jazia em sua cama.
Na estante uma Bíblia aberta onde se lia o Salmo. Ficamos chocados com tudo.
Não havia cartas, papeis nada
que pudesse saber de onde veio e se tinha familiares. O tempo passou e cinco
meses depois soubemos que ele tinha sido atropelado em uma cidade próxima,
imprensado em um poste morrendo na hora. Mesmo com sua identidade não souberam
de onde era e de onde tinha vindo. Foi enterrado como indigente. Como estava
com um cinto Escoteiro um dos investigadores resolveu fazer uma consulta à
direção escoteira regional. Em vão, ele não tinha registro lá. O Doutor Jamil
em passagem por aquela cidade conversa vai conversa vem se apresentou como
Escoteiro a amigos da cidade. Um deles sabia da morte de um Escoteiro e
comentou. Doutor Jamil ao ver a identidade sabia quem era. Quando soubemos foi
um choque. Não sei se foi boa ideia, mas reunimos todo o grupo e em um domingo
fomos à cidade onde havia sido sepultado. Em uma campa simples fizemos um
circulo em volta e cantamos a canção da despedida, todos chorando e Chefe, foi
difícil cantar toda ela. Dizer que não era mais que um até logo e um breve
adeus era difícil de pronunciar.
Após a canção e uma oração nos
preparávamos para voltar e vimos um Beija Flor azulado, sozinho, batendo as
asas em volta do túmulo sem pousar. Todos não tiravam os olhos dele. Se fosse
um sinal do Chefe Conrado eu fico em duvida. Sou cético para estas coisas.
Voltamos tristes e silenciosos. Não havia canções no ônibus e só as lembranças
do Chefe Conrado estava presente no íntimo de todos nós. Depois que ele se foi
é que entendemos que o coração é maior que a aparência. Só demos o valor tarde
demais. Não houve medalhas, não houve abraços, não houve apertos de mãos e nem
sequer um certificado de gratidão. Nem mesmo um simples agradecimento verbal.
Só ficou a lembrança, saudosa, dolorida e que nunca vai ser esquecida pelo
Grupo Escoteiro.
Fiquei pensando que o valor da
escrita, da formação intelectual e docente devia ser mais bem avaliada caso a
caso. Como disse o grande Arquiteto do Universo há muitas moradas na casa de
meu pai. Ele se sentia feliz em ajudar. Não pediu nada em troca. Tais
indivíduos temos em vários lugares. Não damos os valores que merecem e chamá-los
de escotistas de chefes o que para eles seria uma honra nunca vai acontecer. No
meu retorno meditava sobre isto. Ele era um homem cumpridor de seus deveres,
nunca almejou nada. Fazia seu trabalho sem recompensas. Ele no Grupo Escoteiro
era o lixeiro, o carregador, o apanhador de sonhos. Hã! Lei dos Escoteiros.
Vale tanto para nós como valeu para ele. Nunca mais voltei lá. Não porque não
quis, não houve oportunidade. Mas o chefe Conrado ficou marcado para sempre em
minha memória.
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