terça-feira, 10 de janeiro de 2012

A MARCA DA PANTERA - A HISTÓRIA DE UM BASTÃO ESCOTEIRO


A marca da Pantera
A história de um bastão escoteiro

“Hei pantera! Sabemos do seu grito, do seu rugido, da sua força. Sabemos que é capaz de manter a união, perseverança. Sabemos que você sabe lutar, vencer, viver, e sua fé une aqueles em sua volta. Pantera Negra patrulha do meu coração!”
Lema da Patrulha Pantera

            Já se passaram trinta e cinco anos. Quase uma vida. Ainda me lembro quando me fizeram. Um monitor novo, uma patrulha nova, todos iniciando na tropa recém formada. Para dizer a verdade, me sinto orgulhoso de todos eles. Foram muitos que passaram pela patrulha durante este tempo. Guardo o nome de cada um no fundo do meu coração. Desculpe, sou de madeira, dizem que não tenho coração. Será? O livro de memórias da patrulha que o escriba guarda com muito carinho, também tem seus nomes, tempo que permaneceram na patrulha, acampamentos, endereços e o que conquistaram como escoteiros.

           Houve épocas ruins, muitas. Monitores desleixados, que não ligavam para mim, me deixavam em qualquer lugar. Já passei por grandes tempestades, caí em córregos profundos, despenhadeiros, fiquei a deriva em um trem de ferro. Incrível! Safava-me com galhardia. Claro tinha sempre um escoteiro bondoso da patrulha que não me deixava desaparecer. Mas acreditem, sempre fui amado pelos grandes patrulheiros da Pantera em todos os tempos.

          Nasci há muito tempo. Era um frágil galho de uma goiabeira, mas me orgulhava de minha raça araçá-guaçu, mesmo pertencendo a uma família com tronco tortuoso, de casca lisa e descamante. Considerava-me um galho pubescentes e por várias vezes vi as flores que vicejavam brancas, solitárias principalmente na primavera. Nunca consegui dar frutos, não sei por que. Comentavam a “boca-pequena” que nós goiabeiros somos os mais fortes, os que mais duram. Não sei, talvez seja por isso que Romildo me escolheu.

         Lembro bem quando ele se colocou debaixo da goiabeira e olhando para o céu analisou todos os galhos ali existentes. Eu não sabia, mas ali começaria minha saga do mais antigo bastão totem da Tropa Escoteira Titan (aquele que tem sensibilidade, simpatia, cooperação, diplomacia e receptividade). Orgulho-me de ter começado logo após sua primeira promessa. Não foi no mesmo dia. Romildo e mais cinco amigos ficaram por três meses sendo adestrados como monitores e subs.

        No primeiro dia da formação das patrulhas, lá estava eu. Claro, passei por várias etapas. Romildo me deixou secando dentro do quarto dele (dizia que o sol iria me estragar) por uma semana. Depois gentilmente retirou minha casca sem usar faca ou canivete. Passava todos os dias um pano embebido em óleo de linhaça, e fiquei quinze dias ao pé de sua cama. Por último, passou de leve um verniz incolor que produziu um brilho todo especial. Acho que foi amor a primeira vista entre eu e ele. Romildo era um verdadeiro monitor.

       Fez questão de fazer uma biqueira de aço, leve, que encaixou na minha ponta e em cima também uma pequena tampa de aço com pequena alça onde prenderia a ponta do totem, ambas encaixadas a fogo. “Todos os dias ele me olhava, sorria me colocava junto a ele, vestia o uniforme e dizia Sempre Alerta” me segurando com a mão direita e a esquerda com o sinal escoteiro levava até a altura do coração.

      Comprou de um sapateiro diversos cadarços de couro grosso, tipo Camurção, beneficiado com as fibras do lado do carnal (parte interna da pele). Comprou também outros cadarços feitos de pelica, um couro de cabra, leve de toque macio, alto brilho. Depois me disse o porquê. Não se assustem, eu e Romildo éramos bons amigos e nós conversamos muito. Sua mãe fez um lindo Totem. Eu não sabia, mas tinham escolhido na patrulha que o nome seria Pantera Negra.

       Romildo era um estudioso. Seu chefe dizia que ele era um monitor de que se orgulhava. Tinha de saber todas as respostas para os escoteiros de sua patrulha. Aprendeu que a Pantera negra (Panhhera pardus melas) vive nas selvas quentes da Malásia, Sumatra e Assa. Também na Etiópia. Seu pelo era inteiramente preto. Na floresta não era amigável. Vivia mais só. Aprendeu que a Pantera sabe mergulhar, nadar, salta sobre pedras soltas e cai a metros de distancia. Ataca mamíferos. Prefere áreas cobertas de arbustos.

      Romildo foi à biblioteca da sua cidade e lá ficou por vários dias até que achou uma foto linda de uma pantera. (ainda não havia internet) Desenhou o que sabia, pois não era bom desenhista e sua mãe pontilhou em um feltro amarelo, a “Marca da Pantera”. Nunca mais foi mudado. Claro, o totem sempre me reclamava por ficar deitado, torto e poucos notavam o desenho tão bonito da pantera negra. Demorou algum tempo, até que o sexto monitor da patrulha fez uma capa de plástico que só usava em acampamentos (para proteger das intempéries) e um arco em forma do totem para mantê-lo sempre reto.

       No primeiro dia que fomos apresentados a patrulha, ela deu um lindo grito. Ficamos eu e o totem emocionados. Eu ainda não sabia o que eram os escoteiros, mas aos poucos foi me tornando um deles. Decidiram que a cada etapa mais alta alcançada por um dos seus patrulheiros, seria trançado em mim um cordão fino de pelica. Vermelho para quem conquistasse os cordões de eficiência e azul para os possuidores do Liz de Ouro. Para dizer a verdade, não tivemos muitos. Cordões foram vinte e Liz de Ouro só quinze. Mas quem chegava sabia que ali tinham passados grandes escoteiros.

      Nem tudo foi alegria nestes meus trinta e cinco anos de vida. O oitavo monitor da patrulha não era muito condescendente comigo. Deixava-me de qualquer jeito, e olhe em um acampamento fiquei debaixo de chuva por três noites. O Totem chorou varias vezes. Estava sem a proteção. Ele o Monitor me usava como defesa de lutas com outros jovens. Não fui feito para isto. Mas o pior aconteceu em uma manhã de inverno. Ele cansado da subida na montanha, vendo que ninguém olhava me jogou despenhadeiro abaixo.

        Ao chegar ao destino, o chefe deu falta de mim e do totem. Ele mostrou onde tinha jogado. Procuraram-me e acharam. Ele perdeu o cargo de monitor. Seu substituto leu todo meu histórico no livro da patrulha. Lá Romildo deixou escrito como devia ser tratado. Limpeza a cada cinco meses e lustrar com um pano embebido em verniz incolor. Olhar todo o bastão para ver se não estava com machas que poderiam ser cupim. Senti-me outro. Gostei do novo Monitor.

      Já com vinte anos de vida, a tropa Titan foi acampar em uma cidade distante e o chefe conseguiu passagens gratuitas para todos. Fomos de trem. Divertíamos muito. Chegamos, eles desceram e me esqueceram! O trem partiu e eu fui com ele. Fiquei arrasado. O Totem como sempre chorava. Ele era muito sensível. Disse a ele para não se preocupar. Eu sabia que iriam atrás de nós. Um homem sentado numa poltrona ao lado me viu. Ao descer me pegou e levou com ele.

       Achei que nunca mais seriamos encontrados. Mas o homem foi ao chefe da Estação e explicou que os escoteiros desceram na estação anterior e me esqueceram. Passaram um telegrama. Fui embarcado de volta. Na chegada lá estava toda a patrulha me esperando. Um grito gostoso da patrulha foi dado. Senti-me em casa. Sempre sentia tristeza quando algum escoteiro passava para sênior ou saia do escotismo. Afeiçoava-me há todos eles muito facilmente.

           Um dia notaram durante um Conselho de Patrulha que o Totem estava se desbotando muito. Pudera, ele já existia a vinte e oito anos. Teve que ser substituído. Fizeram uma linda cerimônia de despedida. Vieram todos os ex-panteras que ainda moravam na cidade e passaram pela patrulha. Foi uma alegria para mim rever meus amigos de outrora. Quando colocaram o novo, olhei para o antigo. Foi colocado em uma proteção de plástico amarela, que lhe dava cor e colocado na parede principal da sede escoteira. Até hoje ornamenta a sala da sede. Fiquei muito triste, pois afinal éramos eu e ele os primeiros bastão totem a existir na tropa escoteira.

           Tivemos lindas reuniões. Lindos acampamentos. Viajamos muito. Conheci lindos lugares, os mais altos picos, as mais lindas planícies e os rios mais espetaculares que poderia ter conhecido. Participei de centenas de atividades ao ar livre, de competições, de encontros nacionais e regionais. Afinal sou um privilegiado. Era apenas um galho de goiabeira e me transformei em um símbolo. O novo Totem era lindo. Ele sabia disso. Mostrava-se grandioso, magnífico. Tornou-se depois um grande e bom amigo. Ficamos irmãos em pouco tempo. Nosso maior orgulho foi quando Os Panteras foram em um jamboree.

          Uma apoteose. Milhares de escoteiros. Centenas de patrulhas. Conheci bastão totem de todos os tipos. Mas eu e o Totem sorriamos. Sabíamos que éramos da Pantera.  Tínhamos orgulho. O dia mais triste em minha vida foi quando Romildo faleceu. Estava novo ainda. Trinta e dois anos. Diziam que tinha câncer. Não sei o que é isso. A patrulha compareceu em peso nas suas exéquias. Centenas de ex-escoteiros também estavam presentes. Não choravam se sentiam orgulhosos de Romildo. O meu criador, meu pai, meu grande amigo.

        Os anos passaram. A tropa firme. Houve épocas difíceis. Um chefe que não tinha muita experiência. Os Panteras ficaram reduzidos a três. Mas eram fortes ainda. Difícil competir com outras, pois era uma norma não escrita que não se empresta escoteiro de uma patrulha para outra. Na falta os presentes tem de se desdobrar. Em todos estes anos, não tenho certeza, acredito que mais de cento e oitenta escoteiros passaram pela Pantera. Tivemos dias bons, dias ruins, reuniões que marcaram época e reuniões que deixaram a desejar.

        Sempre aos sábados recebíamos visitas de antigos patrulheiros da pantera. Eram sempre bem recebidos. Sabíamos os nomes de todos. Suas idades, seus endereços. E a cada aniversário da patrulha, pois sempre celebrávamos o dia maravilhoso que começamos muitos deles compareciam a sede. Era maravilhoso ver todos juntos tentando segurar em mim e dar o nosso grito de patrulha. Seniores, pioneiros, escotistas e vários ex-escoteiros. Dois deles que conosco começaram, agora com seus quarenta e oito anos e o melhor, com seus filhos.

        Mas meu dia chegou. Estava envelhecendo. Estava na hora de aposentar. Como dizem na gíria – hora de passar o bastão.  Poderia ter continuado por mais alguns anos. Mas não sei se ia dar conta nas duras lidas de um acampamento. Todos receavam que pudesse quebrar rachar e ninguém queria me ver assim. Ravim o novo monitor foi quem cuidou de tudo. Foi até uma goiabeira, olhou para o céu, e escolheu um galho que se parecesse comigo. Estava escrito no livro da patrulha como fui preparado. Romildo escreveu tudo que fez. Ravim sabia como fazer.

       Retiraram o totem e colocaram no bastão novo. O meu amigo do passado foi retirado da parede e voltou novamente a ser meu companheiro. Mantiveram em mim as marcas de todos que foram Liz de Ouro, e os que receberam os Cordões de Eficiências. No novo mantiveram tudo que estava colocado em mim. Fizeram uma réplica. A cerimônia da troca foi feita a noite. Estávamos fora da cidade. A tropa fez um circulo. Eu participei pela primeira vez com todas as patrulhas da tropa. Recebiam-me em saudação pelo monitor, davam o grito de origem e depois o da Pantera. Colocaram-me em pé, e todos um a um passaram em minha frente e deram o Sempre Alerta.

       Marcou-me meu amigo. Marcou-me. Se fosse gente teria chorado. Mas o pior era que eu achava que era gente. Que era um escoteiro e uma pequena gota d’água correu pelo meu corpo de madeira. Não sabia se era uma lágrima. Mas nunca mais esqueci aquela cerimônia. Todos os monitores, exceto Romildo estavam lá. Eles no final ficaram na minha frente e um por um dizia do seu tempo ao meu lado e das aventuras que juntos passamos. Quanta emoção.

      Hoje, estou colocado na parede da sede. Vejo todos entrando e saindo. Ainda sou um bastão escoteiro. Tenho orgulho de ter sido e sempre serei para a Patrulha Pantera o seu símbolo. Os meus sentimentos nunca serão de altivez. Não.  Eu sei que o passado e as lembranças irão permanecer para sempre. Não ligarei para o silencio nos dias sem reuniões, ou o som do grito dos Panteras ao longe, pois eu vou lembrar-me de tudo. E se possível vou transformar o meu passado em algo, que no futuro será sempre bom e gostoso de lembrar. Principalmente nosso grito de patrulha. Feito pelos primeiros panteras, a trinta e cinco anos atrás:

“Panteras, acordem, vamos seguir adiante
Somos um só, unidos e juntos na memória.
Valentes, leais, nosso lema avante
Pois nossa marca ficará para sempre na história
Não duvidem amigos, com a pantera ninguém pode!
Ego et tu unum sumus – Pantera! Pantera! Pantera!”

Não chore nas despedidas, pois elas constituem formalidades obrigatórias para que se possa viver uma das mais singulares emoções da vida: O reencontro.



Um comentário:

  1. Que conto emocionante.
    Lembro-me de quando era sub monitor na tropa escoteira do meu grupo também da patrulha pantera quando tivemos que trocar por obrigação o bastão da minha patrulha pelas especificações do POR, e tivemos que fazer outro bastão, foi um trabalho árduo, mas valeu a pena, passamos uma tarde inteirinha entalhando o bastão, para muitos não era o melhor bastão do mundo, mas era o melhor que eu e o meu monitor podíamos fazer e para nos era e sempre será o melhor bastão do mundo. Este fato ocorreu há uns dois anos atrás. Depois quando me tornei monitor da Patrulha Pantera, resolvi que era hora de mudar a bandeirola (ou totem) e novamente começou mais um trabalho árduo, onde eu planejei a nova bandeirola junto com os membros da minha patrulha, e novamente a melhor bandeirola do mundo foi feita, e ate hoje (depois apenas de três anos) a bandeirola e o bastão passaram nas mãos dos melhores monitores, os meus companheiros e irmãos escoteiros, e tenho certeza que continuara passando nas mãos dos melhores monitores. E agora na tropa sênior, na minha patrulha, por uma falta grave do meu monitor, o que me deixou muito decepcionado, ele perdeu durante o ultimo acampamento, no mês de novembro o bastão e a bandeirola da patrulha, e ate hoje nos não o encontramos, e temos a esperança de poder reavê-lo, mas parece ser muito difícil, espero que o bastão possa nos perdoar por essa falta, mas essa historia foi muito emocionante. E um exemplo para que todos os monitores, sub monitores e membros de patrulhas, tenham em mente para refletir, se estão ou não cuidando bem desse maior símbolo das nossas patrulhas.

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Era uma vez... Em uma montanha bem perto do céu...

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