segunda-feira, 26 de março de 2012

A sombra de um sonho. A história de Karem, uma chefe de escoteiras.


A sombra de um sonho.
A história de Karem, uma chefe de escoteiras.

Se põe sua alma e seu coração em um sonho, o universo conspira para ajudar-te a consegui-lo.

                Lembro perfeitamente quando Karem nos procurou no Grupo Escoteiro naquele sábado cinzento. Ainda não chovia. A meteorologia dizia que ia chover forte. Mas não choveu. Karem era bonita, uma beleza diferente. Tinha uma simpatia que demonstrava ter um carisma sem igual. Acho até que tinha um porte dominador. Acreditei que devia ser alguma executiva ou então exercesse um cargo importante em alguma empresa de porte. Cabelos loiros, amarrados em um “rabo/cavalo” óculos escuros (acho que com grau), alta, magra, e um sorriso encantador. Junto uma jovenzinha igual à mãe. Igual não. Era linda. Linda mesmo.

               Karem veio matricular sua filha. Pediu desculpas. Ainda tinha muito que fazer em casa. Se pudéssemos atender logo ela ficaria agradecida. Disse-nos que trabalhava de segunda a sexta, chegava à noite em casa e nos fins de semana é que acontecia colocar tudo em dia. Explicamos como era. Ela preencheu a papelada, deixou as taxas pagas. Assumiu o compromisso de participar de um informativo Escoteiro no mês próximo.

               Loana Luiza não ficou triste quando sua mãe se foi. Participou ativamente como se a alcateia fosse seu lar há tempos. Loana Luiza era um jovem de seis anos e meio. Mas uma vivacidade de dez anos. Tinha tudo em casa. Seus pais compravam presentes caros, estudava em um colégio particular, um dos melhores da cidade. Sua amiga Lorena foi quem lhe fez o convite e lhe emprestou um livro chamado o Guia do Lobinho. Foi à conta. Não deu mais sossego a sua mãe para entrar como lobinha.

                Karem foi busca-la às dezoito horas em ponto. Horário determinado para o encerramento. Viu a alegria na face da filha. Isso a fez feliz também. Reparou que todos sorriam quando iam embora. Os sábados voltaram. A ida e volta de Karem continuava. Isso estava tomando seu tempo. Valia pela filha. Mas ela tinha muitas obrigações e não podia se dar ao luxo de ficar sem fazer nada e esperar a filha na porta da sede.

                Karem era nova ainda. Estava com vinte e oito anos. Oito de casada. Casou nova e não pensou muito de sua nova vida com Sergio Augusto. Achou que seria sua maior alegria e viveria feliz para sempre. Sonhos de todas as moças. Claro, Sergio Augusto era um ótimo marido. Mas quase não ficava em casa. Trabalhava muito e dava assistência as filiais de sua empresa que se espalhavam pelo Brasil e América do sul. No inicio ela não trabalhou. Formada em Letras e Pedagogia, se matriculou em um curso de pós-graduação em uma escola em São Paulo, cidade onde morava.

                Tratava-se da Babson College, eleito a melhor escola do gênero no país. Queria aprimorar seus conhecimentos em mestrado acadêmico. Queria alargar sua área de conhecimento e se possível ver outras disciplinas mais avançadas. Foram quatro anos de esforços enormes. Ainda bem que sua mãe Dona Celeste lhe deu uma força ficando quase o tempo todo com Loana Luíza. Achou que não podia continuar assim, mas uma proposta irrecusável de uma multinacional francesa fez com que mudasse de ideia.

               Agora via que sua vida era uma desempenho profissional. No inicio ia aos sábados trabalhar. Mas agora não. Sergio Augusto continuava ausente. Ela não poderia deixar Leona Luiza somente com sua mãe. Parou de trabalhar aos sábados. Mesmo com sua mãe e uma faxineira os fins de semana lhe tomavam muito tempo. Quando Leona Luiza lhe disse dos lobinhos ficou preocupada. Agora sua ida ao Grupo Escoteiro estava lhe tomando muito tempo e assumiu o compromisso do tal curso. Um domingo inteiro.

              Chegou no horário. Não eram muitos. Menos de quinze. A maioria mulheres. Ela riu. Era sempre assim. Os homens não tinham tempo. Era um curso diferente. Alegre, divertido e jovial. Enturmou-se logo. Fizeram uma Patrulha com nome e grito. Ela riu bastante. O dia passou sem ela perceber. Nem se lembrou dos seus afazeres em casa. No final, atrasaram-se mais de uma hora. Convidaram-na para um encontro em casa do presidente. Todos os pais iam. Uma rotina no grupo. Ela ficou em duvida. E sua casa? E seus afazeres?

             Mas resolveu ir. Levou sua mãe e Leona Luiza. Pediram para levar salgados e refrigerantes. Gostou da festinha. A maioria de uniforme. Uma turma amiga, sem preconceitos, a maioria gente humilde. Ninguém para lhe dizer o que fazia como era sua vida, nada. Era como se ela fosse da família. Onze da noite achou que deveria ir embora. Estava ótimo ali, mas precisava voltar. Sabia que iria ficar até a madrugada fazendo o que não fez.

           Ao chegar a casa viu que Sergio Augusto tinha voltado de viagem. Ele estava com cara de quem não gostava do que acontecia. Explicou. Mesmo assim ele foi dormir sem comentar. Seu casamento existia, mas ela sabia que bastava uma faísca para tudo terminar. Gostava de Sergio Augusto, no entanto a vida a dois praticamente não existia. Pensava que seria difícil uma volta ao passado. Deitou ao seu lado ele dormia tranquilamente. Ficou horas acordada pensando.

         No sábado seguinte ao levar Leona Luiza, viu tudo de maneira diferente. Parecia que ela era um deles. Claro que não era. Mas ficou ali olhando. Sua filha sorrindo, cantando, correndo vivendo uma aventura que ela também queria viver. Infelizmente não podia. Ou podia? Claro que não. Não tinha tempo. Agora com Sergio Augusto de volta nem poderia pensar nisso. Uma assistente pediu se ela ajudaria em um jogo. Claro disse. Eram escoteiras. Um jogo corrido, gostoso, ela pensou – As meninas vibravam. Eu poderia estar ali com elas jogando, pensava. Preciso disto. Preciso mesmo.

         A semana como sempre corrida. Uma nova promoção. Mais serviço. Mais tarefas. Ganhava bem. Muito bem. Sergio Augusto também tinha um bom salário. Sempre o carro do ano. Tinham um apartamento no litoral. Quando tempo sem ir lá? E o sitio? Abandonado tinha certeza. Só lembrava-se do depósito mensal do caseiro. Nem tinha mais a ideia de sua fisionomia. Esqueceu o escotismo. O Grupo Escoteiro. Mas o sábado chegou. Lá foi ela. Os mesmos sorrisos. Desta vez muito mais. Natalia a chefe escoteira a convidou para ajudar em um acampamento no mês seguinte.

         E agora? Era um fim de semana prolongado. Ir? Como? E seus afazeres no fim de semana? De novo sua mãe tomando conta de Leona Luiza? Se fosse não poderia leva-la. Mas como seria o acampamento? Só pensava nele. Esqueceu as dificuldades. Nossa! Estava até esquecendo-se de Leona Luiza! Durante a semana o tema ficou martelando sua cabeça. O que estava acontecendo com ela? Que movimento era aquele para mexer assim com sua cabeça? Não era uma menina. Era uma executiva. Uma excelente profissional. Responsável. Mais de cento e cinquenta funcionários para liderar.

       Mandou um e-mail para Natalia. Iria. Deus do céu! Tinha que ir. Não podia esquecer o convite. Foi feito com amor. Achavam que ela podia ajudar. Deixou seus afazeres. Comprou uma mochila. Um saco de dormir. Talheres. Uma manta, um cantil um canivete que disseram ser canivete Escoteiro. Um cabo trançado. Riu de suas compras. Recebeu uma copia do programa a ser realizado no acampamento. Riu. Não entendeu nada. Explicou para Sergio Augusto. Ele chamou sua atenção. Você é responsável pela casa. Vai deixar sua filha assim?

      No dia marcado lá estava ela. No horário. Vestia simplesmente. Uma calça jeans azul desbotada. Uma blusa branca. Levou um chapéu de palha. Sua mochila cheia. Pesada. Nossa! Quanta coisa ali. Estava assustada. Todos a cumprimentaram. Uma a uma. Que coisa linda pensou! No ônibus canções, sorrisos, sonhos, todas querendo que a vida lhes passasse assim, como um pensamento marcante de dormir sob as estrelas.

        Foram três dias. Que dias meu Deus! Os mais lindos da sua vida. Riu ao ajudar a armar a barraca. Riu com suas mãos cheias de calos ao manusear sem parar o facão e a machadinha. Um mundo novo. Um novo mundo cheio de esplendor. Um cansaço tremendo a noite, mas uma alegria de ter cumprido sorrindo sua jornada. Quando a convidaram a noite para ir até a lagoa do Jasmim, ela pensou que estava no paraíso. Uma visão incrível do céu nas transparentes aguas da lagoa.

        O fogo de conselho, os jogos, as inspeções, a comida. Risos. Essa era especial. Ela não sabia cozinhar. Escalaram-na. O arroz um horror. O macarrão duro. Os ovos cozidos foram fáceis. Ainda bem que tinha muitas azeitonas verdes e pretas. Ela se deliciou. A chefia ria com gosto. Depois todos vieram lhe dar os parabéns. Na despedida durante o cerimonial de bandeira, lhe disseram que estava preparada para a promessa. Era só fazer o uniforme!

       O que? Eu de uniforme? Só rindo! Não posso. Sou ocupada. Uma executiva. Responsável por muitos. Aqui serei um “encosto”, nunca dará certo! Voltou para casa alegre como nunca esteve em toda a sua vida. Tentou contar para Sergio Augusto. Ele só disse humm! Leona Luiza e sua mãe riram a valer. Seu superior mandou chama-la na quinta. O que está havendo Karem? Você está assim meio descolada. Ela riu. Não podia contar. O acampamento não saia de sua cabeça.

      Não dava para ficar fora. Não dava. Ficou como assistente na tropa feminina. Participava ativamente. Fez um dois e três cursos de formação. A sua promessa foi inesquecível. Tinha uma enorme biblioteca escoteira. Lia tudo. Falava inglês com perfeição e para sua surpresa Sergio Augusto lhe trouxe da Inglaterra diversos livros de Baden Powell (BP). Virava as noites lendo. Tentou convidar Sergio Augusto para visitar o grupo. Já pensou? Se ele também participasse seria seu sonho realizado.

       Mas ele ria e dizia – Eu? Nunca. Aquela calcinha curta eu não curto. Um sábado para sua surpresa Sergio Augusto chegou a sua casa e junto um chefe escoteiro. Uniformizado. Calcinhas curtas como ele dizia. É meu chefe no Chile. Um americano. Quando lhe contei insistiu em conhecer seu grupo. O que posso fazer? Foram os quatros contando historias. Zachary o chefe do Sergio Augusto era um Escotista de primeira. Desde criança. Contou-nos historias passadas em seu estado. O Texas. Sua família era de Denver City, uma pequena cidade com menos de quatro mil habitantes, mas tinha mais de cem escoteiros de todas as idades.

         Zachary foi bem recebido por todos. As tropas clamavam sua presença e ele organizava jogos, canções, contava historias. À noite fomos a um encontro festivo em casa de um diretor do grupo. Muitos foram. Eram feitas regularmente. Cada um levava salgados, doces, refrigerantes e os amantes de cerveja não a deixavam para trás. Sergio Augusto se entrosou. De roda em roda falava e ouvia. Zachary era o mais animado. Um portunhol danado de ruim. Sempre a sua volta todos querendo saber como era o escotismo americano. Zachary bateu no ombro de Sergio Augusto. Meu amigo, você tem de conhecer. O escotismo tem um bichinho que quando entra em você nunca mais vai sair.

         Sergio Augusto dava boas risadas. Nosso Diretor Técnico apesar de reservado era uma excelente pessoa. Ficou amigo de Sergio Augusto. O convidou para uma excursão no domingo seguinte. Aceitou mas com ressalvas. Explicou que viajava muito. Nunca poderia assumir uma responsabilidade direta com os jovens. Karem viu seu mundo se transformar. De uma executiva que não tinha tempo agora era uma assistente escoteira e sabia que não ia parar por aí.

         O bichinho a mordeu. Ela agora amava o escotismo. Sorria porque sua filha também adorava e melhor, mesmo não sendo participativo Sergio Augusto aceitou ajudar nas especialidades. Deram a ele um certificado de formador de especialidades. Ele mostrava a todo mundo e sorria. Agora sou o tal no escotismo. E dava boas gargalhadas. Karem não parou por aí. Em dois anos conseguiu a Insígnia da Madeira. O Diretor Técnico estava muito doente. Insistiram com ela para ser a candidata ao cargo nas próximas eleições.

         Aceitou. Foi eleita. Já pensaram nela como Distrital. Ela ri. Calma gente. Ainda tenho meu trabalho minha família. Loana Luiza fez catorze anos. Recebeu sua Liz de Ouro. Karem estava feliz. Conseguiu muita colaboração para o grupo nas empresas que tinha amigos. O grupo cresceu. Uma proeza Karem conseguiu. Uma fabrica de componentes de moto, aceitou financiar a todo o grupo no próximo Jamboree que iria se realizar no Brasil no ano seguinte.

        Como foi a viagem, o susto de todos os participantes do jamboree em verem mais de cento e oitenta participantes de um só grupo, as lembranças que ficaram marcadas para sempre, as trocas de distintivos, tudo impossível descrever. Karem venceu uma batalha. Hoje se consideram uma família feliz. Lembrava sempre o dia que Sergio augusto chegou vestido com sua “calcinha” curta e fez a promessa. Juntos escoteirando. Ainda trabalhava, mas interessante, agora eles tinham tempo para temporadas em seu apartamento e frequentemente iam ao sitio. Um local perfeito para acantonamentos de lobinhos.

       Não sei como o escotismo faz isso. Muda as pessoas. Alguém um dia me disse – Chefe convide para o grupo os ocupados. Os que não têm o que fazer não tem nada para fazer aqui. Risos. A história de Karem não é única. Outras tantas se multiplicam pelo mundo. Um filho, uma filha, um convite, um fato interessante e lá está o bichinho Escoteiro mordendo e dizendo – Você agora é um dos nossos. Venha, participe. Seja feliz como todos nós somos!
E quem quiser que conte outra...

Não tenha medo de dar um grande passo, caso ele seja recomendável; é impossível atravessar um abismo com dois saltos pequenos.


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Era uma vez... Em uma montanha bem perto do céu...

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