"Minha força
está na solidão. Não tenho medo nem de chuvas tempestivas nem de grandes
ventanias soltas, pois eu também sou o escuro da noite."
(Clarisse
Lispector).
As
incríveis chuvas do Rio do Peixe.
Não era o
primeiro. Claro que não. Chefe Rael nunca fora um pata tenra. Foi lobinho,
Escoteiro, Sênior Pioneiro e há quatro anos Chefe da tropa de escoteiros. A
tropa com quatro patrulhas só tinha dois noviços que entraram há quatro meses e
dois lobinhos, mas que tinham uma experiência muito grande nestas atividades. Era
um acampamento que estava marcado desde o inicio do ano. Seriam de seis dias.
Férias de janeiro, e resolveram acampar em Rio do Peixe. Um local onde já tinha
ido com os monitores e duas excursões relâmpagos com toda a tropa. Acantonaram um
fim de semana lá. Difícil para chegar, mas um local espetacular. A cachoeira
era linda. Nos remansos se pescavam traíras, mandis, lambaris e pequenos piaus
que juntos davam uma moqueca de tirar o queixo da Patrulha. Os cozinheiros de
patrulha adoravam. Muito bambu, muita madeira e uma bela floresta.
O material de
campo já estava arrumado. O almoxarife de cada Patrulha fazia questão e o
Monitor com mais um ou dois davam cobertura sempre. Na última Corte de Honra Leonel
perguntou sobre novos facões para as patrulhas. Estava difícil, Chefe Rael
tinha tentado no comercio e não conseguiu. Bem todas tinham um machado do
lenhador e uma machadinha. Dava para quebrar o galho. Não seria isto o
impedimento para o acampamento. O prefeito Zefir prometeu um caminhão para
levar até a balsa do Rio Tarumim. Atravessando a balsa eles sabiam que o senhor
Malaquias da Fazenda Rio do Peixe estaria lá com dois carros de bois. Malaquias
se tornou um amigo dos escoteiros quando recebeu um lenço nosso durante o cerimonial
de bandeira do encerramento.
Os pais avisados, a matuta pronta, agora era
fazer uma inspeção, pois o Chefe Rael fazia questão em dizer que o acampamento
não é lugar de bicho, de sujeira, de nada. Era uma extensão de nossas casas e,
portanto que cada um procurasse dar ao máximo no seu uniforme, do sapato ao
chapéu. Os escoteiros perfilados sabiam o que ele queria dizer. Eram vinte e
oito em quatro patrulhas. Raposa, Águia, Leão e Javali. O caminhão a postos,
Leventino o motorista era conhecido. Não foi o primeiro acampamento que ele
levou a turma. Não ficava lá. Voltava e ia buscar no horário previsto. Desta
vez programaram um acampamento para grandes pioneirias. Dispensaram grandes
jogos, mas eles insistiram que as noites fossem feitas uma competição de Morse
por lanternas. Adoravam esta atividade.
Os raposas
disseram que ia fazer uma parque infantil. Um balanço para dois, um
escorregador, um vai e vem e se desse tempo um barco viking. Todos olharam
espantados, mas não duvidaram. Os águias pensaram diferente. Iriam fazer uma
ponte na parte estreita do Rio do Peixe, com mais de vinte e cinco metros de
largura. Ela teria condições de passar a cavalo. Difícil, onde o rio era mais
fundo. Os leões se contentaram com um pórtico de doze metros de altura e um
elevador para subir e descer. Enfim, os
Javalis disseram que iam trazer água da cachoeira da Manteiga do Rio do Peixe.
Eram mais de cento e cinquenta metros. Mas ninguém duvidava.
Viagem de
rotina. A tropa era profissional nestas viagens. Cantorias é claro. Três horas
de estrada de terra. Chegaram por volta de onze da manhã. Todos gostaram da
travessia da balsa no Rio Formoso. Água Doce o barqueiro contava histórias, de
“causos” que aquela balsa se pudesse falar contaria. Do outro lado o Senhor
Malaquias acenava e ao seu lado os carros de bois. Uma da tarde e barracas
prontas, cozinha com toldo pronta e o refeitório quase. Chefe Rael chamou os
monitores. Os dois toques no berrante eram inconfundíveis. – Não sei não, mas
quero que se previnam. Lá pelo Sudoeste umas nuvens negras se aproximam. Pode
ser uma chuva daquelas de “mangada” ou então de “invernada”. Pelo sim pelo não
se previnam. Encham o lenheiro e o cubram bem. Não esqueçam se já não o fizeram
das valetas em volta das barracas. Avisem a todos. Uma reunião de Patrulha
rápida deve ser feita e... Dispensados.
Chefe Rael
estava só. Desde que Chefe Fernando foi embora para a capital que ele não tinha
conseguido nenhum assistente. O Clã com apenas quatro pioneiros ajudavam quando
podiam. Mas ele não se importava. A tropa era boa, bem adestrada. Monitores
perfeitos. E claro sem contar que todas as patrulhas tinha um ou dois primeiras
classes e dois ou três segundas classes. Ele levava sua barraca de duas lonas, duas
panelas, pois não incomodava as patrulhas “filando boia”. Quem avistasse de
longe aquela turma veria que tudo era sincronizado. Ninguém saia do campo só.
Até para buscar água iam com o aguadeiro pelo menos mais um. Não usavam cisal.
Caro demais naquela época. Mas conheciam os cipós como poucos.
Às quatro
da tarde, os primeiros pingos aconteceram. Foram aumentando, aumentando e uma
chuva torrencial se formou. Chefe Rael preocupado, pois sabia que este tipo de
chuva é perigoso. Muito. Sem vento sem barulho, sem raios, sem trovam e a
passara esvoaçada a procurar seus ninhos ou arvores copadas para se esconderem.
Não havia mais borboletas, os quatis passavam correndo esbaforidos. Dois
lagartos na pedra grande correram e se enfiarem em um buraco. As patrulhas escolheram bem os locais onde iam
passar os seis dias. Achava o Chefe Rael que se houvesse enchente no Rio do
Peixe eles estariam bem protegidos.
Agora não
tinham mais o que fazer. Todos foram prevenidos que a chuva não passaria tão
cedo. Pelo menos aguardavam ela amainar um pouco. Nada. O tempo foi passando, a
chuva aumentando. Anoiteceu. O jantar saiu. Um vento forte começou a soprar. O
toldo dos Raposas foi levado pelo vento. Preso em galhadas de arvores
altíssimas. Agora os raios e trovões apareceram. Duas patrulhas não tinham
jantado. Só os Raposas e os Águias conseguiram terminar. Dividiram com as
outras. Deu para “forrar o estômago”.
Chefe Rael não tinha capa. Saiu só de short e
foi de Patrulha em Patrulha saber como andavam as coisas. Em todas viu
que as barracas encheram d’água. As valetas mesmo com mais de vinte centímetros
de fundo não aguentaram.
Chamou
os quatro monitores e mais cinco primeiras classes. Vamos fazer uma cabana
agora no alto do morro. A chuva não vai nos impedir. Ficar aqui ninguém vai
dormir ou descansar. Não era tarefa fácil. Passava das nove da noite. A chuva
fazia de tudo um lamaçal. O barulho do rio dizia que estava enchendo. Foram até
uma várzea onde havia centenas de pés de bananeira. O Senhor Malaquias havia de
perdoar. Era uma emergência. O local estava com água nos joelhos e aumentando.
Tiraram de cada pé quatro folhas. Cada um carregou o quanto podia. Voltaram.
Agora precisavam de três bons mastros e enquanto cinco cortavam outros três
furavam os buracos para elas serem fixadas. Onze da noite. A chuva não parava.
Nem amainava. O Chefe Rael chamou os demais escoteiros. Juntem tudo. Mesmo
molhado. Levem lá para a cabana que estamos construindo. Se possível levem o
máximo de lenha seca que tiverem.
Alguns
tossiam. Todos molhados. Chefe Rael preocupado. Não era bom sinal. Podia ter
ido para a fazenda do Senhor Malaquias, mas era mais de onze quilômetros de
distancia e tinham de atravessar o Rio do Peixe. Não sabia o estado da ponte se
ela estava ou não coberta pelas águas da enchente. O jeito era continuar. Uma
da manhã, com quatro lonas em volta e amarrando as folhas de bananeira
conseguiram terminar. Cada patrulha ficou com um canto da cabana. Era bem larga
e no centro acenderam uma fogueira. Não muito alta, mas para secar as roupas e
alguma lonas. Ninguém dormiu naquela noite. Alguns sentados encostados uns aos
outros conseguiram cochilar. De manhã a chuva não parava. Dentro da cabana
estava mais seco. As roupas secaram não muito, mas dava para quebrar o galho.
Pela fresta da porta podiam ver o rio subindo. Onde estavam acampados a agua do
rio tomou conta. O tempo escuro. Chuva a mais não poder. Qual programa? Fazer o
que? Vinte e oito Escoteiro presos naquela cabana? Claro se divertiram com
alguns jogos de salão.
Chefe
Rael fez um levantamento da comida. Perderam mais da metade. Dava para mais
dois dias e olhe lá. Com algumas pedras que encontraram fizeram um fogão de
quatro bocas tipo cruz. Um para cada Patrulha. As panelas que tinham eram para
no máximo oito e assim o melhor é cada Patrulha cozinhar para si. Duplas saíram
em busca de galhos mais grossos que depois de cortados ao meio estariam secos.
O almoço saiu mais cedo. Café da manhã não houve. Só alguns biscoitos secos. O
Monitor da Javali propôs fazer uma área coberta por folhas de bananeira com
bancos por patrulha. Ideia aceita e lá foram eles a construir debaixo de chuva.
Quatro
da tarde. A chuva não parava. Os trovões e raios não aconteciam mais. As seis a
cabana ficou pronta. Muito boa por sinal. Claro algumas goteiras, mas não
muitas. Um belo fogo agora dava para secar quase tudo. Até alguns jogos de
força aconteceram. Infelizmente a alimentação mal dava para o almoço de amanhã.
Se fossem embora com aquela chuva, nem saberiam se os carros de bois
atravessariam a ponte sobre o Rio do Peixe. E pior, a travessia na balsa. Agua
Doce o balseiro podia nem estar lá e o caminhão da prefeitura? Tudo era
difícil. Chefe Rael tomou uma decisão. Logo cedo iria até a fazenda do senhor Malaquias.
Veria como estava a ponte. E depois conversar com ele se emprestaria alguns
feijões, arroz e farinha, pois assim poderiam ficar até o ultimo dia. Chefe
Rael e os monitores que depois de consultadas as patrulhas se recusaram a ir
para a fazenda. Estamos acampando! Nada de moleza. Turma boa essa pensou o
Chefe Rael.
No
dia seguinte apesar da chuva ter diminuído um pouco ainda dava para molhar. Saíram
cedo. Ele o Lucas monitor da Leão e Hamilton da Raposa. A ponte dava para
passar, mas em alguns pontos a água do
rio passava por cima. Senhor Malaquias estava preocupado. Já tinha preparado um
cavalo para ir ver como estávamos. Contamos tudo para ele. Deu-nos arroz, feijão,
farinha, e uma lata cheia de carne de porco no toucinho. Uma maná dos Deuses.
Partimos e eu disse meu amigo, pode contar que viremos aqui devolver tudo
quando voltamos à cidade. – Chefe Rael, um dia vou precisar. Agora não. Voces
são meus convidados. Se portem como tal. Falar o que? Até lágrimas nos olhos
apareceram.
Uma
surpresa na volta. As patrulhas resolveram fazer pequenas cabanas em volta da
principal. Chefe, disseram, assim é melhor. Teremos nosso fogão, nossa mesa de
refeições, fossas tudo diminuto, mas da patrulha. Chefe Rael ficou orgulhoso.
Que caia a chuva, que os ventos soprem que os raios risquem o céu e que os
trovões trovejem à vontade. A tropa sabia enfrentar. Não deu para cumprir todo
o programa, mas muita coisa foi feita. Em forma de cruz, cada uma das cabanas se
ligava a principal com passagens cobertas. A Escoteirada se divertia e como se
divertia. Chefe Rael até pensou que a chuva foi benéfica. Uniu mais a todos.
Ninguém chorou ninguém adoeceu e todos cantavam alto como a dizer “Em canta
seus males espanta!”.
No
ultimo dia quando levantamos o sol estava a pino. Demos um belo de um sorriso e
alguém disse – Belo sol. Mas hoje? De qualquer maneira seja bem vindo. Ficamos
lá os seis dias completos. Jogos? Só os velhos conhecidos de salão ou mesmo de
força com pouca área de atuação. Ninguém reclamou hora nenhuma. Portaram-se
como bravos. Foi um acampamento diferente. Muito diferente. Chefe Rael sempre
contou este acampamento aonde ia. Ele também ficou orgulhoso de todos. Não foi
fácil a travessia na balsa no Rio Tarumim. Cheio. A correnteza parecia que ia
arrebentar a balsa. Água Doce o balseiro não sorria. Vamos lá turma! Gritou. Se
ajeitem, pois vamos partir! Quase uma hora para atravessar o rio. Leventino o
motorista estava lá. Se segurem minha gente, a estrada está igual quiabo. Para
ajudar uma chuva fina começou a cair. Eram três da tarde. O vento frio cortava
na carroceria do caminhão que dançava de um lado a outro.
Nove
da noite chegamos. Nenhum pai ou mãe esperando. Naquela época era diferente.
Confiança nos chefes, confiança nos filhos. Guardaram o material. Perderam
muita coisa. Nada que não pudesse ser recuperado. Na inspeção Chefe Rael estava
orgulhoso. Uniforme amarrotado, não tão limpo. Alguns chapéu entortaram, mas na
postura de cada um deu para ficar emocionado. A oração de debandar foi feita
por Lagosta, o Monitor da Leão. (seu nome era Sergio Antônio e seus pais
insistiam para chamá-lo assim.) Tropa é tropa. Patrulha é Patrulha, tradição é
tradição, apelidos? Uma tradição de anos. Cada um foi para sua casa. Cansados.
Lembranças que ficaram. Nunca mais desapareceram. Um ano depois voltaram lá. O
programa que fizeram antes das grandes pioneirias agora foi cumprido. Mas nas
rodas que se formavam, nas duplas que saiam para cortar madeira, no fogo do
conselho ou mesmo quando do jantar ou almoço nas mesas de madeira simples, só
uma conversa existia. O acampamento do ano anterior.
São
estes que marcam. Que ficam na história. Que nunca são esquecidos. Dizem que os
escoteiros são alegres e sorriem na dificuldades. Acredito nisto. Não tenho a
menor dúvida. Nem sempre herói é aquele que salva, que lutou na guerra pela sua
pátria. Herói também são aqueles que nas horas mais difíceis souberam se portar
como tal. Um sorriso nos lábios e força no coração. Escoteiros heróis sim. Não
precisavam ser da Raposa, da Águia, da Leão ou do Javali. Poderiam ser de
qualquer uma patrulha. E eles sabiam que o possível fariam já e o impossível? –
“Daqui a pouco sem moço”.
Qualquer semelhança com um passado que conheço, é mera
coincidência. Risos.
E quem quiser que conte outra!
Eu perdi o meu medo, o meu medo da
chuva
Pois a chuva voltando prá terra traz coisas do ar.
Aprendi o segredo, o segredo da vida
Vendo as pedras que choram sozinhas no mesmo lugar...
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