"A fé move montanhas, pequenas ações
movem o mundo e pequenos sentimentos movem o universo”.
A
maldição da montanha.
(Esta é uma obra de
ficção. Qualquer semelhança com pessoas vivas ou mortas é mera coincidência)
Por muito
tempo uma história sobre esta montanha andou nas conversas escoteiras em todo o
país. Nunca me aprofundei tanto como no dia que encontrei com o Chefe Ramon. Eu
o conhecia pouco. Conversa vai, conversa vem e resolvemos tomar um chopinho e
passar a conversa a limpo. Entramos em um barzinho lá pelas oito da noite e a
conversa foi tão interessante que saímos de lá depois das duas da manhã. Foi
ele quem me contou da Maldição da Montanha. Não era uma maldição e sim quem
sabe a falta de preparo de escoteiros para subirem nos seus cumes e apreciarem
a mais linda vista que poderiam ver um dia. Sei que não foram tantos, mas me
contaram tanto desta montanha que ela me exercia um fascínio e sabia que mais
dia menos dia iria conhecê-la.
Assim
começou Ramon, depois de dois chopinhos no ponto, acompanhados com gostosos
bolinhos de bacalhau. Relato aqui a maneira de Ramon. Nada mais nada menos. –
Chefe, tudo aconteceu há muitos anos atrás. Anos que nunca esqueci. Ficou
gravada na minha memória para sempre. Não sei se as recordações são boas ou se
as lembranças de tudo que aconteceu foram somente caminhos que cada um de nós
busca encontrar nas diversas etapas do nosso crescimento. Hoje sou funcionário
público vivendo o dia a dia de uma rotina que não cessa. Tenho dois filhos uma
esposa linda e vivemos modestamente, mas felizes. Toda a família participa do
escotismo. Linda é assistente de tropa Escoteira e eu Diretor Técnico. Luan é
lobinho e Natieli Escoteira.
Quando entrei
para o escotismo não tinha a mínima ideia do que iria encontrar. Estava com
onze anos. Um amigo disse que entrou e estava gostando, mas falaram com ele que
iria ter muitas aventuras e até agora só viveram reuniões de sede. Convidou-me
a conhecer e lá fui eu em um sábado para ver como era. Em principio poucas
novidades, mas a correria, os jogos, as canções me animaram. Um Chefe me deu
uma ficha de inscrição que levei para casa. Meu pai no sábado seguinte me levou
e fez a minha inscrição. Ele era um pai formidável. Sempre me deu todo apoio.
Eu era um jovem alegre, mas muito calado. Gostava de estudar e na classe sempre
fui o primeiro da turma.
Não participava de esportes e minha
diversão favorita era correr. Corria muito. Acho que todo o dia corria mais de
dez quilômetros. Nas primeiras semanas não achei muita graça nas reuniões.
Afinal nos levaram até um jardim para limpar o lixo, depois em outra praça para
plantar árvores. Até aí tudo bem, mas não era isto que esperava. Um dos amigos
da Patrulha Tigre me emprestou um livro. Lindo! Quantas fotos e dizia que nós
escoteiros somos heróis, fazemos acampamentos, excursões, sabemos nós, orientar
pelas estrelas tanta coisa linda que procurei o Chefe. Sua resposta? Aguardem,
um dia vamos fazer isto. Este dia nunca chegava. Acho que foi em agosto que
soubemos que o Chefe Valter iria embora. Mudar de cidade, pois sua empresa o
transferiu.
O novo Chefe Álvaro era uma boa pessoa.
Novo ainda no movimento chamou os monitores para conversar. Nesta época estava
com doze anos e meio e era o sub-monitor da Patrulha. Como o Levi não veio à
reunião estava assumindo como Monitor. O Chefe Álvaro nos contou que era bem
leigo. Estava lendo muitos livros e tinha muitas duvidas. Precisava de nossa
ajuda. Disse que tinha lido sobre uma Patrulha de monitores e nos perguntou se
tínhamos. Bem se não tem vamos fazer uma? E mãos a obra. Gostamos de cara do Chefe
Álvaro. Tudo que fazia nos consultava. Nunca tomava uma decisão sem nos ouvir.
A tropa começou a melhorar a olhos vistos.
Não só os
monitores, mas toda a tropa ficou muito amiga do Chefe Álvaro. Começamos aos
poucos sair da sede. A primeira vez pegamos um ônibus sem destino certo. No
ponto final andamos em uma estrada de terra por mais cinco quilômetros e
avistamos um riacho. Tínhamos levado uma boa corda e tentamos fazer uma falsa
baiana. Como não ficou bem esticada muitos tombos aconteceram. Foi à primeira
diversão. Todos gostaram. As atividades foram se multiplicando. Em menos de
seis meses a tropa adquiriu uma técnica mateira de dar inveja.
Soube da
montanha por meio de meu pai. Contou-me que lá sumiu um Escoteiro a mais de
trinta anos. Nunca mais o acharam. Como assim? Ninguém soube explicar. Seu
Chefe foi preso, forçado contar o que não sabia e só com a interferência dos
pais do menino que sumiu a policia o soltou. Achei a história interessante.
Agora queria conhecer esta montanha. Porque sumir e nunca mais ser encontrado?
Era um mistério e meu faro dizia para ir lá. Falamos com o Chefe Álvaro e ele
não concordou. Só depois de sugerirmos ir só os monitores e subs ele ficou de
pensar.
Uma reunião ele
nos chamou. Os monitores e sub monitores. Nossa tropa era masculina, pois na
época ainda não fora autorizado a participação das meninas. Disse-nos que
pesquisou muito sobre a montanha e inclusive um amigo do Diretor Técnico,
Insígnia de Madeira e residente em uma cidade próxima se prontificou a nos dar
todo apoio técnico e tático. Assim ele não via mais problema com a subida nossa
ate o pico. Vibramos com a ideia de subir a montanha que todos chamavam de
Maldita. Iriamos provar que conosco nada disto podia acontecer.
Aproveitamos um feriado prolongado e numa
quinta pela manhã pegamos o ônibus para Monte Verde. Cidade pequena, menos de
cinco mil habitantes. Éramos sete escoteiros. Lucio um sub Monitor não foi. Na
cidade encontramos o Chefe Leonel, um grande Chefe já com seus sessenta anos, e
nos deu todas as coordenadas que sabia. Explicou que não havia erro. A trilha
era fácil, bem sinalizada e podíamos acampar logo após dois quilômetros de
subida. Encontraríamos uma boa aguada e no dia seguinte poderíamos atingir o
pico. Menos de seis quilômetros e voltar no mesmo dia. Uma vista maravilhosa lá
de cima.
Nada
encontramos de aventuras. Sem erro chegamos ao local do acampamento. Não era
uma perfeição, mas dava para montar as barracas e fazer uma cozinha um pouco
apertada, mas em condições de fazer nossas refeições. O tempo ajudava. Uma
temperatura agradável e o sol queimando. Passamos todo o dia armando o campo.
Uma mesa, bancos, barracas armadas e não fizemos fogão suspenso. Usamos um
pequeno fogão tropeiro. Era o suficiente. A noite um pequeno jogo noturno e
fomos dormir.
Levantamos
cedo. Após o café, arrumamos um pequeno bornal (lanche) para cada um, cantis
cheios e partimos rumo ao pico da montanha. Não era meio dia e chegamos sem
muito esforço. A subida não foi difícil. A vista era realmente maravilhosa.
Duas cidades cadeias de montanhas a sumir de vista. Dois rios e foi espetacular
vermos uma ferrovia com um trem em movimento. Uma pequena cobra serpenteando o
rio. Cantamos algumas canções e as duas retornamos. Na descida menos de uma
hora depois lembrei que esqueci no pico o meu cantil.
E agora? Minha
sugestão era eu e o Levi voltarmos pegar o cantil e encontrar todos no
acampamento. Ideia que não agradou ao Chefe Álvaro. Mas relutante deixou.
Voltamos e o cantil estava embaixo de uma pedra na sombra. Foi aí que
aconteceu. Uma serração enorme tomou conta do pico e do caminho. Achamos que
podíamos descer, pois dava para ver até dois metros a frente e era só seguir a
trilha. Sem erro. Descemos a trilha. Errada. Era outro sentido contrário a quem
devíamos pegar. Uma hora, duas três e nada de chegarmos ao acampamento. Levi
achou melhor que parássemos. Do jeito que estava à serração não dava para ver
nada. Devíamos ter levado a bussola.
Ficamos ali, a tarde chegou e a noite
também. Sabíamos que o Chefe Álvaro devia estar com a cabeça a mil. Agora a
lembrança do Escoteiro que desapareceu devia estar fomentando seus pensamentos.
Mas não havia nada a fazer. O jeito era nos virarmos e esperar a cerração
passar. Não passou. Um frio de rachar. Ainda bem que sempre carreguei um
isqueiro pequeno no bornal. Com dificuldades encontramos capim seco e gravetos.
O fogo crepitou e deu para esquentarmos um pouco. Estávamos sem abrigo. O plano
era subir e voltar ao acampamento no mais tardar às cinco da tarde.
Não conseguimos
dormir. Não dava. O frio era demais. Já estava difícil encontrar gravetos
naquela escuridão. Confesso que um desespero abateu em mim e sei que o Levi
também estava como eu. Passamos uma noite de cão. Quando o dia amanheceu a
serração se foi. Foi então que levamos um grande susto. A menos de cinco metros
um despenhadeiro horrível. Cair ali era não ser achado nunca. Ainda bem que
paramos na hora certa ou será que foi a mão de Deus! Resolvemos voltar de novo
ao pico. Antes de chegar ouvimos os apitos do Chefe Álvaro. Graças a Deus o
encontramos. Abraços, choros e retorno.
À noite fizemos
uma fogueira, e lá conversamos muito sobre o acontecido. A consequência de alguém
sumir, morrer, desaparecer. Deus me livre. Nem queria pensar nisto. Hoje já
crescido exijo mesmo sabendo que será impossível acontecer de novo que todos na
tropa recebam um adestramento completo de bússola e orientação. Saber o que
fazer se perder. A calma, a paciência, saber que será socorrido. Isto nos valeu
e muito. Sem obrigar sugiro a todos que sempre portem no bolso uma pequena
bússola. Brinquem com ela, divirtam em seus caminhos da e escola ou onde forem.
Eu já tinha
tomado seis chopes. Minha cota. Estava a pé. Morava perto. O Chefe Álvaro
também. Um abraço, um aperto de mão e cada um foi para sua casa. Meditei muito
sobre tudo. Sumiu? Desapareceu? Uns dizem que... Melhor não entrar nesta seara.
No campo das hipóteses. Isto não é coisa de escoteiros. Nenhum grupo nenhuma
tropa pode dizer que nunca passaram ou passarão por isto. Acontece. Aconteceu
comigo muitas vezes no passado. Uma outra época. Mais aventureira. E a vida
continua e eu continuo escrevendo. Um pouco de ficção, um pouco de realidade.
Meus contos são assim, pedaços de sonhos laçados aqui e ali!
E quem quiser que conte outra...
As dificuldades são
como as montanhas. Elas só se aplainam quando avançamos sobre elas.
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