Talvez, mais tarde, haja alguma
inteligência que reduza o meu fantasma a algo comum — uma inteligência mais
serena, mais lógica e muito menos excitável do que, a minha, que perceba, nas
circunstâncias a que me refiro com terror, nada mais do que uma sucessão comum
de causas e efeitos muito naturais.
A lenda do Fantasma da Patrulha Morcego.
Maneco o
Monitor da Morcego estava assustado. E põe assustado nisto. No começo ele achou
graça, mas agora... Agora estava ficando diferente. Acontecia em todas as
reuniões de tropa, nas excursões e nos acampamentos era o tempo todo. Cada dia
mais amedrontado ele ficava. Tudo começou no acampamento realizado na Fazenda
Santa Fé. Não ficaram perto da casa sede. O Coronel Tibúrcio proprietário da
fazenda disse que na Ravina da Lontra, próximo à queda d’água havia um
descampado lindo, gramado, com grama natural é claro, uma mata próxima e muito
bambu. Bom isto. O Chefe Mansur não perdeu tempo. Juntamos nossas tralhas e
colocamos em cima do carroção do carro de boi que o Coronel ofereceu como
transporte. O local era mesmo lindo. Uma queda d’água de mais de trinta metros.
O banho ali iria valer o acampamento. Mãos a obra e começaram a montar nosso
campo. Ele viu que os Touros, os Javalis e os Leões estavam pau a pau com sua
patrulha. Não havia porque duvidar, pois estavam juntos a mais de dois anos e
ninguém saiu.
Tudo começou
quando ele apresentou-se ao Chefe para informar que o Jantar estava pronto.
Quando corria na trilha até a barraca da chefia ele sentiu um calafrio. Um
calafrio diferente. Parecia que alguém estava junto, mas ele não via nada. Fez
a saudação de rotina, disse as palavras de rotina e o Chefe agradeceu o convite.
Ficaram de almoçar com ele no sábado quando Lovenildo iria “tirar” sua
especialidade de cozinheiro. Ele viu um vulto ao seu lado quando fazia a
saudação. Um vulto de um menino moreno, magro, roupas simples daquelas sem
cinto com uma passadeira segurando sua calça curta. Ele ria, parecia feliz em
estar ao lado de Maneco. – Chefe! Tem alguém comigo aqui? O Chefe Mansur riu. –
Ninguém Maneco. De onde tirou isto? – Maneco não disse mais nada. Voltou para
seu campo e ao seu lado o menino moreno. O que fazer? Rezar é claro. Quem sabe
seria uma alma penada do outro mundo. Se fosse era melhor que não ficasse ao
seu lado. Não era medroso, mas também não tinha coragem para enfrentar fantasmas
do além. Rezou muito antes de dormir.
Maneco dormiu
como um anjo. Teve um sonho, um sonho que ficou gravado em sua mente por toda
sua vida. Ele nunca mais se esqueceu deste sonho. Nele um menino humilde, filho
de um lavrador da fazenda, um menino que nunca foi à escola, não tinha roupas e
as que usava sua mãe lavava enquanto ele esperava secar. Este menino disse que
se chamava Taozinho dos Olhos Tristes. Um dia (assim comentava o menino no
sonho) ele perguntou para sua mãe porque olhos tristes. - Porque meu filho não
vejo você sorrir. Não vejo você correr por aí atrás das cotovias, das
borboletas, nunca irás à escola, mas um dia quero levar você para conhecer uma
cidade. Quem sabe Montes Floridos, é longe, mas um dia levarei você lá. Vai ver
uma rua calçada de pedra, casas enormes, lá tem um prédio onde mora o prefeito
e muitas outras casas uma em cima da outra. Vais ver a luz elétrica, quem sabe
ouvir um radio tocando músicas. E assim sua mãe falou maravilhas de Montes
Floridos. Tãozinho dos Olhos Tristes daquele dia em diante só pensava na cidade
de Montes Floridos. Quando iriam? O que seria luz elétrica? O que seria a casa
do prefeito muito alta e uma rua de pedra onde todos poderiam andar?
Tãozinho dos
Olhos Tristes nunca foi a Montes Floridos. Seu sonho durou pouco. Ele morreu um
dia pisoteado por um touro bravo. Morreu por nada. O touro surgiu na curva do
aluvião, perto da Ravina da Lontra. Ele gostava de ficar ali, ver a cascata
enorme a cair e nem percebeu o touro chegar. Não deu tempo de fugir. Foi
sepultado atrás da cabana de pau a pique que seu pai fizera. Sua mãe chorava
sempre que o visitava em seu tumulo simples. Muitas flores, uma cruz de madeira
e nela sua mãe pendurou um terço. Terço que todas as tardes ela ia lá para
rezar. Ele gostava de sair de perto do seu tumulo. Havia uma árvore frondosa
onde ele passava a maior parte do tempo. Ele não entendia porque havia morrido.
Parecia estar vivo a rezar com sua mãe. Foi quando viu os Escoteiros chegando.
Que lindo! Que coisa mais bela era ver aquela meninada cantando. – Por favor,
ele disse no seu sonho – Deixe-me ficar com vocês! Não farei mal a ninguém.
Deixe que eu seja um Escoteiro, pois isto é lindo demais!
Maneco
acordou assustado. Levantou e viu sentado em frente sua barraca o menino dos
Olhos Tristes. Sorriu para ele e disse – Seja bem vindo a minha Patrulha
Tãozinho. Agora somos oito com você. Maneco o viu sorrir, parecia querer
agradecer, mas sua voz não saía. Durante os quatro dias Tãozinho se divertiu na
Patrulha Morcego. Só Maneco o via. Ele perguntou a Diego o Sub se ele via
alguma coisa. Diego riu – Maneco, você está ficando maluco? O jeito era ficar
calado. Mas ele se divertia com o sorriso de Tãozinho. Parecia que aquilo era a
melhor coisa que aconteceu com ele. Mas tudo que é bom dura pouco. Chegou o dia
de ir embora. Quando Tãozinho ficou sabendo ele chorou. Não tinha mais aquele
belo sorriso. Maneco ficou numa tristeza só. Mesmo sua patrulha recebendo o
troféu de eficiência do campo ele não sorriu. O Chefe Mansur viu sua tristeza e
perguntou – O que houve Maneco? – E agora? Contar para o Chefe? Ele sabia que
iria sofrer reprimenda. Não aquela de castigo não. Chefe Mansur era seu herói e
nunca faria isto. Não contou.
No ônibus ele viu
que Tãozinho dos olhos tristes se aboletou ao lado dele. – Tãozinho, você não
pode ir comigo. Você não poderá ir a todos os lugares que eu irei. Eu tenho
escola, igreja, meus amigos, meus pais e se você ficar sempre comigo eu não sei
o que fazer. Terei uma vida diferente. Meu amigo, eu não poderia viver assim! Ele
viu que Tãozinho desapareceu. Chorou sozinho no ônibus. Era para ter sido o
melhor acampamento da sua vida. Não foi. Mesmo tendo sido eleito Monitor ele
não teve os melhores momentos neste acampamento. Mas ele sabia que não poderia
fazer nada. – Eis que a surpresa começou a aparecer uma atrás da outra. Todas
as reuniões lá estava Tãozinho dos Olhos Tristes. A tropa toda desconfiou de
Maneco. O Chefe também. Eles riam quando Maneco chamava Tãozinho. Isto não era
bom pensou o Chefe Mansur. Será que Maneco estava ficando pirado? Chamou seus
pais e explicou o que estava acontecendo. Chefe Mansur os aconselhou para
leva-lo a um psiquiatra. Ou quem sabe procurasse o Padre Totonho. Ele era bom
em exorcismo.
Seu pai era um
homem bom e letrado. Não fez nada disto. Procurou o Professor Afagildo. Ele riu
e disse para não se preocupar. No sábado ele mesmo foi visitar a Tropa dos
Escoteiros. Logo viu Tãozinho dos Olhos Tristes. O chamou e a alegria de
Tãozinho foi grande. Mais alguém o via. Foi conversando com o Professor Afagildo.
O primeiro que o ouvia. Ninguém nunca fez isto nem mesmo Maneco, a não ser em
sonhos. Naquela noite o Professor Afagildo o apresentou ao Chefe Norberto, um
antigo Chefe Escoteiro que havia falecido há muitos anos. Chefe Norberto deu a
mão a ele e ambos sumiram em uma luz azul brilhante. Para dizer a verdade
Maneco sentiu muitas saudades. Seu pai o levou um dia para conversar com o
Professor Afagildo.
Professor e
Tãozinho dos Olhos Tristes foi para onde? – Meu jovem Escoteiro, ele agora está
feliz. Entrou em uma Tropa Escoteira lá na Cidade dos Sonhos. Tem muitos amigos
e me disse que comenta muito sobre você. O único menino vivo que o aceitou como
ele era. – E sua mãe? Ele esqueceu? – Não, a gente nunca se esquece de quem se
ama. Eles estiveram juntos no passado e ficarão juntos para sempre. Nosso
mestre sabe o que faz. Deixemos Tãozinho em paz. Que ele se divirta na nova
patrulha. Eu soube que ele disse que um dia iria fundar uma patrulha do
Morcego. Uma homenagem a você, pois foi seu único amigo quando precisou de
alguém para consolá-lo. Maneco nunca mais teve noticias de Tãozinho. Nem em
sonhos ele apareceu mais.
Maneco sentiu
saudades de Tãozinho por toda sua vida. Esperava um dia encontrá-lo novamente.
Ele quando cresceu sabia que só quando fosse para a outra vida poderia
encontrar seu amigo. Mas estava tranquilo.
Sabia que onde Tãozinho estava ele era cercado de amor e carinho. A
tropa nunca soube. Maneco nunca comentou. Ele sabia que cada um tem sua hora
para acreditar. Que ele seja muito feliz lá e que alcance tudo que sonhou um
dia. Se eu pude um dia fazê-lo feliz, fico feliz também pensou Maneco. E assim
termina nossa história. Uma patrulha que teve em suas fileiras um fantasma!
Fantasma? Não. Um menino que sonhou ser Escoteiro e o conseguiu.
Eu conheço o fantasma que habita
dentro de mim, posso ver em seus olhos que não estamos mais sozinhos. Eu não
mais me atrevo a tentar te apagar de mim, pois sei que mesmo na solidão meus
pensamentos te perseguem. Posso ver minhas lembranças me torturando, nem mesmo
minha sombra me segue mais. Talvez tudo tenha acabado por aqui, talvez esse
seja nosso fim.
Nenhum comentário:
Postar um comentário