quarta-feira, 18 de dezembro de 2013

Ele era meu amigo o Cacique Itagiba, o que tem o braço forte como pedra.



“Ensina-nos a atravessar para o outro lado do oceano”
Nosso Pai ensina como chegar à sua Morada.
Nosso Pai ensina a atravessar para o outro lado do oceano...

Ele era meu amigo o Cacique Itagiba, o que tem o braço forte como pedra.

             Tinha levantado cedo. Afinal seria um dos primeiros para acordar os demais. Era um Cabo Corneteiro na 4ª Brigada de Infantaria, ou melhor, na Brigada 31 de Março em Juiz de Fora MG. Um soldado que não conhecia me avisou que o Capitão Barbosinha queria falar comigo urgente. Ordens superiores não se discutem se cumprem. Apresentei-me a ele em sua sala as sete da manhã. – Ferraz, eu recebi este telegrama. Chegou aberto desculpe. O telegrama dizia – “Meu irmão em breve irei passar para o outro lado do oceano. Não quero ir antes de me despedir de você”. – Ferraz o que significa passar para o outro lado do oceano? Disse o Capitão Barbosinha. – Capitão, significa que meu amigo o Cacique Itagiba está morrendo e não quer ir antes de me abraçar. – Os índios Botocudos quando estão para passar para o outro lado se preocupam com suas três almas na hora da morte. Segundo seus ancestrais, eles têm três almas: a nhe’enguê ou nhe’em, a alma boa espiritual, que vai para o Além quando a pessoa morre, não afetando os vivos; a anguêry, a alma animal, responsável pelas más inclinações e que fica na terra por um tempo depois da morte, assombrando os vivos; a avyu-kuê, a sombra, uma cópia imperfeita da pessoa, permanecendo nos ares e não incomodando ninguém. A doença é a ausência temporária da nhe’em, da alma boa. A morte é a saída definitiva dessa alma. O sonho é a saída nhe’em para esse outro mundo.

                O Capitão Barbosinha não discutiu. Ele me conhecia. Sabia da minha lealdade e das minhas aventuras escoteiras. – Tem uma semana para ir e voltar. Disse. Às nove da manhã eu estava na Br040. Ela me levaria até o entroncamento da Br116. Uma longa viagem e sem dinheiro só como caroneiro. Tive sorte. Um caminhoneiro levando uma carga de arroz para Teófilo Otoni se prontificou a me levar. Ainda estava com o uniforme de campanha do exército. Só em Valadares iria colocar o meu tradicional uniforme escoteiro. Às onze da noite eu estava em casa. Disse aos meus pais o que aconteceu e ficaria pouco tempo. Um banho, o uniforme e parti para a estação ferroviária. Eram duas da manhã e o Nonô o Chefe da Estação me disse – Vado, as três ou quatro da manhã passa um trem de carga para Aimorés. Você pode pegar uma carona. Não deu outra. Tanta sorte que até o Dedé Peito de Pato era o maquinista. Fora Escoteiro sênior e pioneiro. Cheguei a Crenaque as cinco da matina. O dia clareava. Agora era conseguir um barco para atravessar o Rio Doce.

               Nenhum barco, os que existiam de pescadores já tinham levantado vela. Fazer uma jangada demoraria demais. O rio estava calmo e com as águas bem baixas. Escolhi um local onde havia uma grande pedra no meio do rio. Cada braça uns 80 metros. Tirei o uniforme fiz com ele e várias folhas esfoladas de bananeira uma espécie de mochila amarrada nas costas. Iria atravessar a nado. Às oito da manhã eu avistei no alto do morro do Grilo a Aldeia dos Pataxós, remanescentes dos Botocudos e Aimorés. Nada mudou. A mesma aldeia miserável do passado. Os índios ali não tinham vez. A FUNAI nunca se interessou. Parei para descansar, não queria chegar com ar de cansado. Precisava motivar meu amigo o Cacique Itagiba. Eu sempre disse que o sorriso é um remédio dos deuses. Meus pensamentos voltaram ao passado, cinco anos antes. Era Escoteiro passando para Sênior. Os Pintassilgos uma patrulha sênior me recebeu com carinho. A maioria já fora Escoteiro e muitos eu conhecia muito bem. Ainda na fase da Rota Sênior.

               Em uma reunião de patrulha se discutiu muito sobre a história indígena em nosso Vale do Rio Doce. Matheus era nosso escriba e disse que pesquisou muito na biblioteca. Dizia que de uma população de mais de trinta mil índios, todos eles escorraçados de suas terras na Bahia hoje não eram mais que uns três mil. Havia quatro aldeias proximo ao Rio Doce. Em Crenaque, em Conselheiro Pena, em Aimorés e a última em Colatina. – Porque não vamos visitar a de Crenaque? Falei, é perto e poderemos conhecer mais a história deles. Falei. Todos deram sua opinião. Decidimos ir na quinzena seguinte. Uma época que os chefes aprovavam tudo que fazíamos. Em uma sexta a tarde lá estávamos na estação ferroviária a esperar o Trem Rápido para Vitória. Não pagávamos passagem. Tinhamos passe livre na ferrovia Vale do Rio Doce. As seis em ponto nós chegamos a Crenaque. Chegar à Aldeia a noite? Não era uma boa ideia, mas poderíamos atravessar o rio. Um menino de uns doze anos se ofereceu para nos atravessar. Seu pai tinha viajado. Juntamos uns tostões e demos a ele quase dez reais em dinheiro de hoje.

               No alto do morro do Grilo avistamos a aldeia. Quase nenhuma iluminação. Algumas lamparinas e mais nada. Casas de alvenaria. – Mas eles não tinham Ocas? Eu pensei. Bem isto iriamos averiguar. – Armamos duas barracas e dormimos como sempre. Sem medo, sem receios vivendo somente nossos sonhos de jovens meninos. Acordamos com o sol nascendo e na frente da barraca uma dezena de índios na maioria jovens como nós. Eles sorriam. Nenhum fazendo gestos de maldade. Levantamos acampamento e pensávamos que eles não falavam nosso idioma. – quem sabe Tupi Guarani? Perguntei. Eles riram a valer. Foi então que um jovem forte e atlético, vestindo um calção azul e sem camisa nos convidou para visitar a aldeia e conhecer seu pai o Cacique Upiara e sua mãe a índia Poranga. Não falou mais nada e o seguimos na descida do morro do Grilo. Entramos na aldeia e todos saíram de suas casas. O Cacique Upiara nos recebeu educadamente. Também só com um calção azul, mas com um pequeno cocar. Duas penas que ele se orgulhava, uma de um Azulão Vermelho e outra do Uirapuru. Só os valentes da tribo conseguiam tais penas.

        Ficamos lá até domingo e retornamos, pois a semana sem escola seria um prato cheio para os pais. Conversamos muito com eles e apesar de não entender sobre FUNAI, indigenistas e piratas de bebidas alcoólicas aprendemos muito. Um povo sofrido. As terras que o governo lhes deu foram invadidas diversas vezes. A caça desapareceu. Eles plantavam mandioca e muitas vezes era seu único alimento. Os homens da FUNAI não eram honestos com eles. Uma vez se sublevaram. Prenderam o Chefe da FUNAI. Nada adiantou. Uma barca no outro dia despejou centenas de soldados. Eles viviam como podiam, mas ainda tinham o orgulho dos seus antepassados. Entre os indígenas não há classes sociais e todos tem o mesmo direito e o mesmo tratamento. O pequeno pedaço de terra que ainda tinham pertencia a todos. Quando se conseguia alguma caça e ou uma boa pesca tudo era dividido com todos. Vimos com orgulho que ali todos se respeitavam, as índias sempre tomando conta das crianças e fazendo a comida. Cada casa morava oito ou doze famílias. Até mesmo o Cacique Upiara e sua esposa a índia Poranga moravam com mais oito famílias. Tudo dividido até o radinho de pilha era passado de mão em mão.

             Voltei lá muitas vezes. E até sem patrulha somente a “escoteira”. Fiquei muito amigo do jovem Itagiba. Juntos nos fizemos belas aventuras na redondeza. Caçamos uma Jaguatirica só com armadilhas. Depois fiquei com tanta dó dela que a soltei e Itagiba rolou no chão de tanto rir. Ficávamos horas na pedra do Açu junto ao rio Doce tentando pescar uns dourados. E quando conto que peguei um “moleque” de mais de vinte quilos dizem que inventei. Fizemos uma jornada até a Lagoa dos Macacos muito longe da aldeia. Uma lagoa enorme e nunca tinha visto tantos peixes. Aprendi a gostar do Cacique Upiara e a Índia Poranga. Fiz amizade com o Pajé Jurecê. Meio cheio de trejeitos como se estivesse recebendo espíritos. Todos recorriam a ele nas doenças e dificuldades. Tinha um médico da FUNAI que ia lá duas vezes por ano. Duas vezes! Ficar doente e depender dele era morrer. Uma noite de lua cheia estava eu e Itagiba em um pesqueiro no Rio Piracema quando me deu uma ideia. Expliquei a Itagiba como os Escoteiros faziam juramentos de sangue. Ele me convidou para ser seu amigo para sempre. Tirei minha Mundial da cintura, e cortamos no antebraço. Não saiu muito sangue, mas cruzamos os dois no local de corte e cada um disse que agora seriamos irmãos de sangue por toda vida.

             Quatro anos depois fui servir a Pátria em Juiz de Fora. Sempre mantendo contato com Itagiba pelo correio. Ele mesmo me contou que se casou com a Índia Ibotira a quem chamavam de flor pequena. Seu pai havia morrido de uma doença que germinava por toda tribo. Uma tal de tuberculose. Ele agora era o Cacique. Sempre me convidando a voltar lá, pois sentia muitas saudades e queria que eu fizesse o batismo do seu filho que ia nascer. Era difícil minha ida. No exército as folgas eram pequenas e esperava umas férias para visitar meus pais e ele. Foi então que recebi este telegrama. Não dava mais. Tinha de ir. Desci a trilha do morro do Grilo que me levava à aldeia. Desta vez não tive a recepção do passado. Poucos sorrisos para mim e até os meninos se escondiam da minha passagem. Itagiba ainda morava na mesma casa. Agora quase vazia. Havia um medo generalizado da mesma doença que matou seu pai e quase dizimou a aldeia. A tuberculose fazia às vezes da peste negra. Se a FUNAI quisesse ela poderia dar cabo de tudo. Mas eu sabia que daquele mato não ia sair coelho.

               Itagiba estava deitado em um catre de folhas de bananeira. Ele já sabia que eu estava chegando, pois me avistaram fazendo a travessia a nado e esperava com ansiedade minha presença. Levantou com dificuldade e ficou em pé com a ajuda de sua mulher a índia Ibotira. Abraçou-me fortemente com os olhos cheios de lágrimas. Não me contive e chorei também. Ficamos ali a falar do passado, lembrando tudo que fizemos e ele me contou como estava a aldeia. Já tinha feito um conselho da tribo para a escolha de um novo cacique, pois seu filho não chegou a nascer. Com cinco meses Ibotira abortou. Ele sabia que não haveria mais uma continuação de sua família de bravos. Sorriu ao me dizer que pelo menos deixava um grande amigo e me olhou com aqueles olhos grandes que sabia reconhecer as aves e os animais da floresta como poucos. Itagiba morreu dois dias depois. Mesmo morto poucos foram reverenciá-lo. Um medo terrível da doença. Eu não saí do lado dele um só instante. Conhecia a tuberculose e desde que não usasse seus apetrechos de alimentação dificilmente pegaria. Expliquei isto para sua esposa Ibotira.

            Uma vez o Pajé Jurecê me contou que cada nação indígena possuía crenças e rituais religiosos diferenciados. – Sabe meu jovem nós acreditamos nas forças da natureza e nos nossos espíritos dos antepassados. Eles são para nós os Deuses e os espíritos para nossos rituais cerimônias e festas. No passado quando alguém da tribo morria nós enterrávamos os corpos na Oca onde ele morava. Junto com ele ficava seus objetos pessoais, vasos de cerâmicas que ele adquirira. Nós sempre acreditamos que havia uma vida após a morte. Agora com as casas de alvenaria isto não era mais possível. Itagiba foi enterrado em um pequeno cemitério ao lado da trilha que nos levava sempre em busca de aventuras, o morro do Grilo. Eram poucos os índios da tribo que se arriscaram a acompanhar a cerimônia fúnebre. Colocaram seus pés virado para o nascente para que ele encontrasse com maior facilidade o caminho da Terra sem Males, e que diziam ficava nessa direção depois do oceano. Foi acesa uma fogueira sobre seu tumulo que foi alimentada por três dias isto para que sua caminhada fosse iluminada.        

            Eu sabia que ele sempre acreditou que poderia reencarnar. Um dia ele me disse – Sabe Vado Escoteiro quando eu reencarnar novamente quero ser seu irmão. Quero estar sempre ao seu lado. Voltei no dia seguinte do seu sepultamento para o quartel. Naquele sábado do retorno, na hora do apagar das luzes, toquei em meu clarim o toque de Silêncio mais triste que um dia toquei em minha vida. Para dizer a verdade as notas do clarim se misturaram ao sabor das minhas lágrimas que caiam harmoniosamente. Até mesmo o Sargento da Guarda me olhou com carinho. Ele não conhecia a história, mas sua experiência com corneteiros sabia de antemão que uma bela história de amor e amizade tinha acontecido. Itagiba ficou na minha memória por todo o sempre. Não houve sonhos e nem revelações, pois assim como ele tive amigos que já foram para o outro lado da vida e só deixaram saudades. Eu sei que um dia vamos nos encontrar, pois nosso caminho na vida sempre vais nos levar a eternidade.

Dentro de mim existem dois lobos.
O lobo do ódio e o lobo do amor.
Ambos disputam o poder sobre mim.
-Qual vence?
Aquele que eu alimento!

Velho índio


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