O último chefe Escoteiro
Congratulamo-nos às vezes, no momento em que
despertamos de um lindo sonho. Não poderia ser assim no momento que segue a
morte?
Quando eu for, um
dia desses,
Poeira ou folha levada
No vento da madrugada,
Serei um pouco do nada
Invisível, delicioso
Que faz com que o teu ar
Pareça mais um olhar,
Suave mistério amoroso,
Cidade de meu andar
(Deste já tão longo andar!)
E talvez de meu repouso...
Essa história foi-me narrada por um Comissário
Distrital muito meu amigo, quando o visitei em sua residência a muitos e muitos
anos atrás. Era comum visitá-lo. Nos conheciamos desde o tempo da patrulha
senior. Juntos fizemos belas atividades escoteiras. Aquela de ser metido a herói
e fazer escalada sem nenhuma experiência ficou na história. A patrulha inventou
de escalar uma montanha onde existia uma pedra muito alta. Subimos 400 metros.
Sem condição de prosseguir. Paramos um pequeno lanche para a descida. Descida?
Nem pensar. Um medo horrivel. Olhavamos lá embaixo. Vertigem. Tremedeira.
À tarde, o sol se pondo, os cinco
valentes ali no meio da pedra tremendo. Uma noite terrível. Meio metro por dois
a saliência. Só no outro dia os bombeiros da cidade foram acionados. Sempre
lembravamos deste fato. Belas risadas. Foram tantas que nossa amizade perdurou
durante toda nossa vida. Soube que ele se juntou a turma lá no Grande
Acampamento. Que Deus o tenha. Daqui a uns tempos vou dar uma passadinha lá.
Não pretendo ficar (risos).
Bem voltemos ao que ele me contou. No seu distrito havia um chefe Escoteiro bem
antigo, bem "Velho" alíás. Ficou toda a vida em um só Grupo Escoteiro
e era amado e bem considerado por todos. Deixou de frequentar por problemas de
saúde. Tinha que inalar várias vezes ao dia e suas forças não eram a mesma.
Claudicava, tremia, respira mal e sua vóz quase não se entendia. Claro, estava
com 82 anos. Um dia resolveu lembrar o passado. Comprou um pequeno balão de
oxigênio, que dava para seis dias, preparou um bornal para ele, de maneira a
não atrapalhar o que iria fazer.
Isso mesmo. Seu último
acampamento. Ele queria fazer um antes de morrer. Ria e contava para todo mundo.
Ninguém acreditava. Mas ele era teimoso. Muito obstinado. Sua esposa
horrorizada tentou demovê-lo da idéia. Não conseguiu. Chamou os filhos (eram
três) nada obtiveram. Vieram amigos escoteiros, desistiram em pouco tempo. Chegaram
à conclusão que se ele não fosse morreria alí na sua casa em poucos dias. Quem
sabe bem tutorado ele podia ir? Claro os filhos sem ele saber iriam vigiá-lo de
longe. Um deles era médico. Assim ficou combinado.
Chefe Zezé (como era conhecido)
preparou tudo com calma. Tirou sua mochila do baú, seu uniforme, ele mesmo
lavou e passou. Sua manta de fogo de consêlho, seu chapéu de tres bicos, ainda
prensado no porta-chapéu. Colocou seu tope que comprou em 1947, seu penacho
azul de dirigente (tinha o verde e amarelo de Diretor Técnico, e os demais de outras
sessões, hoje não se usa mais). Engraxou sua botina de campanha, olhou seu
meião com carinho, a jarreteira deixou no lugar. Não iria usar. Pediu à esposa
que pregasse os seus barretes na camisa cáqui. As medalhas levaria consigo, mas
guardadas na mochila. Seria seu troféu de campo.
Estava ainda lá sua faca
escoteira, limpa e com saudades viu que ainda possuia o talco que colocou antes
de embainhar. Seu facão limpo, sua machadinha pequena e lá bem escondido em um
canto do baú, sua bússola silva. Olhou tudo, viu que o cinto de couro ainda
estava firme, e a fivela brilhando. Até mesmo uma bandeira nacional bem antiga
ele levou. Sentou em sua cama e fechou os olhos. Sua mente só via o acampamento
que iria fazer. Tinha de ser superior a todas as suas 780 noites de
acampamento. Nem mais e nem menos. Deveria marcar sua vida para sempre.
Não levaria seu lenço de
insígnia. Iria com o verde e amarelo quando fez a primeira promessa. Um
suspiro, quantas saudades. Aproveitou para ver algumas fotos que ali guardava.
Seu primeiro acampamento de lobos (na época lobinhos acampavam), sua promessa
escoteira, sua patrulha senior, e vários amigos que junto a ele fizeram com que
as matas, florestas, campinas, serras,
montanhas e tantos lugares fossem incrustados para sempre na sua memória.
Disse que iría na semana seguinte.
Serra do Rio da Serpente. Sozinho. Não queria companhia. Todos os filhos sabiam
onde era. Já tinham ido lá com ele várias vezes. Sorriram e não disseram nada.
Ele preparou tudo com carinho. Ração C para três dias. Capa leve de chuva. Uma
lona simples e macia para montar um pequeno toldo de sua cabana (ia fazer uma),
seus remédios, seu inalador, e no bornal o bujão de ar. Pelo telefone comprou a
passagem. Eram quatros horas de viagem.
Pediu a seus filhos para o levarem à
rodoviária. Estava uniformizado. Na entrada subiu sozinho. Deu até logo e disse
que não precisava de ajuda. Subiu as escadas com dificuldade. Fingiram não o
observar. Viram quando ele entrou no ônibos. Um dos filhos seguiu de carro
atrás. O filho chegou à cidade de destino primeiro. Sabia que dali até a subida
da serra seriam mais quatro quilometros. Ele disse que iria alugar um animal.
Cavalo ou burro. Não dava para subir a pé.
O ônibos chegou. Desceram todos. Surpresa!
Chefe Zezé não estava no ônibos! O motorista disse que ninguém tinha viajado
com aquelas características. E agora? Se eles o viram embarcar no ônibos, ou
foi miragem? O filho ligou para os outros. Todos se dirigiram para a cidade de
destino. Reunião de família. O que fazer? Onde estaria seu pai? Onde?
Procuraram por todos os lugares, por toda a parte. Nada. Foram de novo na
rodoviária, nenhuma informação. A empresa disse que não vendeu nenhuma passagem
com o nome de chefe Zezé ou mesmo o nome completo dele.
Um dia, dois três. Se ele resolveu
dar um golpe e seguir sozinho a outro lugar, pois sabia que aonde ia seria
vigiado, deveria estar de volta à noite do terceiro dia. Nove da noite. Dez
meia noite. Nada. O dia amanheceu. A familia desesperada. Policia acionada.
Busca em todos os lugares. Bombeiros, elicópteros. Nada. Chefe Zezé sumiu!
Abduzido? Não era hora para brincadeiras. Não sabiam mais o que fazer. A polícia
desistiu. Ninguém quis mais procurar. Seus filhos precisavam voltar à luta.
Tinham seus empregos. Esposas, flhos. A vida continua.
A esposa do chefe Zezé, parou de
chorar. Os olhos vermelhos inchados. Seis dias, sete, oito, dez, doze, quinze.
No décimo quinto dia, receberam um recado. Um telegrama. Um vaqueiro disse ter
visto um homem parecido conforme foto nos jornais na serra do Canta Galo. Todos
os filhos foram para lá. Bem longe. Mais de nove horas de viagem. Serra
desconhecida para eles. A cidade pequena. Alguns tinham visto quando ele chegou
quinze dias atrás.
Conseguiram um guia, encontraram o
vaqueiro. Arrumaram cavalos e subiram a serra. Local ermo e de difícil acesso.
Tinham medo, muito medo do que iriam encontrar. Avistaram ao longe uma fumaça
branca subindo aos céus. Pequenas esperanças. Quem sabe está vivo? Chegaram ao
local. Viram-no enconstado em uma árvore, como se estivesse desfalecido.
Correram até ele. Respirava e parecia dormitar. Abriu os olhos, sorriu. Como me
encontraram disse?
O filho médico o examinou. Achou
estranho. Sua respiração parece ter melhorado. Viu o bujão de ar ainda cheio.
Ele não tinha utilizado. Ele se levantou, olhou para o céu, para as arvores, um
pássaro preto em um galho voou. Alguns outros se juntaram a ele. Todos voando
em volta do chefe Zezé. Borboletas surgiram. Azuis, vermelhas, verdes e
amarelas. E então vamos? - Disse. Com
sua cabeleira vasta e caindo na testa, cantava a pleno pulmões – Avançam as
patrulhas, ao longe, ao longe! Adeus meus amigos, ou melhor, até breve, eu
voltarei, disse ele olhando os pássaros, a mata, o riacho e não viram mais
nada.
Arrumou sua mochila, sempre com
calma e bem arrumada nas costas gritou! - À frente tropa! Bandeiras ao vento!
Marche! E lá foi ele a pé, os outros a cavalo levando a mula que ele tinha
alugado. Em hora nenhuma reclamou. Agradeceu a oferta de ir a cavalo. Andava
como uma lebre. Incrivel pensavam. Mais acima dois quatís acompanhavam e mais
ao longe dois lobos guarás do rabo curto também. Uma passarada foi com eles até
a cidade. Uma figura o chefe Zéze. Dizem que na cidade todos bateram palmas. Os
pássaros quando ele entrou no automóvel do filho, cantaram alto.
Mas o que houve com ele? Perguntei
ao distrital. Olhe, soube pela esposa que tinha um livro e anotou tudo que
aconteceu. Uma especie de diário. Ela me emprestou. Xeroquei. Vou te dar uma cópia.
Ele ainda vive. Está com 91 anos. Não usa mais sua máquina para inalar. Não
toma mais remédios. Ainda anda cinco quilometros por dia. Voltou ao Grupo
Escoteiro. Ele hoje é chefe Senior e dos bons. Fui para casa e nem bem cheguei
“apoitei” em minha poltrona favorita. Lí com sofreguidão e pressa tudo o que o
"Velho" Escoteiro escreveu.
Que doce leitura. Linda. Que
aventura! Que inveja do chefe Zezé. Quanto daria para estar no lugar dele. Querem
conhecer o diário? Saber o que ele
escreveu? Não sei. Não sei se devo. Mas olhem, não dá para esconder. Vivam
comigo essa explêndida historia de um "Velho" que se transformou
através de um acampamento só dele. Cheio de amigos, amigos que todos nós
gostariamos de ter. Amigos sinceros, leais, sem interesses, e que não ficavam
azucrinando com aquelas palavras chatas que ouvia. "Velho" gagá,
babão, seu lugar é em casa.
Não invente!
- Quinta feira, nove de outubro de 2010
– Preparei tudo. Meu plano fora traçado. Combinei com um chapa carregador de
malas, para colocar um chapéu parecido com o meu, e levar minha mochila até o ônibos
combinado. Assim ele fez. Fingiu que entrava e deu meia volta. Escondeu-se em outro
ônibos cujo motorista era amigo dele. Embarquei duas horas depois. Não fui para
a Serra da Serpente. Sabia que iriam me monitorar. Queria liberdade.
- Sexta feira, dez de outubro de 2010 –
Cheguei à cidade de Catuava, e lá aluguei uma mula. Para 20 dias. Arrumei tudo
e parti para a Serra do Canta Galo. Vi em mapas e li sobre ela. Linda. Achei um
local maravilhoso. Um pequeno bosque, mais ao longe uma mata linda, próximo uma
cascata, águas limpídas, bem arejada. Neste dia montei minha cabana. Ficou
“joia” Toda de galhos e folhagem verde. Dava para ficar em pé. À tarde construí
uma mesa e o fogão suspenso. Que saudades das que eu fazia no passado. Uma
fossa de liquido, outra de detrito e retirado uns 50 metros um WC. O vento
soprava do meu campo para ele. Era um verdadeiro campo de patrulha.
Almocei lingüiça na brasa. Dois pães.
Um suco. Mais tarde fiz um café. Saudades do meu café mateiro. Atrás de umas
folhagens avistei dois quatís. Olhavam-me espantados. Sorri e eles se
aproximaram. Daí para frente seriam meus amigos de todos os momentos. Notei que
um pássaro preto me encarava. Sorri para ele. Ele cantou uma canção noturna.
Outros pássaros se aproximaram. Comecei a conversar com eles. A noite chegou.
Uma coruja veio e pousou no meu ombro. Arrumei alguns galhos e fiz uma
fogueira.
Foi minha primeira noite. Antes de
dormir lembrei que não tinha feito minha inalação e nem tomado meus remédios.
Não sei por que não sentia falta. Não usei mais. Sentia-me bem. O ar entrava em
minhas narinas de maneira agradável e apetitosa. Como respirava bem. O sono
veio. Nem olhei as estrelas, nem a brisa gostosa que soprava. Deitei e dormi
não sem antes agradecer a Deus pela vida maravilhosa que me dava. Há muito
tempo não dormia assim. Que sonhos lindos. Que canções lindas. Acordei com o
cantar da passarada na mata.
Os dias foram passando. Eu não queria
contar. Estava vivendo os mais belos dias da minha velhice. Horas? Não tinha
interesse. Não levei relógio. Celular. Radio. Nada. Minha ração começou a
acabar. Achei na beira do riacho uma boa plantação de “taioba” adorava taioba.
Comi taioba por três dias. Um pequeno remanso e vi trairas e lambarís bocarra.
Lindos, fáceis de pegar. Peixe frito no almoço e na janta. Um pé de maracujá.
Minha sopa preferida. Depois dois pés de mamão carregados. Maduros e verdes.
Vagem mais abaixo do riacho. Amigos alí era um édem. Poderia ficar a vida
inteira neste paraíso.
Não sei como, a tarde um casal de
capivaras apareceu. Ficaram em volta do meu campo por dois dias. No segundo
nasceram três capivarinhas. Um espetáculo incrivel. Mas o melhor mesmo foi à
amizade que fiz com dois lobos guarás. Eles me seguiam aonde ia e o pássaro
preto nunca me abandonou. Uma tarde vi um homem a cavalo. Ví que minha privacidade
tinha acabado. Dito e feito. Fui encontrado. Deixei lá meu amigo pássaro preto,
a coruja “buraqueira”, que me acompanhou todas as noites quando deitava na
relva e ficava a imaginar como seria o universo.
Valeu. Disseram-me que foram quinze dias.
Dias maravilhosos. Quantos amigos eu fiz lá. E olhe só eu falava e eles
educadamente me ouviam. Ainda vou voltar lá, O caminheiro e a Midiata, nome que
dei aos lobos guarás eu sei que estarão lá me esperando. Quando chego à janela,
olho no horizonte e lá estão na castanheira em frente a minha casa, os sabiás
que cantavam na serra e hoje cantam para mim todas as tardes. Sei que acham que
sou louco. (Risos) não sou. Que pensem assim. Não me importo. No próximo verão
irei voltar. Saudades da minha serra querida, dos meus amigos, bons tempos que
não quero que termine nunca mais.
Fiquei ali na minha poltrona por
muito tempo. Parecia um conto inexplicável, contado de uma maneira tão simples,
tão pulcra, que muitos iriam dizer que se tratava de uma fábula. Que seria uma
história inverossimel mal contada e que o chefe Zezé nunca existiu. Lembrei-me
de uma fábula que tinha lido a muitos e muitos anos.
Um jovem mochileiro chega
a um pacato vilarejo cercado por correntezas. Toda casa ou construção do
vilarejo possui uma azenha construída dentro dela. O
viajante encontra um velho ancião da vila, muito sábio, que está consertando a
roda quebrada de um moinho. O ancião explica que as
pessoas do seu vilarejo decidiram há muito tempo atrás abrir mão da influência
poluidora da tecnologia moderna e retornar para uma sociedade mais feliz e
limpa.
Eles escolheram a saúde espiritual a despeito da conveniência, e o
mochileiro fica surpreso e intrigado com esta noção. No final da seqüência que
é também o final da fábula, a procissão de um funeral de uma mulher ocorre no
vilarejo, que ao invés de estar de luto, celebra contentemente o propício fim
de uma boa vida.
O
ancião, que até então conversava com o jovem viajante, resolve acompanhar a
procissão, não sem antes contar-lhe sobre algo que o jovem presenciou ao entrar
na vila - crianças colhendo flores e colocando-as sobre uma pedra ao lado da
trilha. O ancião diz que há muito tempo um homem havia morrido ali depois de
muito sofrer, e desde então o ato de colocar flores sobre a pedra debaixo da
qual foi sepultado se faz uma tradição do vilarejo. O viajante se despede do
lugar repetindo o gesto das crianças.
Não
sei se me fiz entender. Acho eu que o chefe Zezé encontrou o seu lugar. Uma
expécie de Shangri-lá. Não era a cidade lendária descrita no conto de James
Hilton, na sua novela Horizonte Perdido onde todos nunca envelheciam. Mas lá na
serra do Canta Galo o Chefe Zezé encontrou sua fonte da juventude. Descobriu
que lá em plena natureza e junto aos pássaros e animais amigos, ele continuaria
eternamente no vigor da sua mocidade, ou melhor, da sua adolescência.
Eu
gostaria de encontrar um lugar assim na minha velhice. Um Xangri-lá, onde
pudesse viver como se vive em um paraíso. Onde ninguém fenece ninguém fica
"Velho" e quem sabe eu possa encontrar também uma montanha e lá viver
junto à natureza o que o chefe Zezé viveu.
Saudades de tudo. Saudades da minha infância. Saudades da minha terra,
da minha juventude, das minhas aventuras escoteiras. Tempos que se foram e
nunca mais vão voltar. Mas eu luto até hoje para não só eu e sim todos os
participantes da fraternidade escoteira, que encontrem seu xangri-lá, sua terra
de sonhos. Eu acho que encontrei o meu. No maravilhoso mundo do escotismo onde
todos podem sonhar e realizar seus
sonhos!
Nessa vida de mistérios
onde tudo pode acontecer,
eis que depois da tempestade,
na luta constante prá sobreviver,
encontramos um mundo,
onde a bonança haverá de se fazer…
Nossa dor, às vezes nos arrasta,
nos faz perder a esperança,
mas não desistamos,
pois um dia encontraremos
a paz que tanto buscamos…
Nesse mundo de ilusões,
de fantasias, de sonhos guardados
eis que avistamos ao longe
um caminho,
que nos trará felicidade
Shangri-la, terra de sonhos
onde o tempo não passa,
e somente alegria se faz…
um horizonte perdido,
que buscamos ao longo da vida
onde a felicidade se perpetuará.
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