A
lenda do escoteiro fantasma!
Quem tem medo de monstros e fantasmas, não sabe que o
maior monstro e fantasma que existe é o medo.
Fim do ano, último dia de aula. No Ginásio todos aguardavam o debandar.
Eu mesmo esperava ansiosamente. Sabia que minhas notas eram boas e não tinha
dúvidas que passaria de ano. Logo ao atravessar o portão vi o Romildo. Sempre
fora assim. Romildo era o monitor da patrulha Raposa e eu o seu sub.monitor.
Sempre nos encontrávamos na saída. Ele estava na sétima e eu na sexta série.
Tínhamos uma rotina que perdurou por muitos e muitos anos. Romildo era meu
principal amigo e irmão escoteiro. Anos depois quando casei lá estava ele como
meu padrinho.
Estávamos aguardando o dia e a hora do acampamento da patrulha. Seria
nosso grande acampamento de férias. Quanto tempo preparando! Pela primeira vez
só a patrulha iria. Acampar sozinhos era para poucos. Foi difícil. Provar que
tínhamos condições para a Corte de Honra não foi fácil. Todos nós já tínhamos
boas experiências e com exceção do Mateus, os demais patrulheiros tinham somado
mais de cem noites de acampamento. Não queríamos ir aos mesmos lugares.
Descobrimos por um irmão do Romildo que em Águas Formosas, pouco abaixo de
Aimorés tinha um local maravilhoso.
Seria uma viagem e tanto. Mais de três horas de trem e depois mais duas
a pé até a Fazenda Grandes Rios. Disseram-nos que seu proprietário morava na
capital e com um telegrama para ele conseguiríamos autorização. Outra época.
Nada de distrital ou autorização regional. Bastava o de acordo da Corte de
Honra e do chefe da tropa. O mundo mudou. Hoje é necessário. Em menos de dois dias
veio à resposta. Fizermos questão de abrir o telegrama junto a todos os
patrulheiros na casa do Matheus. Os olhinhos, a esperança, a duvida estava
presente em cada um de nós.
- “Prezados escoteiros da Patrulha Raposa, adorei o pedido de vocês.
Estão autorizados, quem sabe vou lá fazer uma visita?” - Gritos, sorrisos,
abraços. Corremos até a casa do chefe Jessé. A notícia correu de boca em boca.
Os Touros, os Panteras, e os Corujas, vieram nos abraçar. Tínhamos um belo
programa. Pelo menos achávamos que sim. Seriam cinco dias. Dias que seriam
contados por muitos anos, e lido no Livro da Patrulha eternamente.
Acreditávamos que a patrulha seria eterna.
Nosso programa era simples. Montar um bom campo de patrulha, se possível
com barraca suspensa, um toldo feito de madeirame trançado com folhas verdes.
Uma mesa com bancos onde caberia toda a patrulha, uma cadeira para cada um, e
um pórtico. Sim desta vez seria um pórtico de pelo menos cinco metros de altura
e que fosse visto de longe para quem nos fosse visitar. Nele colocaríamos uma
torre de vigia. Tinha que ter mais de oito metros de altura. Acreditávamos que
levaríamos três dias para confeccionar tudo.
Claro, Romildo adorava semáforos e faríamos alguns jogos utilizando as
transmissões a distancia. Nossa duvida era se lá tinha o cipó “trepadeira” que
iríamos precisar. Um dos poucos que se podia dar um volta do salteador, ou um
volta de fiel. Teria que ter uma utilização para através de cipós finos, fazer
um nó de arnês ou mesmo um volta redonda com cotes. Já tínhamos feito em outros
acampamentos amarras quadrada ou diagonal. Nossa experiência era muito boa.
Naquela época não existia o sisal de hoje.
Na quarta feira, lá estava à patrulha na estação da estrada de ferro.
Chefe Jessé também estava lá. Deu as ultimas instruções. Nosso saco de
intendência era quase completo. Tínhamos quase de tudo. Confiávamos em Lourival
(tico tico) nosso intendente. Ele era bom nisso. O trem expresso chegou no horário.
Nossas passagens eram gentilmente cedidas pela Companhia da Estrada de Ferro.
Sempre fora assim. Fazíamos o pedido por escrito com pelo menos 20 dias de
antecedência.
Chegamos por volta de onze da manhã. O próprio Chefe da Estação nos
ensinou como chegar à fazenda Grandes Rios. Foi uma caminhada gostosa. Beirando
o Rio Doce. Três horas e chegamos. O Sr. Gabriel o gerente nos recebeu bem,
pois já tinha sido informado de nossa vinda. Ofereceu um pequeno almoço e claro
não dissemos não. Ele mesmo nos acompanhou até o local. Disse que quando jovem
o Sr. Mario Montes (o proprietário) acampava sempre lá com os escoteiros da
capital onde moravam.
Era lindo o lugar. Em primeiro plano um pequeno bosque, com grama baixa
e logo acima uma grande mata nativa. Um córrego de águas límpidas e
transparentes com pequenas corredeiras passava a menos de oitenta metros. Ele
nos disse que se seguíssemos acima uns cem metros encontraríamos uma bela
cachoeira. Romildo me olhou e disse – Acho que dá para trazer água ao nosso
campo de patrulha. Ri, pois sabia que ele sempre sonhara com isso. Colocamos
mãos a obra e nosso campo já dava para passar a noite. Um pequeno fogão
tropeiro, e nosso sopão sairia fácil nas mãos de Nildo (fumanchú). Ele para mim
era um cozinheiro fora de série.
Anoiteceu, jantamos e ficamos em volta de uma pequena fogueira. Logo o
sono apareceu e fomos dormir logo. Estávamos cansados da viagem. No segundo dia
começamos a desenvolver nossas pioneiras. À tarde já tínhamos a barraca
suspensa. Também o toldo mateiro com os bancos e mesa. Resolvemos ir até a
cachoeira e olhe linda ela. Um belo remanso. Dava para ver os pequenos peixes
que ali habitavam. Um banho, muita alegria e muita diversão e voltamos. A rotina
da noite. Fumanchú nos reservou um belo jantar de linguiças fritas, uma farofa
com ovos e um pão para cada um.
No terceiro dia uma bela surpresa. O Sr. Mario Montes o proprietário
veio nos visitar. Uma pessoa alegre e simpática. Ficou conosco por pouco tempo
e prometeu voltar à noite. Acreditem, seria melhor ele não ter voltado.
Tínhamos acabado de jantar quando ele chegou. De uniforme! O Senhor ainda é
chefe escoteiro perguntamos? Não ele respondeu. Hoje não mais. Mas achei que
devia vestir o uniforme, pois só assim vocês poderiam ter sorte e conhecer ele.
– Ele quem? Perguntamos. O Escoteiro Fantasma! Rimos. Ele também riu e
disse-nos para acompanhá-lo.
Fomos juntos por uns quinhentos metros acima da cachoeira. No caminho
ele contou uma historia fantástica. História que ficou marcada para sempre em
nossa memória. Quando jovem, um escoteiro amigo seu, caiu de uma árvore perto
da ponte Ravina Seca. Caiu de costas nas pedras do riacho. Morreu na hora. Foi
um Deus nos acuda! Os pais inconsoláveis. A tropa passou meses sem se reunir.
Acampamentos? Nem pensar.
O tempo passou. Muitos esqueceram, eu não, dizia o Sr. Mario. Voltamos
aos nossos acampamentos aos poucos. Dois anos depois acampamos neste local.
Foram quatro dias. Tínhamos um medo enorme. Sempre nos lembrávamos de Nonato
(Nonato era o escoteiro que morreu). No ultimo dia quando da realização do Fogo
de Conselho um fogo enorme na mata, levantamos correndo, mas a mata não pegava
fogo. Nonato apareceu de forma gigantesca. Seu tamanho descomunal foi
diminuindo, estava de uniforme e chapéu escoteiro. Sorria e quando abria a boca
parecia que fogo azul saia de lá. Seus olhos eram enormes. Chispas de fogo nos
dois.
Corremos a mais não poder até a barraca. Até o chefe correu. Era outro
que não tinha conhecido Nonato. A noite inteira ninguém arriscou a sair da
barraca. No dia seguinte levantamos acampamento as pressas. Depois cresci.
Fiquei sabendo de algumas historias. Como sênior voltei aqui varias vezes. Nem
sempre Nonato aparecia. Um dia vim à noite até a ponte. Lá estava Nonato.
Sentado em uma das pedras embaixo dela como se estivesse pescando. Pelas suas
costas saiam chispas de fogo.
Um ano depois resolvi conversar com Nonato. Falei com a patrulha e eles
me deram a maior força só não iriam comigo. Acampamos um pouco afastado daqui.
À noite fui sozinho até lá. Afinal Nonato era meu amigo e quando apareceu para
nós não nos fez mal algum. Ele estava sentado no mesmo lugar a pescar com uma
vara invisível. Aproximei-me e o chamei. Ele se voltou, desta vez não dava para
aguentar. Seu rosto não tinha mais carne, só ossos. Tremi e já ia sair em
disparada quando ele falou baixinho. – Não vá! Preciso de um amigo!
Contou-me uma historia que não vou repetir para vocês para não
impressioná-los. Mas entendi o porquê ele permanecia ali. Só conto a vocês que
ele só fica lá quando alguém acampa neste local. Romildo me olhou e não gostei
do seu olhar. Olhei para Fumanchú e os demais da patrulha. Não éramos heróis e
nem valentes. Não estava gostando desta historia. Mas o seu Mario foi muito
simpático e não podíamos negar isso a ele. Chegamos. Ninguém na ponte e nem na
pedra pescando.
Já íamos voltar quando seu Mario mandou esperar. Lá na curva da estrada
estava vindo cantando e assoviando nada mais nada menos que o Nonato. Olhe,
quando se aproximou seu rosto estava normal e afável. Soltava algumas faíscas
pelos olhos e fumaça em suas orelhas. Assustador mas dava para aguentar. Seu
Mario nos apresentou e ele quis saber o nome de cada um na patrulha. Romildo
disse. Ele não pegou na mão de ninguém. Nem podia. Suas mãos estavam vermelhas
como brasa.
Ele sorria. Disse que nos viu chegar e durante todo o tempo ficou ao
nosso lado. Só não apareceu, pois materializava o corpo durante a noite e só
próximo à ponte da Ravina Seca. Ele amava o escotismo. Infelizmente onde morava
não tinha nenhuma tropa para ele entrar. Claro disse, é gente boa, mas tenho
saudades. Estávamos todos de olhos arregalados. Todos juntos uns aos outros.
Nonato disse para não nos preocuparmos, ele não podia fazer mal a ninguém.
Voltamos para o acampamento. Nonato ficou. Seu Mario dizia que ele
estava junto, mas não podíamos vê-lo. Tremíamos. Chegamos e seu Mario se
despediu e se foi. Era quase meia noite. Corremos para a barraca. Acho que
todos como eu custaram a dormir. Um medo incrível mesmo sabendo que o jovem
Nonato disse que não precisamos ter medo dele.
A patrulha no dia seguinte em reunião decidiu continuar. Voltar? Não era
um bom programa. Afinal tínhamos planejado muito. Não deu para fazer tudo que
queríamos. Estávamos sobressaltados. À noite então, dormíamos cedo. Escurecia e
nós “pimba” na barraca. No ultimo dia
após o arreamento da bandeira, já com todo o campo desmontado avistamos Nonato
a uns cem metros. Dizia-nos sem gritar que não era mais que um até logo, não
era mais que um breve adeus, pois bem cedo nos encontraríamos de novo da Ponte
da Ravina Seca.
Não disse nada, mas nem pensar. Nunca mais voltaria ali. Pobre Nonato.
Não sei se teve oportunidade de ver outros escoteiros acampando lá. Contamos
para as outras patrulhas. Riram. Desta vez vocês se superaram, disseram. Nós já
imaginávamos isso. Sabíamos que ninguém iria acreditar. Até que os Panteras
resolveram ir. E foram. Encontraram Nonato.
Disseram que fizeram amizade com ele. Agora participava da patrulha e
não parecia ser um fantasma. Mas só durante o dia. Quando a noite chegava, seu
rosto desfigurava, sua pele caia, chamas vermelhas saiam pelos seus olhos. Era
uma visão dos infernos, mas dentro um coração (não sei se tinha) de um grande
menino. Outras patrulhas lá se dirigiram. Houve até um acampamento distrital.
A lenda do escoteiro Fantasma nunca foi esquecida. Quinze anos depois
ele desapareceu. Todos que iam a sua procura não o encontraram. Nenhuma
explicação. Acredito que Nonato achou seu caminho do Grande Acampamento. Olhe,
se você que está lendo e um dia acampar perto de uma ponte de madeira, vá até
lá à noite. Quem sabe você vai encontrar Nonato e ficar seu amigo e olhe não se
assuste com as chamas de fogo em suas costas e em seus olhos. Se ele soltar
fumaça tenha calma. Não é nada demais.
Hoje, passado muitos anos eu não esqueço essas historia. Sei que vão
dizer que é uma invenção, apenas um conto. Paciência. Não quero provar nada.
Não há necessidade. Afinal não fui o único, muitos outros viram Nonato pegando
fogo. Aprendi a gostar de Nonato. Gostaria de encontrá-lo novamente. Quem sabe
um dia acampando por aí, dou de cara com ele?
E quem quiser que conte outra
Saudade, sombra, fantasma,
coisa que bem não se explica:
algo de nós que alguém leva,
algo de alguém que nos fica.
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