quarta-feira, 8 de outubro de 2014

O triste destino do Chefe Mario Kovak.


Temos o destino que merecemos. O nosso destino está de acordo com os nossos méritos.

Albert Einstein

 O triste destino do Chefe Mario Kovak.

                    Era angustiante ter de decidir. Porque logo eu ser colocado assim entre a cruz e a espada? Pedir ajuda? Procurar alguém? Não procurei ninguém. Nem os amigos. Não adiantava. Para entender o que estava se passado só se entrassem em minha vida. Ou melhor, duas vidas. Nunca pensei que um dia tivesse de tomar tal decisão. Ainda me lembro de quando tudo começou. Não faz muito tempo, quem sabe uns oito anos? Se não fosse o Chefe Mascarenhas acho que o destino teria sido outro. Mas Deus é quem decide, se ele decidiu assim é porque eu teria de passar por isto. Chefe Mascarenhas apareceu em Águas Calientes não por acaso. Era responsável técnico dos Moinhos Landins. Eu comprei um. Sempre funcionou muito bem. Mas um dia começou a tremer a carcaça e parou. O Doutor Leopoldo o mandou a minha cidade para ver.

                    Eu estava com vinte e dois anos. Meus pais tinham falecido a mais de cinco anos. Deixaram-me uma casa, um sitio, uma loja de material elétrico no centro da cidade e alguma reserva financeira. Tinha cabeça para isto. Não me dei mal. Chefe Mascarenhas ficou na minha casa. Eu mesmo insisti para que ficasse. Gente boa, com seus cinquenta e poucos anos era bom de papo e muito simpático. Era escoteiro. Falava maravilhas da organização. Quem o ouvisse ficava deslumbrado e querendo ser um deles. Acampavam, faziam sua comida, tinham técnicas mateiras de construção, exploravam grutas, picos impossíveis e imagináveis para um menino conhecer. Faziam boas ações ajudando as pessoas e tinham um código de honra sagrado para eles. Interessei-me. – Chefe Mascarenhas! Será que poderíamos fazer um escotismo aqui em Águas Calientes? - Perguntei. – Claro que sim. Alguém tem de dar os primeiros passos e no que for possível eu lhe ajudo.

                    Falei com o Alberto nosso prefeito que deu todo o apoio. O delegado Filote disse que conhecia e o Doutor Lanes Juiz de Direito ficou encantado. – Dizia para todo mundo – Agora vocês vão ver como será a juventude de Águas Calientes. Teremos homens de verdade. O assunto correu de boca em boca. Todo mundo querendo saber. Disseram que as inscrições seriam feitas no Grupo Escolar Santa Cecília. Um pandemônio. Mais de cinco mil crianças em um só dia. Aquilo me aterrorizou. Chefe Mascarenhas tinha sido enfático – Comece com poucos. Máximo de oito. Serão seus Monitores. Depois de três ou quatro meses aceite mais até um máximo de quatro patrulhas de seis ou sete. Os lobinhos se tiver alguém para liderar pode começar com oito ou dez. Dois meses depois ate vinte e quatro. Arrume umas quatro pessoas para diretoria. Vou arrumar para você uma autorização provisória. Neste interim veja um local para as reuniões e um salão para a sede. Depois falamos mais.

                    Estava sempre em estado de euforia. Mesmo com a cidade reclamando querendo ver os escoteiros, pais atrás de mim pedindo para seus filhos, mães chorosas porque as meninas não seriam aceitas (ainda não havia a coeducação).  Adorava meus Monitores. Viviam nas horas vagas em minha loja. Aos sábados na séde do Grupo Municipal Santo Expedito era uma festa. Aprendíamos juntos tudo sobre escotismo. Acampávamos quase todos os fins de semana. Chefe Mascarenhas me mandou uma boa biblioteca. Em dois meses fui a capital fazer um curso. Estava em ponto de bala. A Patrulha de Monitores escolheu como nome um pássaro que diziam ser uma ave pernalta, com pescoço nu, preto, e, na parte inferior, o papo também nu e vermelho. Nada mais nada menos que o Tuiuiú! Ficou para sempre a Patrulha Tuiuiú dos Monitores.

                    Dois meses depois os meninos fizeram a promessa. Quase chorei de alegria. Os primeiros passos tinham sido dados. Convidei algumas autoridades, mas o boato espalhou e mais de duas mil pessoas queriam assistir. Uma balbúrdia! Naninha tinha vinte e oito anos. Professora do grupo escolar onde estava a sede. Aceitou meu convite para ser a Chefe dos lobinhos. Uma festa. Um custo para ficar com vinte e oito. Mas o grupo foi crescendo. Já tínhamos duas alcateias e a segunda tropa a caminho. Chefe Mascarenhas vinha sempre a nossa cidade. Um pai para nós. Passávamos de cento e vinte membros, mas a cidade reclamando. Águas Calientes tinha menos de quarenta mil habitantes, mas se tivéssemos chefes poderíamos ter sem sombra de duvida mais de cinco grupos escoteiros.

                    No desfile de Sete de Setembro eu há vi pela primeira vez. Milena. A mais linda moça que tinha visto. Linda, simpática, cabelos loiros, curtos uma época que Doris Day, Kim Novak e Grace Kelly enfeitavam as tela de cinema e as moçoilas copiavam. Paixão a primeira vista. Ela teria de ser minha cara metade. Não dizem por aí que almas gêmeas tem de ficar juntas? Cinco meses depois fiquei noivo. A mãe de Milena me preveniu sobre ela – Muito possesiva Chefe Mario Kovak. Sempre quis ser a dona de tudo. Assim tome cuidado para não se arrepender depois. Mas o amor quando está incrustado em nosso coração não tem nada que pode impedir uma grande paixão. Assim eu pensava. Casamos um ano e meio depois. A escoteirada toda na igreja. Queria casar de uniforme, mas ela foi contra – Nem pensar Mario Montes nem pensar! Já mandei vir da capital um legitimo terno inglês da melhor casimira!

                    Assim começou tudo. Ela aos poucos me foi dominando. Tudo ela queria decidir. Meu amor por ela era grande demais. Aceitava tudo. Tentei o máximo para ela participar comigo do escotismo. Foi irredutível. Mostrei que juntos iriamos viajar, excursionar, acampar, escalar lindas montanhas azuis e os picos mais distantes e ela ria. - Barata eu tenho em casa e não gosto de pernilongos. Estive várias vezes em Congressos Nacionais e regionais. (hoje é
Assembleia) Fiz tudo para ela ir comigo. Ia sim, mas me esperava no hotel. Nunca entrava em um salão onde houvesse um escoteiro. Foi então que começou meu inferno pessoal. Eu a amava mais que tudo, mas o escotismo era meu segundo amor. Todos no grupo tentaram demovê-la. Mas nada adiantou. Ela ria de todos e só dizia que o escotismo afasta as pessoas, afasta as famílias, afastam os filhos. Ela não queria isto para sua família.

                   Eu ia para as reuniões escoteiras angustiado. Aquilo que fazia antes de muitos acampamentos e atividades ao ar livre escasseavam. Já não era belo como antes. Milena se interpunha a tudo. Tudo aconteceu muito rápido. Milena começou a sentir dores no seio. Alguns exames e lá estavam dois tumores enormes. Ela teria que operar. Chorou muito. Perder os seios para ela seria o fim do mundo. Não teve jeito. Operou. Em casa só me olhava com os olhos cheios d’água. Meu coração partia de dó. Mais que isto. Ver a pessoa que a gente ama sofrer não é fácil. Minha vida continuava. Meu trabalho e o Grupo Escoteiro. Já não era tão ativo como antes. Fiquei como Chefe do Grupo. Os meninos sentiam minha falta, mas precisava olhar Milena.

                    O pior chegou. Ela começou a sentir fortes dores internamente. Novamente fomos para a capital. O Chefe Mascarenhas colocou sua casa a disposição. Ela não quis. Vamos para um hotel, podemos pagar! Mas ele é gente boníssima eu disse. Nada feito. Os médicos não deram esperança. Mais dia menos dia Milena iria partir. Eu nunca fui espiritualista. Uma época que em nossa cidade pouco se falava sobre isto. Milena um dia me procurou – Mario Montes quero que você me prometa. Enquanto estiver viva você não vai mais para o grupo escoteiro. – Porque meu amor, por quê? Ela nada dizia. Seu semblante mudava. Parecia estar possuída. – Você sabe Milena que eu sempre disse que estavas em meu coração? Sem você não sou nada? Sei que está sofrendo e eu então? Como viverei sem você? – Sozinho Mario Kovak. Sozinho. Não quero que case outra vez. E não aceito você mais nos escoteiros. Peça demissão!

                    Incrível! Que pedido era esse? Um absurdo! Mas o que eu deveria fazer? Sair? Trair meus ideais? Satisfazê-la e depois de sua morte voltar? Minha cabeça estourava de dor. Meus olhos ficavam vermelhos. Ao lado dela, a vendo definhar meu coração partia. Como se um punhal estivesse ali, entrando, rasgando parte por parte! E o escotismo? Oito anos e como eu o amava. Sair e voltar? Trair minha consciência? Enganar a vida e a morte? Ou enganar a mim mesmo? Um dia ela não andou mais. Só ficava acamada. Uma amiga ficou com ela. Contratei uma jovem para ficar com a arrumação da casa. Mas ela agiu sorrateiramente. Pagou a duas para me vigiar. Para ver se eu ia ao Grupo de Escoteiros. Maldita vida pensava. Naquela sexta feira escura, sem lua, um zumbido estranho de cigarras no ar Milena partiu. Não antes de me olhar e fazer prometer que nunca mais seria Escoteiro!

                   Foi aí que entendi seu desejo. Ela me amava. Amava mais que tudo. Não queria me dividir. Tinha ciúmes enormes do escotismo. Ela queria que eu fosse só dela. Até depois da morte. Milena meu amor, peças tudo, mas eu nunca irei esquecer você. Preciso do escotismo para respirar, para viver, sentir que não posso ficar só, poder lembrar que você foi tudo para mim. Nada feito. Tive que prometer. Que promessa meu Deus! Ela se foi. Não sorriu. Sua face ficou branca. Seus olhos não fecharam. Como estivesse me vigiando. As exéquias foram simples. Queria que fossem ao Campo Santo só os mais chegados. Não deu. Muitos da cidade foram. Muitos. Um pisa, pisa, um corre, corre. Muito barulho. Os escoteiros me ajudaram, mas o enterro de Milena foi triste e bagunçado.

                  Duas semanas depois peguei minha mochila, coloquei na porta da minha loja um aviso que ficaria fechado por cinco dias. Precisava pensar. Raciocinar. Estava “baratinado”. Não sabia o que fazer. Tinha prometido a Milena que ia sair. Fui acampar nos Montes Pirineus. Armei a barraca e fiz um fogo. Mais nada. Não tinha fome. Ficava olhando para o céu, para as árvores, para a alegria dos pássaros. Meus olhos vermelhos. De madrugada acordava e me punha a chorar. Que tristeza. Quem diria Milena que nunca mais ia voltar, o amor de minha vida determinava qual seria o meu destino. Pensava que ela estava ali, me vendo, sentindo meu coração doído. Milena, Milena, fale alguma coisa? Diga se é isto mesmo que você quer? Os dias passavam. Um dois três. Sentia fraqueza. Quase não comia. Sempre sentado em volta de um fogo ou a olhar a cascata das águas escaldantes que desciam do Pico do Corão.

                  Nunca Milena falou comigo. Nunca me deu um sinal. Era como estivesse sacramentado seu pedido. Alegrias de uns tristezas de outros. Achei que não ia aguentar voltar para Águas Calientes. Mas ao final do sexto dia ainda não tinha tomado uma decisão. Resolvi voltar. Com dificuldade. Sentia uma fraqueza enorme. Minha cabeça parecia que ia explodir. Custei a chegar à rodovia. Desci na rodoviária da cidade dormindo. Acordaram-me. Minha casa ficava a menos de quatro quarteirões. Eram dez horas da noite. Passei em frente à igreja aonde casei. Estava aberta. Resolvi entrar. Ninguém ali. Sentei próximo a uma imagem de Santa Terezinha. Entre os bancos vi uma bíblia, alguém tinha esquecido. Olhei com curiosidade e vi uma página marcada. Li devagar, calmamente, já respirava melhor.

“O amor é paciente, o amor é bondoso”. Não inveja, não se vangloria não se orgulha. Não maltrata, não procura seus interesses, não se ira facilmente, não guarda rancor. O amor não se alegra com a injustiça, mas se alegra com a verdade. Tudo sofre tudo crê, tudo espera, tudo suporta. O amor nunca perece... Assim, permanecem agora estes três: a fé, a esperança e o amor. O maior deles, porém, é o amor. – trechos de 1 Coríntios 13:4-13;
Não procurem vingança, nem guardem rancor contra alguém do seu povo, mas ame cada um o seu próximo como a si mesmo. Eu sou o Senhor. - “Levítico 19:18”.

                       Meus olhos encheram-se de lágrimas. Milena em espírito estava ao meu lado. Parecia dizer que me compreendia. Pedia perdão pelo juramento que fiz. Disse que não devia ter pedido este sacrifício. Disse que os meninos precisavam de mim e eu devia ficar com eles. Sorrindo me pediu que uma vez ao mês, rezasse para ela aqui onde se casaram. Sua forma foi sumindo, parecia estar feliz. Um padre sentou ao meu lado. Perguntou o que houve. Contei tudo como se fosse uma confissão. Ele sorriu de leve, me abençoou e falou baixinho: - Disse-lhe Tomé: “Senhor, não sabemos para onde vais; como então podemos saber o caminho?” – Respondeu Jesus: “Eu sou o caminho, a verdade e a vida. Ninguém vem ao Pai, a não ser por mim”.

                       Já se passaram dez anos. Ainda me lembro de Milena. Agora só tenho dela as lembrança felizes dos nossos doces momentos que passamos juntos. Não tenho certeza, mas acho que ela guia meus sonhos. Muitas vezes a noite. Nosso Grupo Escoteiro vai bem obrigado. Ainda continuo viúvo. Conheci algumas moças, mas nada que me fez decidir voltar à vida de casado. Quer saber? – tenho medo. Medo de que a nova mulher dos meus sonhos não vá fazer parte da minha vida Escoteira. É meu escotismo! Só sabe quem está com você! Uma chama que marca que fica para sempre em nossos corações!

Não poucas vezes esbarramos com o nosso destino pelos caminhos que escolhemos para fugir dele.



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