Olimpíadas Escoteiras inesquecíveis.
“Quem ao crepúsculo já
sentiu o cheiro da fumaça de lenha, quem já ouviu o crepitar do lenho ardendo,
quem é rápido em entender os ruídos da noite, deixai- o seguir com os outros,
pois os passos dos jovens se volvem aos campos do desejo provado e do encanto
reconhecido”.
Kipling
Era o meu quarto acampamento. Tão
logo passei para a tropa de escoteiros as atividades aventureiras ao ar livre
se multiplicaram. Conhecia bem a Mata do Quati, um local excelente para
acampar, com varias aguadas, e o melhor, uma bela cachoeira que hoje deu lugar
a uma pequena hidroelétrica que abastece satisfatoriamente a cidade onde
morávamos. Lembro bem na época da piracema, onde nos divertíamos em pegar
peixes com as mãos, que se multiplicavam na subida complexa de altos e baixos,
rindo, brincando entre as pedras, com aquela nevoa a tomar conta de toda orla
da cachoeira. Sempre que ali acampávamos não faltavam as fritadas de lambaris,
piaus, corvinas e tantos outros peixes, feitas pelo nosso cozinheiro da
patrulha. Um expert em cozinha de campo.
Podíamos escolher a
vontade onde montar o nosso campo, pois beirando o Rio do Morcego, a mata
deixava belas clareiras, mas a preferida era próxima da cachoeira, claro sem
considerar o Córrego do Marmelo, que desembocava no rio, formando um remanso
onde nos banhávamos de manhã e a tarde. As patrulhas muitas vezes ficavam até 200
ou 300 metros distantes uma da outra. O barulho diabólico e magnífico da queda
d’água era como se fosse uma melodia para os nossos ouvidos e a noite, o som
entre as arvores trazia toadas cantigas que a plenos pulmões desafiávamos as
demais patrulhas, num quebra coco frenético.
Não tenho certeza, mas a
cachoeira do Sonho não era muito conhecida da comunidade local. Pouco visitada.
Talvez pela localização, afastada da cidade por mais de 10 quilômetros e precisávamos
andar mais quatro mata adentro. Através de pequena trilha chegávamos até ela. A
queda d’água com mais de 20 metros de altura, com aproximadamente 50 de extensão,
caindo de um só salto, formava um grande lago de águas revoltas todo coberto
por uma névoa algumas vezes densa outras vezes não. Lembro que sempre quando
acampávamos ali, não sei se por tradições criadas por outras patrulhas mais
antigas que devem ter iniciado, no penúltimo dia ininterruptamente, realizávamos
nossas olimpíadas, o que na época chamávamos de competição escoteira, onde
individualmente e sem representar as patrulhas, fazíamos diversas provas bem
diversa das hoje realizadas.
Eu não era bom em todas.
Mas a prova do macaco sempre me deixava ou em primeiro ou segundo. Na prova da
machadinha e da faca, também não era tão ruim. Não era bom na prova dos nós, da
escalada, da travessia e da rodada dos pneus, fora o medo do salto na cachoeira
amarrado em uma bóia. Quando os seniores resolveram participar e foram aceitos,
logo a alcatéia com a aprovação do Akelá foi incluída na grande olimpíada anual
com atividades próprias. Foi necessário fazer um regulamento, onde os lobinhos,
escoteiros e seniores pudessem participar de acordo com a idade, peso e altura.
Na época não entendi bem, mas confiávamos nos nossos chefes e nunca em tempo
algum discordamos de uma ou outra vitória de alguém não merecida. Escolhíamos
as provas que iríamos realizar, e pelo tempo não podiam ser mais do que três ou
quatro.
Toda a chefia e o Chefe do
Grupo sempre estavam presentes neste dia. Eram os juízes e quem nos entregava
os prêmios, tais como uma faca nova, um canivete escoteiro, um chapéu Prada de
abas largas, um lenço de outro grupo, um distintivo qualquer, ou mesmo medalhas
simples, bronze, prata ou ouro, como a dizer que éramos os mais perfeitos
naquela contenda anual. A data programada para esta atividade escoteira era
aguardada com ansiedade. Não tive muitas vitórias e meus prêmios eram raros,
mas a diversão era garantida. O local, a Mata do Quati abarcava todos os seus
predicados, satisfazendo as necessidades técnicas, mateiras e como tradição não
podia ser alterada. Ali começou e ali teria o seu término.
Não sei quando iniciou a
participação dos Grupos Escoteiros das cidades vizinhas. Não lembro bem, mas
acho que a primeira idéia foi dada quando acampamos na cidade do minério, onde se
localizava uma grande ferrovia que extraia minério de ferro e manganês em grandes
quantidades e em enormes comboios de vagões puxados por ate cinco locomotivas.
Elas eram transportadas até o porto, há mais de 800 quilômetros de distancia, situado
em um estado vizinho. A Ferrovia sempre nos oferecia um vagão especial quando
acampávamos em áreas próximas da estrada de ferro, (amabilidade cedida devido a
um ex-escoteiro atual diretor de operações) a ponto de parar fora dos locais
programados para descer. Isto em toda a sua extensão bastando planejar com
antecedência. Ele, o nosso vagão era o ultimo do comboio.
Foi em um verão quando lá
acampamos (na cidade do minério), e junto com o grupo escoteiro local muito
amigo de todos nós, que participamos de uma olimpíada pela primeira vez. Sempre
fazíamos acampamentos em conjunto, mas com atividades próprias de campismo e
confraternização. De surpresa nos convidaram para participar de uma olimpíada
no ginásio local, onde se conheceria o melhor corredor, nadador, saltador e
outras modalidades que pouco conhecia. Claro que aceitamos, mas foi uma
derrocada sem tamanho. No encerramento conseguimos acho eu umas 8 medalhas
contra mais de 50 do grupo da cidade.
Antes de retornarmos,
reunimos todos os monitores inclusive os seniores e um de nós que não lembro
quem, achou que aquela derrota tinha que ser revertida. Deu a idéia para que
convidássemos o Grupo Escoteiro da Cidade do minério para participar da nossa
competição anual. Claro que daríamos a eles oportunidades para se preparem,
pois não deram esse gosto para nós. Claro que aceitaram. E até que não foi
ruim. Reunir dois grupos, mais de 50 escoteiros, 25 seniores e 40 lobinhos na
Mata do Quati foi fantástico. As competições foram realizadas com
companheirismo e respeito. Era ponto de honra os anfitriões fornecerem toda a
alimentação aos visitantes. Isto sempre acontecia em qualquer cidade que
possuía um Grupo Escoteiro. Na primeira Olimpíada executadas em conjunto, demos
um verdadeiro banho, conquistando mais de 70% dos prêmios. No entanto, isto foi
mudando através dos tempos. Os visitantes mais e mais se preparavam e não eram
considerados uns pata tenras como dizíamos.
Quando mudei da cidade em
fins de 63, havia mais de 3 grupos que participavam se tornando uma tradição
distrital. Não sei atualmente se ainda persiste, mas as competições escoteiras
realizadas e consideradas hoje como olimpíadas olímpicas não nos traziam como
as de antes, lembranças vivas de nossa vivencia mateira e técnicas escoteiras
forjando aventuras reais. Acredito que podem existir vários grupos que realizam
ou participaram de tal atividade. Pode ser que muitos grupos em nosso país tenham
conhecimento de tal intensidade técnica e mateira. E isto é extraordinário.
Eram marcantes e facilitavam sobremaneira o desenvolvimento nas provas de
classe.
Algumas provas apostilo abaixo
para exemplificar o que fazíamos e outras tantas não são aqui descritas para
não atropelar novas idéias que surgirem com a leitura deste artigo:
- Subir em menos de um
minuto em uma árvore de até 8 metros, descer pelo volta do salteador em 15
segundos. Não era para qualquer um;
- Fazer 25 nós escoteiros
ou de marinheiros em seis minutos. Até que era fácil;
- Nadar de um lado ao
outro do Rio do Morcego, (60 metros) no tempo máximo de 10 minutos com águas
revoltas. Era um perigo constante;
- Descer o rio e cair na
parte mais baixa da cachoeira preso a uma câmara de ar. Adrenalina pura;
- Receber uma caneca média,
um pouco de pó, açúcar e 3 palitos de fósforos para fazer um café em 8 minutos
sem ter nada preparado. Não era tão difícil;
- Participar da prova da
faca e machadinha, com lançamentos a distancia e acertar na melancia ou mamão
do campo, não era tarefa simples. Só para os mais treinados;
- Cortar uma tora de
madeira de mais ou menos seis polegadas com um facão em menos de 3 minutos. Considerado
tarefa fácil;
- Ir e voltar numa falsa
baiana de mais ou menos 6 metros de comprimento, por cima do Córrego do Marmelo
em dois minutos. Sorrisos constantes dos primeiras classes;
- Transmitir sem ajuda de
um “espelho” por semáforas 30 ou 40 letras por minuto. Só para bons sinaleiros;
- Construir uma armadilha
para caça de animais ou pássaros que funcionasse em menos de 10 minutos. Prova considerada
relativamente simples;
- Montar uma barraca de
olhos vendados em 4 minutos. Facílimo para os escoteiros pata tenras;
- percorrer uma trilha de
300 metros em semicírculo com sinais de pistas simples em 12 minutos. Para
lobinhos. Os escoteiros percorriam em terreno pedregoso tentando achar pegadas
feitas com botinas militar do chefe Do Grupo;
- Encontrar pelo cheiro
uma onça pintada, com os olhos vendados. (a onça era representada por um cão,
muito amigo nosso e colocávamos amarrado em seu corpo sacolinhas de alho picado
com gordura vegetal). Só mesmo para os velhos mateiros;
- Preparar um sinal de
fumaça recebendo dois palitos de fósforos com fogo verde e transmitir um S.O.S.
em 4 minutos. Não era muito simples;
- Carregar nos ombros a
moda escoteira outro escoteiro da sua altura e peso por 200 metros em 5 minutos.
Tarefa para os melhores corredores;
- Descobrir dentre 8
feridos espalhados em um raio de 150 metros, quais as tipóias corretas em 2
minutos. “Beleza”;
- Fazer uma pequena cabana
para abrigo de dois escoteiros com mãos limpas só com folhas e galhos secos em
15 minutos. Muitos faziam em 06 minutos;
Carregar um peso ou sacos
de pedras de aproximadamente 50% do seu peso, sem usar as mãos atados com uma
grande tipóia presa à cabeça (usávamos um pequeno lençol) em uma distancia de
100 metros em 05 minutos. Considerado prova simples;
- Discursar como um
palestrante, alto e em bom tom sem interrupção, a Lei Escoteira do último ao
primeiro artigo. Ou de dois em dois numero par, terminando em numero impar. Sem
erro era de uma bondade só, afinal saber a Lei era obrigação;
- Ficar amarrado a uma
árvore em uma distancia de 12 metros, para servir de alvo onde dois escoteiros
atirariam 20 tomates maduros, distantes mais ou menos 20 metros em uma lata
acima da cabeça. Tempo de duração – 5 minutos. Uma prova de coragem;
- Mergulhar em um remanso,
com um ou dois metros de profundidade e ficar por 05 minutos usando um
canudinho do galho (pé) da abóbora ou do mamão. Uma festa na primeira vez;
- Montar uma fogueira de
Fogo do Conselho, para duração de hora e meia, não necessitando de manutenção,
em 20 minutos. Só mesmo para aqueles com a especialidade de acampador;
- Mostrar na prática como
é o passo escoteiro, percurso de Giwell em uma área de mata nativa por uma
hora. Na Mata do Quati poucos conseguiam;
- Receber um recado verbal
no inicio das atividades e ao final explicitar ao chefe o que foi falado sem
esquecer nenhuma palavra. Poucos conseguiam;
Durante uma jornada de 20
minutos na Mata do Quati, identificar pelo menos 6 pássaros diferentes e no
retorno desenhar dois deles e imitar pelo menos 3 com seus cantos na floresta.
Dificílimo;
Com o passar dos anos,
outras provas foram acrescentadas. Sempre provas técnicas treinadas e
aprendidas na arte de aprender a fazer fazendo. Muitas foram esquecidas e
substituídas, pois não tinham mais o sabor da aventura ou por repetirem sempre
os mesmos ganhadores. Todas elas, criadas por nós tinham seu encanto pessoal. A
recompensa pelo primeiro lugar incluía o gosto da vitória. Sempre foram as
patrulhas que deixavam tudo preparado quando da realização das Olimpíadas. Os
escotistas eram os observadores e aqueles que serviam de juiz. Não gostávamos
de receber tudo pronto, pois isto nada significava em uma avaliação de nossa
capacidade técnica.
O tempo passou. Vi outro
dia grupos escoteiros participando de olimpíadas programadas para eles, uma
copia dos métodos olímpicos hoje realizados. Pelas fotos vi que estavam
compartilhando com alegria e júbilo. Participei na década de 80/90 de olimpíadas
assim programadas, diferentes daquelas do passado, no distrito em que atuava. A
participação era maciça e muito bem vista por todos os participantes. Mas
sempre me lembro do Rio do Morcego, da Mata do Quati, das grandes competições
lá acontecidas. Do barulho da cachoeira do Sonho que sussurravam sons
repicantes e harmoniosos aos nossos ouvidos. Foram tempos que nunca serão
esquecidos. Soube que um grande aeroporto
foi construído ali. Um Alto Forno siderúrgico que se alimenta com carvão
vegetal também. Acredito que a mata se foi. Quem sabe substituída por uma
floresta de eucaliptos.
O rio a cachoeira represada
formando um grande lago e o córrego devem ainda existir. Espero que não estejam
poluídos. Todas as lembranças são substituídas pelo presente e não podemos
fugir da realidade. Acredito que ainda existem outros rios, matas e córregos
sem os festivos temas que permaneceram na modernidade da poluição universal.
Faz parte dos novos tempos. O escotismo não pode e não deve aceitar tal
conjuntura. Acredito e quanto a isto não tenho nenhuma dúvida, que existe um
local parecido com o Rio do Morcego e o Córrego do Marmelo em qualquer lugar
deste nosso imenso território, onde grandes atividades escoteiras acontecem ou
estão sendo desenvolvidas. Seja em forma de competições ou de olimpíadas, mas
utilizando as técnicas escoteiras hoje tão esquecidas.
Quem sabe, muitos como eu
poderão quando envelhecer, lembrar que o escotismo foi e sempre será visto como
uma grande aventura. Cheio de surpresas e uma vida mateira magnífica, como uma
grande escola da vida. Deu a mim e a todos que participam ou participaram deste
notável programa, um orgulho próprio, sem soberba, deixando um rastro de
troféus fantásticos, conquistados com o passar dos anos, que ficarão marcados
para sempre em nossa memória.
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