A marca da Pantera
A história de um bastão
escoteiro
“Hei pantera! Sabemos do seu grito, do seu rugido, da sua força. Sabemos
que é capaz de manter a união, perseverança. Sabemos que você sabe lutar,
vencer, viver, e sua fé une aqueles em sua volta. Pantera Negra patrulha do meu
coração!”
Lema da Patrulha Pantera
Já se passaram
trinta e cinco anos. Quase uma vida. Ainda me lembro de quando me fizeram. Um
monitor novo, uma patrulha nova, todos iniciando na tropa recém-formada. Para
dizer a verdade, me sinto orgulhoso de todos eles. Foram muitos que passaram
pela patrulha durante este tempo. Guardo o nome de cada um no fundo do meu
coração. Desculpe, sou de madeira, dizem que não tenho coração. Será? O livro
de memórias da patrulha que o escriba guarda com muito carinho, também tem seus
nomes, tempo que permaneceram na patrulha, acampamentos, endereços e o que
conquistaram como escoteiros.
Houve épocas ruins, muitas. Monitores
desleixados, que não ligavam para mim, me deixavam em qualquer lugar. Já passei
por grandes tempestades, caí em córregos profundos, despenhadeiros, fiquei a
deriva em um trem de ferro. Incrível! Safava-me com galhardia. Claro tinha
sempre um escoteiro bondoso da patrulha que não me deixava desaparecer. Mas
acreditem, sempre fui amado pelos grandes patrulheiros da Pantera em todos os
tempos.
Nasci há muito tempo. Era um frágil
galho de uma goiabeira, mas me orgulhava de minha raça araçá-guaçu, mesmo
pertencendo a uma família com tronco tortuoso, de casca lisa e descamante.
Considerava-me um galho pubescentes e por várias vezes vi as flores que vicejavam
brancas, solitárias principalmente na primavera. Nunca consegui dar frutos, não
sei por que. Comentavam a “boca-pequena” que nós goiabeiros somos os mais
fortes, os que mais duram. Não sei, talvez seja por isso que Romildo me
escolheu.
Lembro bem quando ele se colocou
debaixo da goiabeira e olhando para o céu analisou todos os galhos ali
existentes. Eu não sabia, mas ali começaria minha saga do mais antigo bastão
totem da Tropa Escoteira Titan (aquele que tem sensibilidade, simpatia,
cooperação, diplomacia e receptividade). Orgulho-me de ter começado logo após
sua primeira promessa. Não foi no mesmo dia. Romildo e mais cinco amigos
ficaram por três meses sendo adestrados como monitores e subs.
No primeiro dia da formação das
patrulhas, lá estava eu. Claro, passei por várias etapas. Romildo me deixou
secando dentro do quarto dele (dizia que o sol iria me estragar) por uma
semana. Depois gentilmente retirou minha casca sem usar faca ou canivete. Passava
todos os dias um pano embebido em óleo de linhaça, e fiquei quinze dias ao pé
de sua cama. Por último, passou de leve um verniz incolor que produziu um
brilho todo especial. Acho que foi amor à primeira vista entre mim e ele.
Romildo era um verdadeiro monitor.
Fez questão de fazer uma biqueira de aço,
leve, que encaixou na minha ponta e em cima também uma pequena tampa de aço com
pequena alça onde prenderia a ponta do totem, ambas encaixadas a fogo. “Todos
os dias ele me olhava, sorria me colocava junto a ele, vestia o uniforme e
dizia Sempre Alerta” me segurando com a mão direita e a esquerda com o sinal escoteiro
levava até a altura do coração.
Comprou de um sapateiro diversos cadarços
de couro grosso, tipo Camurção, beneficiado com as fibras do lado do carnal
(parte interna da pele). Comprou também outros cadarços feitos de pelica, um
couro de cabra, leve de toque macio, alto brilho. Depois me disse o porquê. Não
se assustem, eu e Romildo éramos bons amigos e nós conversamos muito. Sua mãe
fez um lindo Totem. Eu não sabia, mas tinham escolhido na patrulha que o nome
seria Pantera Negra.
Romildo era um estudioso. Seu chefe
dizia que ele era um monitor de que se orgulhava. Tinha de saber todas as
respostas para os escoteiros de sua patrulha. Aprendeu que a Pantera negra
(Panhhera pardus melas) vive nas selvas quentes da Malásia, Sumatra e Assa.
Também na Etiópia. Seu pêlo era inteiramente preto. Na floresta não era
amigável. Vivia mais só. Aprendeu que a Pantera sabe mergulhar, nadar, salta
sobre pedras soltas e cai a metros de distancia. Ataca mamíferos. Prefere áreas
cobertas de arbustos.
Romildo foi à biblioteca da sua cidade e
lá ficou por vários dias até que achou uma foto linda de uma pantera. (ainda
não havia internet) Desenhou o que sabia, pois não era bom desenhista e sua mãe
pontilhou em um feltro amarelo, a “Marca da Pantera”. Nunca mais foi mudado.
Claro, o totem sempre me reclamava por ficar deitado, torto e poucos notavam o
desenho tão bonito da pantera negra. Demorou algum tempo, até que o sexto
monitor da patrulha fez uma capa de plástico que só usava em acampamentos (para
proteger das intempéries) e um arco em forma do totem para mantê-lo sempre
reto.
No primeiro dia que fomos apresentados a
patrulha, ela deu um lindo grito. Ficamos eu e o totem emocionados. Eu ainda
não sabia o que eram os escoteiros, mas aos poucos foi me tornando um deles.
Decidiram que a cada etapa mais alta alcançada por um dos seus patrulheiros,
seria trançado em mim um cordão fino de pelica. Vermelho para quem conquistasse
os cordões de eficiência e azul para os possuidores do Liz de Ouro. Para dizer
a verdade, não tivemos muitos. Cordões foram vinte e Liz de Ouro só quinze. Mas
quem chegava sabia que ali tinham passados grandes escoteiros.
Nem tudo foi alegria nestes meus trinta e
cinco anos de vida. O oitavo monitor da patrulha não era muito condescendente
comigo. Deixava-me de qualquer jeito, e olhe em um acampamento fiquei debaixo
de chuva por três noites. O Totem chorou varias vezes. Estava sem a proteção.
Ele o Monitor me usava como defesa de lutas com outros jovens. Não fui feito
para isto. Mas o pior aconteceu em uma manhã de inverno. Ele cansado da subida na
montanha, vendo que ninguém olhava me jogou despenhadeiro abaixo.
Ao chegar ao destino, o chefe deu falta
de mim e do totem. Ele mostrou onde tinha jogado. Procuraram-me e acharam. Ele
perdeu o cargo de monitor. Seu substituto leu todo meu histórico no livro da
patrulha. Lá Romildo deixou escrito como devia ser tratado. Limpeza a cada
cinco meses e lustrar com um pano embebido em verniz incolor. Olhar todo o
bastão para ver se não estava com machas que poderiam ser cupim. Senti-me
outro. Gostei do novo Monitor.
Já com vinte anos de vida, a tropa Titan
foi acampar em uma cidade distante e o chefe conseguiu passagens gratuitas para
todos. Fomos de trem. Divertíamos muito. Chegamos, eles desceram e me
esqueceram! O trem partiu e eu fui com ele. Fiquei arrasado. O Totem como
sempre chorava. Ele era muito sensível. Disse a ele para não se preocupar. Eu
sabia que iriam atrás de nós. Um homem sentado numa poltrona ao lado me viu. Ao
descer me pegou e levou com ele.
Achei que nunca mais seriamos
encontrados. Mas o homem foi ao chefe da Estação e explicou que os escoteiros
desceram na estação anterior e me esqueceram. Passaram um telegrama. Fui
embarcado de volta. Na chegada lá estava toda a patrulha me esperando. Um grito
gostoso da patrulha foi dado. Senti-me em casa. Sempre sentia tristeza quando
algum escoteiro passava para sênior ou saia do escotismo. Afeiçoava-me há todos
eles muito facilmente.
Um dia notaram durante um Conselho de
Patrulha que o Totem estava se desbotando muito. Pudera, ele já existia a vinte
e oito anos. Teve que ser substituído. Fizeram uma linda cerimônia de
despedida. Vieram todos os ex-panteras que ainda moravam na cidade e passaram
pela patrulha. Foi uma alegria para eu rever meus amigos de outrora. Quando
colocaram o novo, olhei para o antigo. Foi colocado em uma proteção de plástico
amarela, que lhe dava cor e colocado na parede principal da sede escoteira. Até
hoje ornamenta a sala da sede. Fiquei muito triste, pois afinal éramos eu e ele
os primeiros bastão totem a existir na tropa escoteira.
Tivemos
lindas reuniões. Lindos acampamentos. Viajamos muito. Conheci lindos lugares,
os mais altos picos, as mais lindas planícies e os rios mais espetaculares que
poderia ter conhecido. Participei de centenas de atividades ao ar livre, de
competições, de encontros nacionais e regionais. Afinal sou um privilegiado.
Era apenas um galho de goiabeira e me transformei em um símbolo. O novo Totem
era lindo. Ele sabia disso. Mostrava-se grandioso, magnífico. Tornou-se depois
um grande e bom amigo. Ficamos irmãos em pouco tempo. Nosso maior orgulho foi
quando Os Panteras foram em um jamboree.
Uma apoteose. Milhares de escoteiros.
Centenas de patrulhas. Conheci bastão totem de todos os tipos. Mas eu e o Totem
sorriamos. Sabíamos que éramos da Pantera.
Tínhamos orgulho. O dia mais triste em minha vida foi quando Romildo
faleceu. Estava novo ainda. Trinta e dois anos. Diziam que tinha câncer. Não
sei o que é isso. A patrulha compareceu em peso nas suas exéquias. Centenas de
ex-escoteiros também estavam presentes. Não choravam se sentiam orgulhosos de
Romildo. O meu criador, meu pai, meu grande amigo.
Os anos passaram. A tropa firme. Houve
épocas difíceis. Um chefe que não tinha muita experiência. Os Panteras ficaram
reduzidos a três. Mas eram fortes ainda. Difícil competir com outras, pois era
uma norma não escrita que não se empresta escoteiro de uma patrulha para outra.
Na falta os presentes tem de se desdobrar. Em todos estes anos, não tenho
certeza, acredito que mais de cento e oitenta escoteiros passaram pela Pantera.
Tivemos dias bons, dias ruins, reuniões que marcaram época e reuniões que
deixaram a desejar.
Sempre aos sábados recebíamos visitas
de antigos patrulheiros da pantera. Eram sempre bem recebidos. Sabíamos os
nomes de todos. Suas idades, seus endereços. E a cada aniversário da patrulha,
pois sempre celebrávamos o dia maravilhoso que começamos muitos deles
compareciam a sede. Era maravilhoso ver todos juntos tentando segurar em mim e
dar o nosso grito de patrulha. Seniores, pioneiros, escotistas e vários
ex-escoteiros. Dois deles que conosco começaram, agora com seus quarenta e oito
anos e o melhor, com seus filhos.
Mas meu dia chegou. Estava
envelhecendo. Estava na hora de aposentar. Como dizem na gíria – hora de passar
o bastão. Poderia ter continuado por
mais alguns anos. Mas não sei se ia dar conta nas duras lidas de um
acampamento. Todos receavam que pudesse quebrar rachar e ninguém queria me ver
assim. Ravim o novo monitor foi quem cuidou de tudo. Foi até uma goiabeira,
olhou para o céu, e escolheu um galho que se parecesse comigo. Estava escrito
no livro da patrulha como fui preparado. Romildo escreveu tudo que fez. Ravim
sabia como fazer.
Retiraram o totem e colocaram no bastão
novo. O meu amigo do passado foi retirado da parede e voltou novamente a ser
meu companheiro. Mantiveram em mim as marcas de todos que foram Liz de Ouro, e
os que receberam os Cordões de Eficiências. No novo mantiveram tudo que estava
colocado em mim. Fizeram uma réplica. A cerimônia da troca foi feita a noite. Estávamos
fora da cidade. A tropa fez um circulo. Eu participei pela primeira vez com
todas as patrulhas da tropa. Recebiam-me em saudação pelo monitor, davam o
grito de origem e depois o da Pantera. Colocaram-me em pé, e todos um a um
passaram em minha frente e deram o Sempre Alerta.
Marcou-me meu amigo. Marcou-me. Se fosse
gente teria chorado. Mas o pior era que eu achava que era gente. Que era um
escoteiro e uma pequena gota d’água correu pelo meu corpo de madeira. Não sabia
se era uma lágrima. Mas nunca mais esqueci aquela cerimônia. Todos os monitores,
exceto Romildo estavam lá. Eles no final ficaram na minha frente e um por um
dizia do seu tempo ao meu lado e das aventuras que juntos passamos. Quanta
emoção.
Hoje, estou colocado na parede da sede.
Vejo todos entrando e saindo. Ainda sou um bastão escoteiro. Tenho orgulho de
ter sido e sempre serei para a Patrulha Pantera o seu símbolo. Os meus
sentimentos nunca serão de altivez. Não.
Eu sei que o passado e as lembranças irão permanecer para sempre. Não
ligarei para o silencio nos dias sem reuniões, ou o som do grito dos Panteras
ao longe, pois eu vou lembrar-me de tudo. E se possível vou transformar o meu
passado em algo, que no futuro será sempre bom e gostoso de lembrar.
Principalmente nosso grito de patrulha. Feito pelos primeiros panteras, a
trinta e cinco anos atrás:
“Panteras, acordem, vamos
seguir adiante
Somos um só, unidos e juntos
na memória.
Valentes, leais, nosso
lema avante
Pois nossa marca ficará
para sempre na história
Não duvidem amigos, com
a pantera ninguém pode!
Ego et tu unum sumus –
Pantera! Pantera! Pantera!”
Não chore nas
despedidas, pois elas constituem formalidades obrigatórias para que se possa
viver uma das mais singulares emoções da vida: O reencontro.
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