O lobinho, o Chefe Escoteiro e o Cavalo Dourado.
"O maravilhoso da
fantasia é nossa capacidade de torná-la
realidade”.
Lito
tinha nove anos. Ia fazer 10 no mês seguinte. Tinha um aspecto alegre,
bonachão, contador de piadas, e apesar do seu aspecto nissei, seu pai nascera
neste país assim como sua mãe. Na Alcatéia ninguém prestava atenção nisto. Eram
como se fossem irmãos. Ali acho que pela idade e pela fraternidade, não havia
discriminação de raça, cor ou credo. Estava no grupo a mais de um ano. Bom
lobinho participava de tudo e seus pais davam o maior apoio. Sua matilha era
muito unida. Ainda não era primo e nem segundo. Não tenho certeza, mas acho que
sua família seguia a religião Budista. Não andava sem motorista e guarda costa.
Quando seu pai ou sua mãe aparecia, era sempre acompanhada de dois ou mais
seguranças. Eu não estava acostumado com estes acontecimentos, pois novo no
grupo, ia conhecendo aqui e ali seus pormenores. Nada contra. A vida de cada um
tem sua razão de ser e deve ser respeitada.
Um dia,
eu e alguns outros escotistas quando num final de reunião, fomos tomar um
chopinho, o que nada nos desmerecia claro, desde que não ultrapassemos a cota
do bom senso, e nem estivemos com crianças presentes. Conversa vai, conversa
vem, entramos no assunto de alguns pais, sem a intenção de censuras, mas
somente ver as vantagens do escotismo para todas as famílias do Grupo, sem
distinção. Um dos chefes foi bastante franco quando se referiu ao pai de Lito.
– Olhem, não tenho a menor dúvida. Acho que ele pertence à máfia chinesa. Uma
vez o vi em uma praia, todo tatuado como são os membros da yakuza. Ficamos
amatutados com tal observação. Víamos algumas vezes comentários na imprensa,
mas sem definir quem, quando e onde.
Num
acantonamento, já no fim da tarde, duas assistentes dos lobinhos saíram do
sítio, a procura de um bosque para montar um jogo. Quando andaram menos de 150
metros, avistaram um carro preto, encostado na estrada, cuja vista escondia
toda a entrada. Sentados embaixo de uma árvore, dois indivíduos trajando terno
preto e ambos de óculos escuros percorriam com os olhos toda a jornada feita
por elas. Bem abaixo, perto de uma pequena elevação, outros dois. Claro, não havia a menor dúvida. Eram
seguranças do Lito a mando do seu pai. Todo o cuidado era pouco. O medo do sequestro
era grande. Quando soube vi com certeza que ou ele era um mafioso ou um grande
industrial, mas sua maneira arrogante no trato com os seguranças, sua
autoridade quando falava ou olhava para alguém dizia que não era qualquer um.
No grupo conversava pouco, mas era presente nas reuniões de pais e Conselho de
Grupo.
Lito
pouco ligava. Para ele a vida era para brincar, estudar e ser lobinho. Não
sabia como era em casa, mas acredito que cercado de cuidados devia não gostar
muito. Como lobinho tinha muita liberdade, muitos amigos, muitas brincadeiras e
a conquista de estrelas era para ele um objetivo de que não abria mão. Em um
sábado de agosto, ele não apareceu. Para todos na Alcatéia foi surpresa. Desde
que foi admitido nunca faltou à reunião. Não era norma perguntar aos pais ou
telefonar. Claro sabiam que um impedimento qualquer devia ter acontecido. Mas
no sábado seguinte também não veio. Nenhum contato dos pais. No terceiro sábado
começamos a ficar preocupados. Se os pais quisessem sua saída da Alcatéia não
teriam agido deste modo. Calados, sem comunicação e sem contato. Não era estilo
deles. Nunca foram ausentes e tenho certeza tinham investigado a vida de cada
assistente, de cada Escotista. Por suas maneiras de agir sem sombras de dúvida
que confiavam e muito no Grupo Escoteiro.
O Chefe
do Grupo resolveu ir à casa de Lito na manhã de um domingo. Foi barrado na
porta por um segurança. Identificou-se e mesmo assim não foi recebido. Ficou
magoado com o tratamento. Não acreditava que os pais agissem daquela forma. Quando
ia saindo, viu dois carros da policia adentrando na mansão. Como um mais um são
dois, é claro que houve alguma coisa para ter aquele aparado policial. Ele
sabia da posição do pai, junto à sociedade local. Era benquisto, mas a “boca
pequena” corria o boato de sua atuação mafiosa e onde a fogo todo mundo sabe o
que acontece. Era melhor não perguntar e se possível nada dizer aos escotistas
do Grupo. Calar agora seria o melhor remédio. Seu silencio, no entanto não foi
estendido muito tempo. A pressão da Akelá para uma resposta ou mesmo uma
explicação era sempre presente.
Ele
pediu cautela e prudência nos seus relatos, pois caso contrário poderiam sofrer
represálias e comparativamente não tinham nenhuma defesa ou mesmo autoridade
para adentrar na vida de alguém tão influente. Mas o tempo não dá trégua. A voz
também não. Corria o boato que Lito tinha sido sequestrado. Por não ter os
meios de comunicação anunciado ou mesmo comentado, poderia ser verdade. Sempre
nestes casos se pede silencio. Um mês, nenhuma notícia de Lito. Após 45 dias,
nossa preocupação estava agora sobre controle e no inicio da reunião apareceu
sorrindo e brincando nada mais nada menos do que o Lobinho Lito. Acompanhado de
seus pais e em cada ponto do pátio um segurança.
Não
havia o que dizer, pois a alegria substituiu todo o medo e o receio do que pudesse
acontecer daí para frente. O pai pediu desculpas, não entrou nos detalhes e
explicou que em todas as reuniões pelo menos até o final do ano ele tinha que
manter os seguranças dentro e fora do pátio. Que não nos preocupássemos. Nada de
mal aconteceria a ninguém. Ali era dizer não e Lito não voltar ao Grupo ou
concordar e manter Lito no Grupo. A segunda opção foi aceita. Aos pais foi dado
uma explicação simples de como era a família de Lito e que isto poderia
proteger também os seus filhos. Alguns não concordaram e retiraram seus filhos.
Antes do desfecho final da reunião, vi Lito em pé e em volta vários lobinhos,
escoteiros, escoteiras seniores e guias, enfim um bom número de jovens ouvindo
as histórias de Lito, comentando seu sequestro. Seu pai tinha pedido para nada
dizer, mas ele sempre aberto franco, contou o que aconteceu.
Na
saída da escola muitos bandidos renderam os dois seguranças e o levaram.
Colocaram uma venda e ele não viu nada. Só tiraram quando ficou em um pequeno
quartinho, sem TV sem nada. Chorou muito, mas não adiantou. Aos poucos foi se
acostumando com a penumbra e suas refeições era um marmitex cujo cardápio além
de ruim ele nunca tinha comido. Tinha muita fome e aprendeu a comer de tudo. Em
poucos dias parou de chorar. Lembrava-se de Mowgly, que não tinha medo de Shere
Khan e ele como lobinho também podia enfrentar. Lembrou-se da lei do lobinho e
viu que tinha de manter os olhos e os ouvidos abertos. Assim adormeceu e sempre
adormecia quando a tristeza invadia e lembrava-se de seus pais e seus amigos
lobinhos.
Não
tinha mais noção do tempo. Não sabia se era noite ou dia. Quando dava sono
dormia se não ficava sentado em um colchonete e quando dava cantava algumas
canções que a Alcatéia tão bem cantava. Era assim que vivia aquele momento tão
incerto. Foi em um dia que acordou sorrindo. Seu sonho tinha sido maravilhoso.
Um chefe Escoteiro já velho, uniformizado e com barbas brancas, sorrindo como
se fosse seu avô, lhe deu o Melhor Possível e ele prontamente respondeu. Disse
o Chefe que ele não se preocupasse, pois o Cavalo Dourado iria no dia seguinte
libertá-lo, e ele iria ao encontro dos Chefes que vivem no Grande Acampamento
das Nuvens Brancas. Ele não sabia o que era aquilo. Mas acreditou no Chefe.
Logo que acordou viu junto a ele um grande e belo cavalo. Todo dourado,
brilhante com faíscas em diversas partes, como se fossem milhões de vagalumes
em suas volta.
Sorriu
e montou no cavalo. Logo se viu correndo pelas campinas, voou para o céu e em
poucos minutos se encontrava em um local lindo, cheio de escoteiros, lobinhos,
chefes, um jardim, muitas barracas, jovens correndo daqui para ali, e não
paravam de sorrir e cantar canções escoteiras. Viu então próximo a uma pedra
branca como leite, sentado a moda índia, o chefe que havia o visitado no seu
sonho. Sorridente, levantou e cumprimentou Lito, dizendo para ele que era muito
bem vindo, mas não podia demorar, pois seus pais estavam muito preocupados.
Iria levá-lo até um local na terra, onde ele poderia telefonar e seus pais
iriam buscá-lo com presteza. Sentiu os olhos chamejantes e quando esfregou e os
abriu, estava em um posto de gasolina. Correndo pediu a um homem que
telefonasse para seus pais. Deu o numero e em pouco tempo o posto de gasolina
estava cheio de carros da policia e seus pais também chegaram.
Muitos
abraços, à volta para casa, à lembrança do Cavalo Dourado, do Chefe Escoteiro
do Acampamento das Nuvens Brancas. Seus pais sorriam, fingiam acreditar, mas
sabiam que aquilo era um sonho de Lito. A realidade devia ser outra. Eu também
não acreditava. A maioria dos jovens ficaram fascinados com a história de Lito.
Ali mesmo ele foi aclamado como herói e todos queriam saber como encontrar o
Cavalo Dourado e o Grande Acampamento. Ele não soube explicar. Meses se passaram.
Ficamos sabendo que dois membros da quadrilha de sequestradores foram presos.
Outros seis não tiveram a mesma sorte. Morreram de maneira cruel, como se fosse
uma vingança e melhor não especificar como. Um dos presos contou que Lito sumiu
em um dia mesmo com a porta trancada. Ela não fora aberta. Continuava trancada.
Não sabiam como ele tinha escapado, pois onde estava não tinha janelas, só a
porta.
Eu
também fiquei encafifado, mas acreditar na tal historia do Cavalo Dourado seria
impraticável. O que aconteceu realmente não sei. Ninguém soube explicar. Mas
Lito continuou por muitos e muitos anos ainda no Grupo Escoteiro. Mesmo na
tropa, contava a mesma história e soube por amigos que agora como sênior mantêm
sem mudar uma vírgula, a história do Cavalo Dourado...
Não permita que a dificuldade
lhe abra porta ao desânimo porque a dificuldade é o meio de que a vida se vale
para melhorar-nos em habilitação e resistência.
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