Lendas Escoteiras.
Esperança e gloria de um Chefe Escoteiro.
Uma tarde modorrenta. Cansei de ler e na praia
onde estava meus olhos fitavam o mar. Uma brisa gostosa soprava suavemente meu
rosto. Eu já estive nas mais altas montanhas, nas vastidões das belas planícies
do nosso sertão, vi coisas que poucos tiveram a oportunidade de ver. O primeiro
vôo da borboleta azul, o botão da flor de uma orquídea presa no jequitibá a
desabrochar. Ouvi o cantar do Sabiá lá na serra do Japi. Quantas vezes ouvi o
som de uma cascata caindo sobre pedras amigas de longos e longos anos de
jornada. Mas o mar... Este é maravilhoso. Ainda não vi nada que o tirasse da
lista dos mais irresistíveis espetáculos da terra.
Em férias lia Gandhi: O apóstolo da não violência.
Um homem que se tornou uma lenda. Albert Einstein o saudou como o “porta-voz da
humanidade”. Vez ou outra as gaivotas graciosamente se elevavam no ar e faziam
lindas acrobacias. Eu cerrei os olhos lembrando-se do meu passado. Gosto de
ler. Basta escolher o livro certo para o dia certo. Ele nos dá o conhecimento
dos países distantes e nos faz descobrir lindas e maravilhosas situações que
nunca em nossa vida iremos viver.
Lembrei-me do chefe Martinho. Um grande Chefe
que tive a honra de conhecer. Fomos amigos por longos e longos anos. Muitos
acampamentos, viagens pelo pais e exterior. Martinho era Chefe de Grupo
Escoteiro. Hoje um Diretor Técnico. Martinho era um chefe especial. No seu
grupo brotava o amor, o respeito e não havia desigualdade só fraternidade. Era
querido por todos no grupo e fora dele. No bairro era admirado e quando passava
lhe saudavam com carinho. Vado Escoteiro, a melhor propaganda do escotismo é um
escoteiro bem uniformizado e garboso na sua comunidade e como Chefe temos de
dar o exemplo. Não atrasava e era o primeiro ao chegar. Prestativo não deixava
nada faltar nas reuniões dos lobos e escoteiros
Martinho era firme quando um acontecimento ou um fato destoava ou seguia
o caminho diferente do que preconizava a formação escoteira. Primava pela
educação. Nunca se exaltava e nunca levantava a voz. Dizia ele que gritos nada
mais são que agressões gratuitas. Não convencem ninguém. Quando em
Conselhos de Chefes ele não gostava de ser Salomão. Sabia o que dizer nas horas
mais difíceis e nas tomadas de decisões. Dizia que era impossível alguém
conhecer seus direitos se não conhecesse seus deveres. Durante muitos e muitos
anos, Martinho foi reconduzido como Diretor Técnico apesar de sempre achar que
não poderia ser eterno. Ninguém é insubstituível comentava.
Uma vez ele teve um pequeno problema com os dirigentes regionais. Pequeno
mesmo, mas ele foi firme e não deixou para amanhã o que tinha de fazer. Quando
viu que correspondências não estavam resolvendo, pegou um ônibus e foi até a
capital do estado. Voltou com um sorriso no rosto como a demonstrar missão
cumprida. Martinho não era um erudito e nem tão pouco filosofo, mas sempre
dizia que temos que ter conceitos adequados a cada situação. Para isso as
conquistas de valores fazem com que a consciência haja de forma correta e
fraterna.
Uma tarde
cheguei à sede e não vi ninguém. A porta estava aberta e no almoxarifado encontrei
Martinho deitado no chão se contorcendo em dores. Aflito chamei uma ambulância
e o levamos para o Hospital. Foram noites de agonia. Não dormi. Não fui
trabalhar. Fiquei ali plantado com Cecília sua esposa. Ela era mais forte que
eu. O médico nos trouxe o diagnóstico – Câncer nos pâncreas. Não tem muito
tempo de vida. Meus olhos encheram de lágrimas. O hospital encheu-se de
escoteiros e chefes. Vieram até dirigentes da Regional. Parecia um aparato de
uma grande atividade escoteira. Eram tantos que precisaram vir policiais para
organizar o trânsito.
Martinho fez questão de receber a
todos indistintamente. Apertou a mão de cada um que foi visitá-lo. A direção do
hospital abriu uma exceção para os jovens. Martinho ficou todo o tempo com um
sorriso nos lábios. Quase não falava. Sentia dores horríveis apesar de remédios
fortes que tomava. Pouco descansava e dizia que as visitas vinham em primeiro
lugar e o sono depois. Na madrugada do segundo dia Martinho me chamou e
perguntou: - Meu amigo, todos dizem suas últimas palavras quando a morte
aproxima. Eu não sei o que dizer. Acha que devo dizer alguma coisa?
Falar o que para Martinho? Eu era a prova viva da admiração, do meu amor e do
respeito que sentia por ele. Meus olhos molhados não mostravam outra coisa a
não ser a dor enorme que estava sentindo. Martinho sabia a hora que iria se
despedir para sempre. Pediu sua esposa que fizesse uma doação de todos seus
pertences escoteiros ao grupo para eles doarem a quem precisasse. Se alguém for
feliz com ele eu também serei feliz, disse. Cecília uma incansável mulher
sempre ao seu lado.
Não vi Cecília chorar. Uma mulher forte que dizia
que nestas horas precisávamos dar força a ele. Martinho partiu uma semana
depois. Setembro, outono, folhas secas caindo das árvores naquela necrópole
sombria em um bairro afastado da cidade. Uma brisa leve e calma foram
testemunhas da ida de Martinho para onde ele acreditava que existia outra vida.
Nunca me falou nela. Nunca quis convencer a ninguém sua religiosidade. Suas
exéquias foram simples. Vieram milhares para saudar e dar o último adeus a
Martinho. Não ouve canções. A despedida foi só uma lagrima que aqui e ali era
derramada por todos que foram seus amigos no passado. Martinho pediu para ser lembrado
pelo que foi pelo que fez e não pela sua agonia de uma morte não esperada. Deixou
saudades, muitas saudades.
Alguns meses passados e o Conselho de
Chefes do grupo votou em mudar o nome do grupo que seria uma homenagem a ele.
Seria Grupo Escoteiro Chefe Martinho Alberto Flores. Cecília quando soube disse
não. Mostrou um bilhete que ele escrevera horas antes da sua morte. Não quero
tributos, que permaneça por toda a vida o nome que conheci, sempre amei e
admirei. Grupo Escoteiro Estrelas Cintilantes. Até hoje visito Cecília. Uma
forte mulher. Não pediu nada a ninguém. Trabalhava e dizia sempre que Netinho seu
filho teria o que Martinho almejava.
Nunca em minha vida esqueci Martinho. Ele foi um grande chefe. Reto nas
suas ações. Ilibados e impoluto no seu exemplo pessoal. Martinho se foi, seu
modelo deveria ser seguido por tantos e tantos chefes, que tem sob a sua
responsabilidade dezenas de jovens que esperam muito mais. Esperam que eles
seus chefes sejam exemplos para que possam seguir na trilha escoteira sabendo
que um homem digno foi seu amigo em toda sua fase de crescimento.
Nota de rodapé: - A tarde vai aos poucos se
afastando. A noite chega de mansinho. Ainda estou sentado na cadeira de praia
de frente para o mar. O sol já se foi. A brisa está sendo substituída pelo
orvalho que cai mansamente. Li poucas páginas da história de Gandhi. Meus olhos
voltaram a ficar vermelhos. Nem sempre as lembranças são como a gente quer. A
vida é assim, uns ficam e outros vão. Nosso destino está traçado e o que somos
são frutos que nós criamos pensando que estávamos acertando para um futuro
melhor. Gosto de lembranças. Elas me fazem viver. Trazem-me saudades ou mesmo
sorrisos dos tempos que já se foram e não voltam mais.
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