Lendas
escoteiras.
Viver por
viver...
Ela ficava por horas sentada no banco da
praça, pintado de azul com propaganda da Perfumaria Delmarche. Nunca soube se
era para ver o por do sol na Montanha do Cisne ou se era para se isolar do mundo
que podia não gostar. Olhava para ela e ela não olhava para mim. Quase não
mexia os olhos sempre abertos como a fitar um infinito perdido em sua mente.
Seu nome eu sabia. Ouvi alguém chamá-la Soninha. Todas as vezes que terminava a
reunião eu corria para a praça e ficava junto da figueira onde tinha vista
perfeita para olhar para ela a montanha do Cisne e o por do sol. Vez ou outra
saia do lugar e passava em sua frente, mas ela não me olhava. Não sabia que eu
existia.
Quando a noite chegava,
uma senhora distinta pegava em sua mão e ambas iam embora rumo a Rua da Flor
Vermelha. Um dia eu fui atrás e vi ambas entrarem em um casarão que todos
sabiam pertencer ao Barão Von Friedrich já falecido. Pensei que a Mansão estava
vazia e que não morava ninguém. Ia sempre à praça nos dias de semana para ver
se ela estava lá. Não. Só aos sábados. Não sabia quando chegava, pois minha
reunião escoteira sempre iniciava as duas e quando passava na praça ela ainda
não tinha chegado. Eu me perguntava o que sentia por ela, mas nos meus catorze
anos não sabia. Amor? Amizade? Atração? Não tinha a menor ideia.
Quando fiz a promessa, me
esmerei por fardar na melhor apresentação que um escoteiro sonha ser. Foi um
dia marcante, quase chorei. Fiz questão de ir até a praça de uniforme e passar
em frente a ela para ver se chamava sua atenção. Notei com surpresa que ela me
acompanhou com os olhos e mais nada. Ela sempre vestida com uma saia plissada bege,
uma blusa de gola verde e sempre um pequeno gorro azul na cabeça. Usava uma
meia branca três quarto e uma sandália azul sem adorno. Dificilmente há via com
outra vestimenta. Nunca ouvi sua voz, seu sorriso, ou mesmo seu cantar. Ela
parecia não ver o mundo ou não se interessava por ele.
Por anos
tentei averiguar quem era de onde veio qual família e nada consegui. Cheguei a
ficar horas observado o casarão, mas ele parecia destonar de outros que tinha
vida e sorrisos nas portas e janelas. Até as flores não eram belas e mesmo bem
cuidadas não davam o “it” que se esperava em um jardim como aquele. Parecia um
casarão fora do nosso mundo, existente em outra dimensão que só eu via e mais
ninguém. Porque insistia? Porque continuar aquela procura do nada que não iria
encontrar? Anos olhando para ela, anos vendo o tempo passar como se ele não
tivesse passado e ela sem ao menos sorrir para mim.
Quando partia para meus
acampamentos, excursões e ou atividades aventureiras eu me perdia em sonhos de
não vê-la nos radiantes dias de sol dos sábados em que ela estaria lá e eu não.
Um dia resolvi sentar ao seu lado e abruptamente me sentei. Ela nem pestanejou.
Fiquei ali ao lado dela até a senhora distinta vir buscá-la. Noutro dia tremendo
peguei na sua mão. Ela parecia não se importar. Olhei sua face corada, sua tez
macia e seus olhos negros que não diziam nada. Meu coração bateu forte e agora
eu sabia que a amava e a queria para sempre.
Um pequeno escoteiro
crescido, entrando nos seus dezessete anos poderia ter esta ilusão? Por quem? A
senhora distinta chegou para levá-la. Interpelei. Ela me olhou bondosamente. –
Soninha escoteiro é autista disse. E nada mais falou levando-a pela mão. Meu
coração disparou. Batia como se fosse um machado do lenhador a cortar uma
arvore em uma floresta imensa. Autista? Não sabia o que era. Na biblioteca
encontrei: - Uma pessoa voltada para si mesmo, não estabelece contato visual e
nem com o ambiente. Algumas falam outras não. Li mais e mais e chorei. Porque
chorava? Por ser um sonho irrealizável?
Passaram-se muitos anos.
Anos demais que me deixaram com sonhos inacabados. Ela partiu, nem sei para
onde. Escoteiro eu era e escoteiro ainda sou. Zanzando por aí a procura de alguém
que nunca mais encontrei. A cidade para mim perdeu o luar, o sol, as estrelas e
ficaram meus sonhos impossíveis. Passei parte da vida acampando na Montanha do
Cisne. Quem sabe lá eu a encontraria? Um dia o banco azul da praça escrito Perfumaria
Delmarche foi pintado de verde. Alguém escreveu em vermelho – “Viver por viver,
sonhar jamais”! Uma história sem começo e sem fim.
“E como diz o poeta, não acrescente
dias a sua vida, mas vida aos seus dias”.
Nota de rodapé: - “Você já se
perguntou o que marca o nosso tempo aqui? Se uma vida pode realmente ter um
impacto no mundo? Ou se as escolhas que fazemos importam? Eu acredito que sim e
acredito que um homem pode mudar muitas vidas para o melhor, ou para o pior.”
Nenhum comentário:
Postar um comentário