Lendas
Escoteiras.
De ilusão
também se vive.
Saudades que
vão, saudades que ficam!
Tudo aconteceu na década de oitenta. Eu me
ofereci para levá-lo. Era apenas um encontro de velhos escoteiros em um lugar
qualquer da minha cidade. Não me inscrevi para ir e só fui fazer a inscrição
depois que soube que ele queria ir. Foi Donana quem me telefonou. – Chefe, a
família está aflita, ele não tem condições. Há dias acamado e parece que não
deram muita esperança de vida. Ninguem sabe quem disse para ele do Encontro dos
Antigos Escoteiros em um Fogo de Conselho nas matas do Parque Anhanguera. Ele
não para de dizer que vai. Quer encontrar seus amigos do passado. Não arreda o pé!
– Eu não o conhecia, nunca o
vi pessoalmente, alguns chefes me falaram sobre ele. Diziam que quando mais
jovem era uma pessoa maçante, insistente nos seus ideais, sempre a dizer que
seu tempo era o melhor e que hoje somos sombra do passado. Eu tinha meus
problemas. Por sinal muitos que não seriam de fácil solução. Meu emprego
perigava, poderia a qualquer momento ser demitido. Célia minha esposa sempre
dizendo que tinha de ir devagar. – Vado, temos quatro filhos já crescidos e
precisam de você e de mim. Você gasta muito nos escoteiros. Quem não pode pagar
você paga, nunca deixou ninguém para trás. Sempre foi daqueles que diz que ou
vão todos ou não vai ninguém. E se você ficar desempregado?
– Ela tinha razão, agora
tinha um salário razoável, mas até quando? – Era difícil parar, sempre fui
Escoteiro desde os seis anos. Amo de montão esta filosofia que me encanta, não
iria parar. Se Deus quisesse que eu fosse um desempregado não iria retrucar.
Mas do escotismo não iria abrir mão.
Donana me telefonou à tarde.
– Chefe eu estou com um problemão. Você não conhece o Chefe Polar. Nem sei se
este é seu nome. Já está chegando aos 90 anos. Dizem que conheceu Baden-Powell
e eu não duvido. Foi Chefe no Montezuma e só saiu de lá quando o Conselho de
Chefes achou que estava na hora dele partir. Diziam que era impertinente
maçante e até de irritante o chamaram várias vezes. Comentam que ele chegou em
casa chorando, e mesmo Isabel sua esposa tentando consolar ele passou um semana
enfastiado, olhos cheios de lágrimas e caiu prostrado em uma cama e não
levantou mais. Disseram até que ele queria tirar sua vida. – Olha ele já estava
entrando nos seus 86 anos e no grupo diziam que era um Pé no Saco! Ninguém
estava aguentando mais.
Fiquei pensando se quando
envelhecesse eu seria assim também. Liguei para sua esposa me prontificando em
levá-lo. Ela chorava e eu apiedado não sabia o que dizer. – Chefe, Polar quase
não anda. Tosse o tempo todo. Sempre com remédios a cada hora do dia. O médico
recomendou repouso absoluto, mas ele não obedece. Diz que vai de qualquer jeito
e ninguém vai impedir. Não sei por que o chefe Joviano o convidou. Ele devia
saber que Polar não tinha condições. – E os filhos porque não o levam e ficam
junto? Perguntei – Ela ficou calada por instantes. – Chefe, meus filhos nunca
foram bons escoteiros. Só ficaram enquanto ele praticamente obrigou. Hoje não
veem com bons olhos o escotismo. Chefe não sei se seria uma boa ideia.
Combinei com ela que passaria
por volta das sete da noite. Eu o levaria com prazer. - Afinal um dia serei
como ele senhora. Todos nós que amamos o escotismo um dia seremos velhos,
idosos, velhos lobos, ou seja, lá o que nos vão chamar. Se vai ser seu último
porque lhe tirar a chance de recordar? Liguei para Fagundes um Velho Escoteiro
para saber melhor sobre Polar. – Chefe, um grande homem. Deu sua vida pelo
escotismo. Nunca bajulou ninguém. Sempre foi honesto com sua escolha e dizia o
que pensava sem esconder. Não quiseram entregar para ele o lenço da insígnia. Diziam
que ele não tinha espírito Escoteiro. Nunca aceitou uma medalha dizendo não
merecer. Gritava e ainda grita aos quatro ventos que seu escotismo é o de raiz,
o de Baden-Powell!
Vesti meu uniforme devagar.
Sabia que iria levar alguém que merecia meu respeito e minha admiração. Sempre
fui do lado dos humildes, dos que se comprazem em não mudar de rumo ou direção.
Quando amarrei o cadarço do sapato preto, vistoriei de novo o friso do meião.
Olhei pela última vez no espelho se meu lenço estava como sempre fiz. Perfeito.
Coloquei meu chapéu devagar. Tirei os barretes do meu uniforme. Achava não
ficar bem na presença dele. Afinal me disseram que seus setenta e tantos anos
de escotismo não significava nada. Diziam que ele precisava mostrar como servir
a União dos Escoteiros do Brasil com bons serviços prestados. Despedi com um
beijo afetuoso na Célia entrei no meu fusca e parti. Não tinha pressa. Tinha
tempo, muito tempo.
Ao cruzar a esquina da Sete de
Setembro com a Saúva uma ambulância passou nos gritantes rumo ao centro da cidade.
Meu coração acelerou. Entrei na Rua Peçanha. Na porta da casa de Polar um
mundão de gente. Desci Dona Isabel sua esposa me olhou chorando e disse: -
Chefe, não precisa mais. Polar partiu, nunca mais vai voltar. – Ela chorava a
perda de alguém com quem viveu uma vida. A abracei carinhosamente. – Para onde
foi? – Eu pensei. – Para o Grande Acampamento do Universo? Não sei se ouve o
Fogo do Conselho dos velhos. Nunca perguntei. Voltei para casa chorando. Nunca
vi Polar, não o conhecia e nunca apertei sua mão. Nem sei como era, mas eu o
tenho no coração. Ali ele vai viver para sempre como se fosse meu guia, meu
Chefe, e meu irmão!
Nota - A vida é luta
renhida, que aos fracos abate, e aos fortes, só faz exaltar. “(Gonçalves Dias)”. – Ele era apenas
um Velho Escoteiro. Nada mais que isto. Queria rever seus velhos amigos de
patrulha. Tinha este direito? – Apenas uma história. Uma história que pode ser
real.
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