Conversa ao Pé do fogo.
As aparições do Chefe Trovão - Um
admirável curso da Insígnia da Madeira
Prólogo
- Solicitaram a segunda história do Chefe Trovão. Porque
não?
Nossa existência faz parte do nosso
crescimento interior, e a cada dia vamos aprendendo cada vez mais a viver a
enfrentar a realidade, a reconhecer o certo e o errado e ver mesmo com
dificuldade o melhor caminho a seguir tendo nosso livre arbítrio para decidir
ou interpor. Nunca desisti dos meus sonhos, do que acredito ser o meu caminho.
Acho que encontrei a porta da felicidade e nela me adentro com orgulho em saber
que ajudei a melhorar um pouquinho o nosso mundo. Tenho 32 anos. Casado, um
filho. Sou um Chefe Escoteiro. Acredito no Movimento Escoteiro. Ele já faz
parte de mim. Faz oitos anos. Um bom
tempo. Neste período aprendi muito. Principalmente com um chefe que me convidou
e me incentivou e sem sombra de duvidas, extraordinariamente me assustou. A
figura do chefe Trovão era surpreendente. Possuía um conhecimento profundo do
Movimento Escoteiro. Sabia como ninguém arregimentar adultos e mantê-los na
ativa por muitos e muitos anos. Sem arrogância e vaidade deu a todos nós que
começamos com ele, o caminho, a certeza aonde ir, sem erro, sem deslize no caminho
certo do sucesso como diz nosso fundador.
O
chefe Trovão era uma figura imponente. Não tão alto, mas sua silueta era
soberba. Cabelos brancos, meios crespos, um bigode cheio, rosto redondo, olhos profundos,
como a querer entrar no nosso pensamento. Palavras suaves, firmes, não
titubeavam quando dizia alguma coisa. Seus olhos pareciam captar cada movimento
que fazíamos quando estávamos a conversar. Quando me convenceu a participar,
não fez um pedido. Seu argumento era simples e direto. Quando me dei conta, lá
estava eu, de calças curtas, junto ao cerimonial de bandeira, a dizer a
promessa e receber meu distintivo e o lenço do grupo. Naquele acampamento onde
nem sei se foi marcante, ou se foi um épico ou mesmo uma lembrança extraordinária,
agora sei que tudo ficou para trás. Naquela madrugada fria, quando vimos o
chefe Trovão, no seu banho das três e meia da manhã, com o seu sabonete mágico
como ele dizia, com as mãos levantadas debaixo da cachoeira, a pairar no ar,
com fagulhas vermelhas e brilhantes, e sombras fantasmagóricas em sua volta! Bem, é melhor esquecer. Assim como eu todos
que viram o ocorrido, preferiram silenciar. Como apareceu no Grupo Escoteiro,
ele se foi. Não ouvimos falar mais dele por um bom tempo.
Sempre
fui metódico e organizado. Fiz meu programa de adestramento escoteiro, e sabia
sem sombra de duvida iria alcançar minha Insígnia da Madeira. O próprio Chefe
Trovão dizia que se nós quiséssemos ser bons escotistas, além dos cursos,
teríamos que ter uma boa biblioteca escoteira em casa. Quem assim o faz é digno
de ser chamado chefe. Não basta vestir um uniforme, fazer a promessa e saber
com maestria sinais para formaturas dos jovens. No meu cronograma, estava
marcado conforme o programa regional meu curso da Insígnia da Madeira parte II.
Penúltima etapa para atingir meu objetivo. Eram oito dias acampados, sem
intervalos no campo escola da região. Sabia que teríamos um frio glacial na
época. Julho sempre foi assim. Ao fazer a inscrição já sabia que seria o Chefe
Trovão o Diretor. O curso teve seu inicio como todos. No salão do campo escola,
conversando, cantando, lembrando-se de outros cursos, pois muito de nós éramos
velhos amigos de cursos passados. Ouvimos uma “trombeta” com o toque de reunir,
e saímos prontamente para a arena da bandeira. Um assistente de curso já
conhecido formou a tropa. Éramos 34, dois a mais que o permitido. Soube depois
que havia 85 interessados. A ordem de inscrição prevaleceu. O motivo de tantos?
O diretor do Curso, nada mais nada menos que o meu amigo e “tinhoso” Chefe
Trovão!
Queria
conhecê-lo melhor e sabia que daria tudo de mim. O que vi antes no acampamento
da tropa permanecia em minha memória. Sabia de sua capacidade, seu autodomínio
e sua grande competência em temas escoteiros. A fama do Chefe Trovão era
reconhecida em quase todos os estados brasileiros. Fomos formados em quatro
patrulhas duas com nove adultos. Cada uma recebeu seu material de campo,
composto de duas barracas de duas lonas, uma intendência onde se via o material
de sapa, vasilhames e alguns apetrechos para limpeza que poderíamos usar logo
na montagem do campo. Uma pequena bandeirola onde deveríamos desenhar o totem,
com o animal já designado. Eu estava na Lobo. Todos portavam bastão escoteiros.
Tivemos duas horas para montar as barracas (quatro escotistas em cada uma), a
cozinha, á área de refeições e reuniões de patrulha, alem das necessidades
básicas do campo tais como, fogão suspenso, fossas de líquido e detritos entre
outros. Separamos-nos em dupla e em pouco tempo montamos o necessário. Os
banheiros e latrinas já estavam prontos, num ponto extremo onde estávamos. Nada
melhor do que vivenciar o Sistema de Patrulhas, agindo na prática e não na
teoria.
Era uma
técnica que deduzi ser excelente para desenvolver o sistema de patrulhas. Ninguém
se conhecia e no inicio mantínhamos aquela aceitação escoteira, cada um
querendo ajudar o outro, todos demonstrando que o quarto artigo ali tinha seu
lugar especial. No entanto, com o passar dos dias, as mudanças, os estilos, a
aceitação de liderança vieram à tona. Como era a verdadeira faceta de cada um.
Isto foi bom. Tivemos desavenças, desacordos, algumas cizânias que pareciam
insolúveis. Isto ate o quarto dia, a partir do sexto dia, quando todos já se
conheciam, houve uma grande mudança de rumo. Agora éramos mais unidos, mais
irmãos e então chegamos à conclusão que assim deve ser dado a oportunidade aos
jovens de se conhecerem. Foi um curso cansativo, extenuante, mas extremamente
proveitoso. Levantávamos sempre às 06 da manhã, quinze minutos de educação
física feita pelo Monitor, limpeza do campo para inspeção, café, e as oito e
trinta, a patrulha estava formada para receber a chefia. As nove, cerimonial de
bandeira, avisos, um jogo quebra gelo e sessões intermináveis de técnicas
escoteiras, explanações teóricas de sistemas aplicados na Tropa Escoteira,
entremeadas aqui e ali por um jogo ou outro passatempo. As doze e trinta, mais
duas horas para fazermos o almoço, limpeza, arrumação, inspeção e as catorze e
trinta já estávamos de “volta às aulas”. O jantar, preparados por nós era de
duas horas a partir das dezoito e trinta. Depois, novas sessões de adestramento
técnico e teórico até as vinte e três horas. Só neste horário, tínhamos um
pequeno café com alguns biscoitos ou Pães feito pela Patrulha de Serviço.
Jovens convidados a colaborar no curso.
As sessões
do Chefe Trovão eram admiráveis. Ele sempre tinha algum escondido na manga. Uma
delas, sobre Projetos de Pioneiras foi marcante. Tocou a sua trombeta e lá
fomos nós correndo em busca do ponto de reunião. Perdemos mais de cinco minutos
para encontrá-lo. Estava em cima de uma árvore, a mais de 10 metros de altura.
Mandou que nos reuníssemos a ele e não poderíamos usar a árvore em que estava e
sim uma próxima distante a aproximadamente 12 metros. Ora, éramos trinta e dois
adultos. Impossível, se conseguíssemos alçar uns quatro seria o muito. Deu-nos três
horas e meia para resolver o problema. Neste ínterim um assistente nos deu
alguns esboços, não tão bem feitos e nos mostrou uma pilha de material próximo
aos chuveiros. Ele impassível, lá ficou a fumar seu intragável cachimbo. Cada
patrulha ficou encarregada de uma tarefa. A nossa seria um elevador, outra
faria o ninho de águia, outra a ponte de interseção ou ponte pênsil e a última
um estrado para 30 pessoas. Três horas e meia não deu. Ele impassível nos deu
mais meia hora. Fizemos o possível e aos trancos e barrancos, conseguimos
colocar 25 de nós lá, o restante ficou abaixo do ponto de reunião naquela
árvore.
Foi um
adestramento e tanto. Divertido, nos tirou da sala, do cochilo, pois alguns
membros da equipe nos fazia dormir. A noite outra chamada dele, na pequena mata
em volta do Campo Escola. Quando tentávamos nos aproximar, ele desaparecia.
Ficamos assim aturdidos, sem saber onde ele estava e logo seu berrante nos
chamava novamente. Meia hora depois o encontramos, sentado em uma pequena tora
de madeira, a tomar um café quente e fumegante. (onde tinha feito não sei). Convidou-nos
para ascender um fogo, que logo crepitou iluminando a área. Estávamos dentro da
floresta. O amarelo da chamas dava um aspecto magnífico à pequena clareira. Cantou
conosco lindas canções, improvisou danças escocesas (difíceis) canadenses, nos
mostrou como os Índios Guaranis dançavam quando do descobrimento do Brasil, e
mostrou como era fácil, pular a fogueira de olhos vendados por três vezes, e
receber um nome de guerra indígena, escolhido individualmente por cada um. Uma
tradição que deve existir em todas as tropas. Todos foram batizados. Eu recebi
o nome de Araquém: que em tupi significa o Pássaro
que dorme. Ele não disse, mas
achamos que no seu batismo foi chamado de Tupã, o trovão da chuva. Porque não
sei. Explicou-nos que o jovem ao receber um cordão ou um distinto maior ali era
o local certo para receber. Ele tinha de acender sua fogueira somente com um
palito, e depois seu nome de guerra acompanhado do seu padrinho, escolhido na
patrulha, após saltar por três vezes a fogueira de olhos vendados.
O curso
foi se desenvolvendo de maneira extraordinária. Olhe meus amigos, tinha feito
muitos outros cursos, mas aquele estava me surpreendendo. Uma noite, às três da
manhã, o berrante do chefe Trovão se fez ouvir novamente. O ponto de reunião era
próximo da lagoa. Ali refletido nas águas calmas vimos um grande e belo
espetáculo. Como se fosse um espelho, as estrelas davam um belo visual se
refletindo no lago. Inimaginável! Foi a primeira vez que vi aquilo. Foi fácil
identificar as Três Marias, o Escorpião, o Cruzeiro do Sul e tantas
constelações que nos dão a posição exata onde estamos e onde podemos ir. Foi um
verdadeiro adestramento técnico de orientação noturna. No sexto dia, estávamos
esgotados. As patrulhas tentavam acompanhar, mas as pernas não ajudavam.
Ouvimos de novo a trombeta do Chefe Trovão. Eram duas e meia da tarde. Com
dificuldade conseguimos chegar até ele, na encosta do sopé da montanha, a
trezentos metros do acampamento. Lá estava ele, deitado em uma esplêndida grama
verdinha, e nos convidou para uma soneca. Incrível! Sem pestanejar ali deitamos
e dormimos. Sonhamos sonhos lindos, pois soube que não houvera roncos e nem
reclamações. Acordamos lá pelas tantas da noite. E o Chefe Trovão? Sumiu. Vimos
que era mais de duas da manhã. Estávamos sem café e sem jantar.
De novo o
berrante do Chefe Trovão. Agora mais revigorados corremos e chegamos onde
estava. No salão do Campo Escola, onde na mesa uma suculenta sopa de macarrão, com
batatas, ovos, lingüiças, e pães fresquinhos nos esperavam. Um jantar fraternal
às duas da manhã, 32 adultos, de calças curtas e chapelão de três bicos, a
cantar, sorrir como meninos traquinas. Quem por ali passasse acharíamos que
éramos um bando de malucos, excêntricos ou lunáticos. Quem sabe éramos mesmos?
Tinha esquecido completamente da parte do “coisa-ruim” do o Chefe Trovão. Agora
era um novo escotista. Um novo chefe. Diferente daquele que conheci no passado.
Seus conhecimentos nos atingia dentro na nossa mente, seus ensinamentos eram
impecáveis e sua maneira de mostrar como o escotismo deve ser era soberba. Segunda,
sete dias depois, penúltimo dia. À tarde o jantar de confraternização. Cada
patrulha escolheu seu cardápio e convidou dois de outras patrulhas. À noite o
Fogo de Conselho. O Chefe Trovão orientou os Touros (ele dizia que o chefe
nunca faz, só orienta) montaram um fogo diferente. Fez um estrado de um metro
de altura, em cima montou um fogo Estrela e embaixo do estrado um fogo
acolhedor (tipo quadrilha). Disse que assim não precisaríamos alimentá-lo
durante o tempo que ali ficaríamos, ou seja, uma hora e meia. Foi lindo.
Queimando suavemente em cima, e após algum tempo, o estrado deixava cair brasas
e o fogo acolhedor acendeu com suntuosidade.
O clarão
amarelo do fogo na mata, as fagulhas, nos mostrava que não havia perigo de
incêndio na floresta. O final foi uma apoteose. Quando cantávamos a Canção da
Despedida, no meio da cadeia da fraternidade, desceram milhares de pequenas
estrelas brilhantes, faiscantes, iluminando toda a clareira e quando terminou a
canção. Com lagrimas descendo em todos os rostos ali presentes, uma coruja
enorme, pousou no ombro do Chefe Trovão e piou seu uivo já conhecido, de uma
maneira harmoniosa. Em seguida levantou vôo e foi pairar sobre as cabeças de
todos os cursantes. Incrível! Era um espetáculo. Impossível não se comover.
Impossível pensar algum ou mesmo como o Chefe Trovão estava fazendo tudo
aquilo. Acho que só eu sabia e só eu o via agora, no meio do circulo dos
chefes, a levitar acima do chão, com seus cabelos brancos soltos ao vento, braços
estendidos, sorrindo, em sua volta aparições sem rosto, vestidos de branco e
azul. Ficaram em volta de todos nós, jogando pétalas de rosas brancas como se
fossem chuviscos ao amanhecer, cujo perfume era inigualável. Junto ao orvalho
que começa a cair naquela clareira linda, todos, sem exceção estavam
maravilhados, pois jamais tinham visto nada igual. Era Impossível descrever a
beleza, a poesia do momento. Foi um fato que marcou em mim e creio em todos. Uma
recordação tão fecunda que ficou gravado para sempre em minha memória.
Na terça,
pela manhã, final de curso, despedidas, abraços, lagrimas aqui e ali, alegria e
a certeza de que foi um belo curso da Insígnia da Madeira. Histórico, sem precedentes
e acredito que nunca mais haverá outro igual. Após a cerimônia de encerramento
o Chefe Trovão desapareceu. Por muitos anos nunca mais ouvi falar nele. Até
hoje tenho saudades de sua trombeta de suas aparições, de seus ideais, de seu
conhecimento e de sua maneira grandiosa de dar a todos o conhecimento escoteiro
que precisavam na labuta do seu dia a dia com a tropa. Cinco meses depois,
absorto em uma reunião de tropa, eis que apareceu o Comissário Regional,
pedindo se possível uma formatura de todos, pois ele tinha algum a comunicar.
Ali, em ferradura ele me chamou e orgulhosamente me entregou o certificado da
Insígnia da Madeira e pediu ao Chefe do Grupo que me colocasse o lenço e o
colar. Não sabia o que pensar. Estava esperando pelo meu observador da parte
III e soube então que o Chefe Trovão tinha avalizado esta parte e me mandou um
pequeno bilhete, que dizia: – A um Chefe Escoteiro que por tudo que fez e faz,
merece ser um membro da Equipe de Giwell. Volta a Giwell, terra boa, dizia. Um
curso assim que eu possa vou tomar com você!
Dez anos
depois, muito tempo passado, estava eu absorto em um Acampamento Internacional
de Patrulhas no Peru, conversando com alguns escoteiros da tropa, ouvi uma
trombeta soando e aquele som não me era desconhecido. Tinha quer ser ele. Corri
até lá e vi... Fica para uma próxima. Ninguém esquece assim o Chefe Trovão. Ele
é imprevisível. Que saudades do banho das três e meia da manhã, do sabonete
mágico, do curso da Insígnia da Madeira. Que saudades, tempos que já se foram e
não voltam mais. Esteja você meu amigo Chefe Trovão onde estiver, lembre-se,
sou e serei sempre seu admirador. Nunca vou esquecê-lo. Você entrou no meu
coração e lá ficará para sempre.