Lendas Escoteiras.
Como era verde o meu vale!
Nunca conheci meu vale, Nos meus
sonhos era verde na primavera lilás no inverno e dourado no outono, mas era meu
vale, lindo, e ali podia viver meus sonhos. Que nunca mais esqueci!
Ninguém acreditou quando viu.
Nem eu mesmo. Inacreditável! Impossível! Médicos, psicólogos todos aqueles que
deram sua contribuição para a recuperação de Aninha se estivessem alí, estariam
tão perplexos como eu. Tudo fora tentando no passado. Longas viagens, passeios,
terapia, enfim, seria por assim dizer uma interminável lista, com todos os
tipos de tratamento e sujestões. Eu desconhecia esse fato. Nem mesmo me dei por
achado quando me falaram de Aninha. Aninha! Olhos negros, pequenos, nariz
afilado, cabelos encaracolados negros e cortados curtos. Nos seus sete anos não
chamava atenção, quieta no seu canto, sem sorrir, sem olhar para ninguem.
Sempre voltada para o nada, como se estivesse em outro mundo, em outra
dimensão.
Só fui conhecer a historia
de Aninha, muitos anos depois quando tentaram enturmá-la em uma matilha na
alcateia do grupo que participava. O que me disseram foi uma historia
fragmentada, onde nada se ligava, a não ser sua profunda tristeza, fechada em
sí propria. Quando nasceu seus pais não observavam nada de anormal em Aninha.
Claro, quase nunca chorava. Rir? Nunca viram. Aos dois anos desconfiaram que
ela tivesse algum problema. Não sabiam o que era. Não tinham a menor idéia.
Entretanto, verificaram que ela tinha toda caracteristica de uma criança
autista. Afastava-se do mundo, das meninas de sua idade. Inclusive dos seus
próprios pais.
Ela vivia sozinha. Fechada em
seu mundo. Não fazia amigos. Quando chamada muitas vezes nem respondia. Seus
olhos não tinham uma direção fixa. Aqui e ali e nunca olhava ninguem
diretamente. Parecia procurar algum no infinito. Brincadeiras com outras
crianças? Nunca. Bem Aninha falava corretamente. Pelo menos a fala era
perfeita. Mas o que mais entristecia aos seus pais, era o sorriso. Nunca viram Aninha
sorrir. Nem chorar. Na escola seus professores sentiam enorme dificuldade em
acompanhá-la. Aconselharam aos seus pais que procurassem ajuda especializada.
Alí na companhia daquelas crianças ela não se enturmava, não se desenvolvia e
tudo que eles fizessem não era do seu agrado.
Seus pais levaram Aninha a
diversos medicos, terapeutas, psicólogos e nenhum deles foram capazes de
diagnosticar o que se passava com Aninha. Descartaram a possibilidade de ser
ela autista. Todos os testes indicavam o contrário. Os pais de Aninha faziam de
tudo. Nos fins de semana a levavam em cinemas, shopings, parques, tudo onde
diziam que as crianças sorriam e brincavam. Aninha não. Levavam uma vida
modesta. Seu pai trabalhava em um Banco na cidade, e seu salário era acanhado.
Mas o suficiente para que desse todo conforto a sua familia e principalmente a
Aninha.
Um dia, eu estava em casa,
revendo um filme e que tinha visto diversas vezes. Um dos meus preferidos.
“Como Era Verde o Meu Vale". É um daqueles filmes que ficam na lembrança
para sempre. Acho que, mesmo para quem já o assistiu revê-lo é reviver as
mesmas emoções movidas pela história do jovem Huw e de sua família. Há
quem diga que ele era o preferido do diretor John Ford. Talvez uma das grandes causas do sucesso
desse filme seja o fato dele criar, de alguma forma, um forte sentimento de
família que persiste mesmo enfrentando a obrobpobreza, greves, acidentes etc.
Deu-me um estalo! Eureka! Quem sabe o escotismo pode ajudar?
Liguei para a Akelá Silvia na mesma
hora, passava da meia noite, e falei sobre Aninha. Ela já conhecia a historia.
Perguntei se tentaram convidá-la a ingressar na alcatéia. Ela me disse que a
familia esteve lá em duas reuniões. Entretanto Aninha não mostrou nenhum
entusiasmo. Nem mesmo ficou prestando atenção a movimentação das lobinhas. Não
me dei por vencido. Eu acreditava que devia existir uma maneira de Aninha se
interessar por alguma coisa que poderia ser a solução para ela. O escotismo poderia
ser a fórmula para a felicidade de Aninha. Felicidade = P + (5xE) + (3xA). Não
conhecem? Nem eu. Inventei agora. E isso me fez acreditar mais e mais no que
pretendia fazer. Eu sabia que esta fórmula é a chave mestra da força do
movimento escoteiro.
Estudei meu plano nos
minimos detalhes. Falei com os pais de Aninha, com a Akela, com o Diretor
Técnico sobre o plano. Riram de mim. Com que base diz isso? Se tantos
especialistas tentaram e não conseguiram, voce agora achou a fórmula certa? Falavam.
Mas eu acreditava. Queria o aval de todos. Os pais de Aninha não se animaram,
mas tampouco foram contra. Tinham tentado tudo e sempre nutriam a esperança de
ver Aninha sorrir. Só uma vez bastaria diziam. Não sabiam como era seu sorriso.
Ela nunca sorriu. O dia chegou. Eu não tinha medo ou receio. Se desse certo,
teria feito meu papel escoteiro da boa ação. Se desse errado, paciencia. Sempre
devemos tentar. Se um dia formos nos criticar, que seja por ter feito e não por
ter deixado de fazer. O dia foi de sol, a tarde uma linda tarde prenunciava o
sucesso no meu empreendimento. Eu acreditava piamente que daria certo. Fui à
casa de Aninha. Tudo estava preparado. Esperamos dar umas oito horas da noite.
Ela dormia profundamente. Sua mãe a carregou até o carro.
A viagem foi curta. Chegamos
logo ao sitio onde a Alcateia Waingunga acantonava. Eu sabia que o Fogo de
Conselho seria por volta das nove da noite. Teriamos que transportar Aninha sem
ela acordar, até o local, e ali sentada em uma cadeira de praia e no escuro,
Aninha seria acordada com a chegada das lobinhas, que caladas iriam ficar em
volta da fogueira e dando as mãos cantariam bem alto a Canção do Fogo do
Conselho. Aninha acordaria e vendo as chamas altas e tantas meninas alegres e
cantando poderia levar um choque de felicidade. Seria possivel? Quando contei para os coadjuvantes todo o
plano eles riram a valer. Incrédulos! Em acreditava que ia dar certo. Todos os
chefes presentes e os pais olhavam para Aninha. A espera fora infindável. A
canção terminou, o fogo crepitou as chamas subiram ao alto, os passaros
norturnos piavam, até uma coruja voou de seu ninho em busca de sossego. Aninha
acordou espantada, surpresa e assustada. Ficou em pé, e vendo tantas lobinhas
dançando em volta do fogo, eis que o inusitado aconteceu. Aninha passou a
seguir os passos das outras. Cantava baixinho: ¶ Na Roca do Conselho, o uivo do
Aquelá. E na Jângal distante, respondem os Lobinhos - Au au u u. Au Au u u. ¶¶.
Aninha agora sorria, brincava e
cantava com as outras meninas. Seus pais pularam de contentes, o sorriso deles
era contagiante. Os incrédulos de olhos arregalados, não acreditavam no que
viam. Durante todo o Fogo de Conselho Aninha participou ativamente. Esqueceu os
seus pais. Suas amigas agora eram as meninas da matilha Marron. Fora adotada e
muito bem recebida por elas. Em pouco tempo ela conhecia tudo da Jangal. No
monte Seone, onde habitava a alcatéia sua mente vivia agora. Conhecia o Rio Waigunga,
que corre dos montes Seone e forma os pântanos nas baixadas, não esquecia
nenhuma parte quando contava a historia de Oodeypore, a cidade onde nasceu
Mowgly e onde Bagheera a pantera negra esteve presa.
Aninha
mudou. Muito mesmo. Ninguem explicava como podia ter acontecido assim. Seus
pais comentavam com amigos que o escotismo é a formula do sucesso para os
jovens. Todos os sábios doutores tentaram e nada conseguiram. Agora em um
simples Fogo de Conselho aconteceu à cura de sua filha. Eles se transformaram.
Suas tristezas acabaram. Encontraram a fórmula da felicidade junto com ela.
Aninha fez a promessa, um dia sem sol, mas parecia que o vento sul trazia toda
a força dos Campos de Bhurtpore. Foi um dia que marcou muito. Eu estava lá. Não
podia perder. Era como se Hathi e seus filhos também estivessem presentes.
Aninhados em um degrau da escada Baghera e Baloo se deliciavam com a promessa
de Aninha. Enroscada no mastro da bandeira, Kaa ria e dizia, “Somos do mesmo
sangue, tu e eu!” O lobo Gris e seus irmãos davam um grande uivo de felicidade.
Até mesmo os Bandar-log, o povo macaco, agora tambem estava feliz ali, vendo
Aninha dizendo com todo amor: “Prometo, fazer o melhor possivel para...”
Muito
tempo depois, fiquei sabendo que Aninha em sua casa chamava seus pais, e alí
com o fogo da lareira acesa, contava historias da Jangal e soube tambem que
alguns parentes, vizinhos e amigos se reunião para sentir a força da felicidade
de Aninha, quando ela contava ou narrava com sua voz linda, em pé, olhando nos
olhos de todos em sua volta e apontando um por um dizia, - Voces precisam
conhecer a Lei da Jangal, Baloo, o urso pardo sempre dizia que essa lei vigora
na selva e é antiga como o céu. Dizia ainda que assim como o cipo que envolve a
árvore, a Lei do Lobinho envolve todos nós.
Aninha
ficava horas narrando. Ninguem arredava o pé. Pareciam encantados como se Kaa a
serpente ali tivesse passado. Conheceram todas as personagens, e até tinham
medo de Shere Khan. – Porque voce matou?
Perguntou Hathi, pelo prazer de matar? Shere Khan respondeu isso mesmo. Era meu
direito. A noite é minha voce sabe. Que direito é esse de que fala Shere Khan?
Perguntou Mowgly. É uma historia antiga, tão velha quanto à propria selva.
Então Hathi narrou cabisbaixo, descrevendo como o medo se apoderou dos
habitantes do outro lado do rio. Mas essa é uma outra história...
Foi
maravilhosa a recuperação de Aninha. A Alcateia
Waingunga passou a ser outra. Agora Aninha dava o toque da alegria e da
felicidade. Ninguem ria mais que ela, quando brincava ou jogava era como se
fosse à primeira vez. Entregava-se de corpo e alma. A matilha marron nunca mais
foi à mesma. Corria, saltitava, gritavam e Aninha mostrava a todos sua mais
suprema alegria e felicidade do mundo. É como Aninha mudou. Como o escotismo
faz milagres. Lembro-me que um dia lí, não me lembro onde, que cada
pessoa que passa na nossa vida, passa sozinha, porque cada pessoa é única e
nenhuma substitui a outra. Ela não nos deixa só, porque deixa um pouco de sí e
leva um pouquinho de nós. Essa é a mais bela responsabilidade da vida e a prova
de que as pessoas não se encontram por acaso.
Não sei
por que, me lembrei de outro filme, famoso, uma ficção cientifica cujo título
era Blade Runner. Em um momento triunfal, onde a justiça e a coragem se fazem
presentes, o androide antes de morrer disse – “Eu vi coisas que voces nunca
acreditariam. Naves de ataque em chamas perto da Borda de Orion. Vi uma luz do
farol cintiliar no escuro, na Comporta Tannhauser. Esses momentos todos se
perderam no tempo, como lágrimas na chuva. Hora de morrer”. Nada há ver. Não
irei morrer. Mas ví muito mais. Ví Aninha sorrir. Valeu uma vida e esses
momentos nunca se perderão no tempo, como lágrimas na chuva. Para mim, o sol
brilha de uma maneira firme. Quem viu Aninha sorrir pela primeira vez, nunca
mais vai esquecer.
O tempo
passou. Mudei de cidade, nunca mais ouvi falar na Aninha. Agora deve estar uma
moça feita com seus 18 anos. Tenho certeza que ainda está sorrindo. Sua vida
agora é outra. Todo o passado se foi e ela aprendeu a sorrir, descobriu a
felicidade. O porquê de antes e o porquê de agora, não sei explicar. Não sou
psicólogo. Nem um doutor entendido no assunto. Mas sou um escoteiro, e sei por
natureza que o escoteiro vive sorrindo, a vida para ele é bela e é formada de
doces e grandes momentos de alegria e felicidade.
Sei
também que as dificuldades ele o escoteiro deixa em um canto do armário, um dia
vai lá e dá um jeito nela. Ajudando o próximo, amando seus irmãos e sendo
amigos de todos, não importa quem. Ele, o escoteiro faz a sua felicidade. Eu
acho que sou feliz, muito. Contribui para que Aninha descobrisse a fórmula.
Qual? Felicidade = P + (5xE) + (3xA)
resultado- ESCOTISMO! Uma linda maneira de viver e ser feliz! Amo e adoro ser
escoteiro!
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