A marca da Pantera
A história de um bastão escoteiro
Trinta e
cinco anos se passaram. Para mim uma vida. Ainda me lembro de quando fui feito.
Um monitor novo, uma patrulha nova, todos iniciando na tropa recém-formada.
Para dizer a verdade, tenho orgulho de todos eles. Foram muitos que passaram
pela patrulha Pantera durante este tempo. Guardo o nome de cada um no fundo do
meu coração. Desculpe, sou de madeira, dizem que não tenho coração. Mas eu
tenho. Podem me conhecer melhor no livro de memórias da patrulha que o escriba
guarda com muito carinho. La tem o nome de todos que passaram por esta
patrulha. Houve épocas ruins e
boas. Monitores desleixados, que não ligavam para mim, me deixavam em qualquer
lugar. Já passei por grandes tempestades, caí em gargantas profundas,
despenhadeiros, fiquei a deriva em um vagão de um trem de ferro. Incrível!
Safava-me com galhardia. Claro tinha sempre um escoteiro bondoso da patrulha
que não me deixava desaparecer. Mas acreditem, sempre fui amado pelos grandes
patrulheiros da Pantera em todos os tempos.
Nasci há
muito tempo. Eu era um frágil galho de uma goiabeira, mas me orgulhava de minha
raça araçá-guaçu. Mesmo sabendo que pertencia a uma família com tronco
tortuoso, de casca lisa e descamante. Considerava-me um galho pubescentes e por
várias vezes vi as flores que vicejavam brancas, solitárias principalmente na
primavera. Nunca consegui dar frutos, não sei por que. Comentavam a
“boca-pequena” que nós goiabeiros somos os mais fortes, os que mais duram. Não
sei, talvez seja por isso que Romildo me escolheu. Lembro bem quando ele se
colocou debaixo da goiabeira e olhando para o céu analisou todos os galhos ali
existentes. Eu não sabia, mas ali começaria minha saga do mais antigo bastão
totem da Tropa Escoteira Titan (aquele que tem sensibilidade, simpatia,
cooperação, diplomacia e receptividade). Orgulho-me de ter começado logo após
sua primeira promessa. Não foi no mesmo dia. Romildo e mais cinco amigos
ficaram por três meses sendo adestrados como monitores e subs.
No primeiro
dia da formação das patrulhas eu fui apresentado aos demais. Passei por várias
etapas. Romildo me deixou secando dentro do quarto dele (dizia que o sol iria
me estragar) por uma semana. Depois gentilmente retirou minha casca sem usar
faca ou canivete. Passava todos os dias um pano embebido em óleo de linhaça, e
fiquei quinze dias ao pé de sua cama. Por último, passou de leve um verniz
incolor que produziu um brilho todo especial. Acho que foi amor à primeira vista
entre mim e ele. Romildo era um verdadeiro monitor. Fez questão de fazer uma
biqueira de aço, leve, que encaixou na minha ponta e em cima também uma pequena
tampa de aço com pequena alça onde prenderia a ponta do totem, ambas encaixadas
a fogo. “Todos os dias ele me olhava, sorria me colocava junto a ele, vestia o
uniforme e dizia Sempre Alerta” me segurando com a mão direita e a esquerda com
o sinal escoteiro levava até a altura do coração.
Comprou de um
sapateiro diversos cadarços de couro grosso, tipo Camurção, beneficiado com as
fibras do lado do carnal (parte interna da pele). Comprou também outros
cadarços feitos de pelica, um couro de cabra, leve de toque macio, alto brilho.
Depois me disse o porquê. Não se assustem, eu e Romildo éramos bons amigos e
nós conversamos muito. Sua mãe fez um lindo Totem. Eu não sabia, mas tinham
escolhido na patrulha que o nome seria Pantera Negra. Romildo era um estudioso.
Seu chefe dizia que ele era um monitor de que se orgulhava. Tinha de saber
todas as respostas para os escoteiros de sua patrulha. Aprendeu que a Pantera
negra (Panhhera pardus melas) vive nas selvas quentes da Malásia, Sumatra e Asia.
Também na Etiópia. Seu pelo era inteiramente preto. Na floresta não era
amigável. Vivia mais só. Aprendeu que a Pantera sabe mergulhar, nadar, salta
sobre pedras soltas e cai a metros de distancia. Ataca mamíferos. Prefere áreas
cobertas de arbustos.
Romildo foi à
biblioteca da sua cidade e lá ficou por vários dias até que achou uma foto
linda de uma pantera. (ainda não havia internet) Desenhou o que sabia, pois não
era bom desenhista e sua mãe pontilhou em um feltro amarelo, a “Marca da
Pantera”. Nunca mais foi mudado. Claro, o totem sempre me reclamava por ficar
deitado, torto e poucos notavam o desenho tão bonito da pantera negra. Demorou
algum tempo, até que o sexto monitor da patrulha fez uma capa de plástico que
só usava em acampamentos (para proteger das intempéries) e um arco em forma do
totem para mantê-lo sempre reto. No primeiro dia que fomos apresentados a
patrulha, ela deu um lindo grito. Ficamos eu e o totem emocionados. Eu ainda
não sabia o que eram os escoteiros, mas aos poucos foi me tornando um deles.
Decidiram que a cada etapa mais alta alcançada por um dos seus patrulheiros,
seria trançado em mim um cordão fino de pelica. Vermelho para quem conquistasse
os cordões de eficiência e azul para os possuidores do Liz de Ouro. Para dizer
a verdade, não tivemos muitos. Cordões foram vinte e Liz de Ouro só quinze. Mas
quem chegava sabia que ali tinham passados grandes escoteiros.
Nem tudo foi
alegria nestes meus trinta e cinco anos de vida. O oitavo monitor da patrulha
não era muito condescendente comigo. Deixava-me de qualquer jeito, e olhe em um
acampamento fiquei debaixo de chuva por três noites. O Totem chorou varias
vezes. Estava sem a proteção. Ele o Monitor me usava como defesa de lutas com
outros jovens. Não fui feito para isto. Mas o pior aconteceu em uma manhã de
inverno. Ele cansado da subida na montanha, vendo que ninguém olhava me jogou
despenhadeiro abaixo. Ao chegar ao destino, o chefe deu falta de mim e do
totem. Ele mostrou onde tinha jogado. Procuraram-me e acharam. Ele perdeu o
cargo de monitor. Seu substituto leu todo meu histórico no livro da patrulha.
Lá Romildo deixou escrito como devia ser tratado. Limpeza a cada cinco meses e
lustrar com um pano embebido em verniz incolor. Olhar todo o bastão para ver se
não estava com machas que poderiam ser cupim. Senti-me outro. Gostei do novo
Monitor.
Já com vinte
anos de vida, a tropa Titan foi acampar em uma cidade distante e o chefe
conseguiu passagens gratuitas para todos. Fomos de trem. Divertíamos muito.
Chegamos, eles desceram e me esqueceram! O trem partiu e eu fui com ele. Fiquei
arrasado. O Totem como sempre chorava. Ele era muito sensível. Disse a ele para
não se preocupar. Eu sabia que iriam atrás de nós. Um homem sentado numa
poltrona ao lado me viu. Ao descer me pegou e levou com ele. Achei que nunca
mais seriamos encontrados. Mas o homem foi ao chefe da Estação e explicou que
os escoteiros desceram na estação anterior e me esqueceram. Passaram um
telegrama. Fui embarcado de volta. Na chegada lá estava toda a patrulha me
esperando. Um grito gostoso da patrulha foi dado. Estava em casa de novo.
Sempre sentia tristeza quando algum escoteiro passava para sênior ou saia do
escotismo. Afeiçoava-me há todos eles facilmente.
Um dia
notaram durante um Conselho de Patrulha que o Totem estava se desbotando muito.
Pudera, ele já existia a vinte e oito anos. Teve que ser substituído. Fizeram
uma linda cerimônia de despedida. Vieram todos os ex-panteras que ainda moravam
na cidade e passaram pela patrulha. Foi uma alegria para mim rever meus amigos
de outrora. Quando colocaram o novo, olhei para o antigo. Foi colocado em uma
proteção de plástico amarela, que lhe dava cor e colocado na parede principal
da sede escoteira. Até hoje ornamenta a sala da sede. Fiquei muito triste, pois
afinal éramos eu e ele os primeiros bastão totem a existir na tropa escoteira. Tivemos
lindas reuniões. Lindos acampamentos. Viajamos muito. Conheci lindos lugares,
os mais altos picos, as mais lindas planícies e os rios mais espetaculares que
poderia ter conhecido. Participei de centenas de atividades ao ar livre, de
competições, de encontros nacionais e regionais. Afinal sou um privilegiado.
Era apenas um galho de goiabeira e me transformei em um símbolo. O novo Totem
era lindo. Ele sabia disso. Mostrava-se grandioso, magnífico. Tornou-se depois
um grande e bom amigo. Ficamos irmãos em pouco tempo. Nosso maior orgulho foi
quando Os Panteras foram em um jamboree.
Uma
apoteose. Milhares de escoteiros. Centenas de patrulhas. Conheci bastão totem
de todos os tipos. Mas eu e o Totem sorriamos. Sabíamos que éramos da
Pantera. Tínhamos orgulho. O dia mais
triste em minha vida foi quando Romildo faleceu. Estava novo ainda. Trinta e
dois anos. Diziam que tinha câncer. Não sei o que é isso. A patrulha compareceu
em peso nas suas exéquias. Centenas de ex-escoteiros também estavam presentes.
Não choravam se sentiam orgulhosos de Romildo. O meu criador, meu pai, meu
grande amigo. Os anos passaram. A tropa firme. Houve épocas difíceis. Um chefe
que não tinha muita experiência. Os Panteras ficaram reduzidos a três. Mas eram
fortes ainda. Difícil competir com outras, pois era uma norma não escrita que
não se empresta escoteiro de uma patrulha para outra. Na falta os presentes tem
de se desdobrar. Em todos estes anos, não tenho certeza, acredito que mais de
cento e oitenta escoteiros passaram pela Pantera. Tivemos dias bons, dias
ruins, reuniões que marcaram época e reuniões que deixaram saudades.
Sempre aos
sábados recebíamos visitas de antigos patrulheiros da pantera. Eram sempre bem
recebidos. Sabíamos os nomes de todos. Suas idades, seus endereços. E a cada
aniversário da patrulha, pois sempre celebrávamos muitos deles compareciam a
sede. Era maravilhoso ver todos juntos tentando segurar em mim e dar o nosso
grito de patrulha. Seniores, pioneiros, escotistas e vários ex-escoteiros. Dois
deles que conosco começaram, agora com seus quarenta e oito anos e o melhor,
com seus filhos. Mas meu dia chegou. Estava envelhecendo. Estava na hora de
aposentar. Como dizem na gíria – hora de passar o bastão. Poderia ter continuado por mais alguns anos.
Mas não sei se ia dar conta nas duras lidas de um acampamento. Todos receavam
que pudesse quebrar rachar e ninguém queria me ver assim. Ravin o novo monitor
foi quem cuidou de tudo. Foi até uma goiabeira, olhou para o céu, e escolheu um
galho que se parecesse comigo. Estava escrito no livro da patrulha como fui
preparado. Romildo escreveu tudo que fez. Ravin sabia como fazer.
Retiraram o
totem e colocaram no bastão novo. O meu amigo do passado foi retirado da parede
e voltou novamente a ser meu companheiro. Mantiveram em mim as marcas de todos
que foram Liz de Ouro, e os que receberam os Cordões de Eficiências. No novo
mantiveram tudo que estava colocado em mim. Fizeram uma réplica. A cerimônia da
troca foi feita a noite. Estávamos fora da cidade. A tropa fez um circulo. Eu
participei pela primeira vez com todas as patrulhas da tropa. Recebiam-me em
saudação pelo monitor, davam o grito de origem e depois o da Pantera.
Colocaram-me em pé, e todos um a um passaram em minha frente e deram o Sempre
Alerta. Marcou-me meu amigo. Marcou-me. Se fosse gente teria chorado. Mas o
pior era que eu achava que era gente. Que era um escoteiro e uma pequena gota
d’água correu pelo meu corpo de madeira. Não sabia se era uma lágrima. Mas
nunca mais esqueci aquela cerimônia. Todos os monitores, exceto Romildo estavam
lá. Eles no final ficaram na minha frente e um por um dizia do seu tempo ao meu
lado e das aventuras que juntos passamos. Quanta emoção.
Hoje, estou
colocado na parede da sede. Vejo todos entrando e saindo. Ainda sou um bastão
escoteiro. Tenho orgulho de ter sido e sempre serei para a Patrulha Pantera o
seu símbolo. Os meus sentimentos nunca serão de altivez. Não. Eu sei que o passado e as lembranças irão
permanecer para sempre. Não ligarei para o silêncio nos dias sem reuniões, ou o
som do grito dos Panteras ao longe, pois eu vou lembrar-me de tudo. E se
possível vou transformar o meu passado em algo, que no futuro será sempre bom e
gostoso de lembrar. Principalmente nosso grito de patrulha. Feito pelos primeiros
panteras, a trinta e cinco anos atrás:
“Hei pantera! Sabemos do seu grito, do seu rugido, da sua
força. Sabemos que é capaz de manter a união, perseverança. Sabemos que você
sabe lutar, vencer, viver, e sua fé une aqueles em sua volta. Pantera Negra patrulha
do meu coração!”
Lema da Patrulha Pantera
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