Lendas escoteiras.
O Mistério do Corvo da pena
dourada.
O fogo estava alto, as chamas invadiam entre as árvores da floresta além
da clareira que estávamos acampados. Dava para ouvir o trinado intermitente das
corredeiras do Rio do Sal que estava bem na curva da Trilha do Besouro; onde
pela manhã pegamos belos lambaris que refastelou boa parte da Patrulha do
Corvo. O Chefe Lontra sorria junto a todos na patrulha e parecendo tirar suas
palavras dentro do seu chapéu de três bicos nos fazia viver suas histórias que
tão bem contava. Um Velho Escoteiro aventureiro. Este era o terceiro
acampamento de chefes que eu participava. Taxa pequena, local maravilhoso. Os
anteriores tiveram nomes e este foi batizado de Kalapalo. Todos nós admirávamos
o Chefe Lontra, um contador de histórias famoso. Diziam que era o Chefe que não
ri, discreto um olhar profundo e até às vezes achamos que ele estava em outro
mundo que não o nosso. Joguei minha manta na grama enxovalhada, olhei para o
céu estrelado e logo uma estrela cadente passou voando no céu. Fiz um pedido.
Só meu e ninguém nunca vai saber.
- Esta aconteceu quando eu morava em Monte Azul. – Ele começou. Uma
cidade pequena muito além das fronteiras do Mato Grosso com a Bolívia. Levava
uma vida simples e sorria com a meninada solta na rua soltando seus papagaios para
enfeitar o céu. Era ainda nos tempos da diligência onde os meninos falavam sim
senhor, abaixavam a cabeça para alguém mais Velho. Eu menino gostava de uma
bolinha de gude e tremia ao ver passar Dona Marly nossa professora do primário.
Lembro que a melhor roupa era para usar na missa do domingo. Uma bela surpresa
aconteceu. Um calafrio percorreu a meninada presente. – Senhores e senhoras
paroquianos, disse o Padre Toscano, vamos ter agora em nossa cidade um Grupo de
Escoteiros. Inscrições abertas no Clube Remanso. Acordei meu pai às três da
manhã. Papai, vamos! Onde disse ele – Fazer minha inscrição. Uma fila enorme.
Chefe Noel sorrindo cumprimentava a todos. Inscrição feita eu tinha de aguardar
chamada.
Não fui escolhido entre os oito meninos de ouro do Chefe Noel. Três
meses depois um Escoteiro uniformizado bateu em nossa porta: - Senhor
Waldívian, seu filho foi selecionado. Dei um pulo de alegria. No sábado perdi a
fome querendo chegar logo na sede. Lá fui eu às duas da tarde puxando meu pai
pela Rua Das Mercês. Meu primeiro dia patrulha Corvo. Que orgulho. Sete
patrulheiros. Leones o Monitor calmo e ponderado. Gostei demais. Primeiro
acampamento em Águas Cantantes. Todos sabiam de cor e salteado a vida de um
corvo. Eu não. – Na semana vá à biblioteca, aprenda e chegue aqui no sábado
para contar o que aprendeu disse o nosso monitor. Seis meses depois já me
considerava um veterano. Apesar de não ser a melhor o Corvo não devia nada a
ninguém. Bons acampadores, bons de atividade de campo e uma irmandade sem
igual. No acampamento no Morro do Cantagalo tinha uma linda cascata, era
maravilhoso tomar banho de manhã e a tarde. No segundo dia um campeonato de
pesca. Pesquei quase nada, mas me diverti muito.
No ultimo dia, fizemos uma excursão de seis quilômetros. Em busca da
Mina do Fantasma. Assustados partimos. As instruções eram claras. Eu tomava conta
de uma bússola e de uma carta prego. Abrir às nove e meia da manhã. Todos
confiavam em mim que não ia ler. Abrimos a carta. Seguir rumo NNE e depois de quinhentos
metros virar para WSE até encontrarmos uma seringueira que devia estar florida.
Sem erros. Nossa patrulha era boa nisto. Para chegar ao destino final havia uma
passagem em um barranco com um enorme despenhadeiro. Tentamos ficar longe dele.
Descansamos e lanchamos por uma hora. Agora seria um novo rumo. SSE. Pediram-me
a bussola. Procurei em meus bolsos, no bornal e na mochila nada. Deu vontade de
chorar. Todos calados me olhando. E agora? O Lavio Monitor me mandou pensar
onde poderia estar. Nada. Resolvemos voltar pela mesma trilha. Não sei como uma
parte do barranco que caminhávamos cedeu. Toda a patrulha foi arrastada para o
fundo do despenhadeiro.
No fundo da ravina caímos
em vários arbustos cheios de espinhos. Uma dor horrível. Eu gritava de dor e
meus companheiros também. Ficamos em pé. Difícil de mexer. Todos sentindo dores
enormes. Tínhamos de sair dos espinheiros. Para onde ir? Até o Leones Monitor
não sabia o que fazer. Ouvimos ao longe um grasnado de um Corvo. “Croc, Croc,
Croc.” O avistei a uns cem metros em uma árvore. Ele voou em cima de nossas
cabeças. Sempre indo a uma direção. Deu-me uma ideia de seguir o corvo. Falei
para o Leones. Ele riu, a patrulha riu. Com dificuldade fomos em frente o corvo
sempre a mostrar o caminho. Começou a escurecer. Perdemos a noção de tudo.
Mesmo no escuro o corvo grasnava e o seguíamos só pelo som. Resolvemos parar e
pernoitar. E o Chefe Noel? Sua preocupação da nossa chegada o que estaria
fazendo. A noite foi difícil aguentar. Um frio de doer. Uma bruma cinza tomou
conta do vale onde estávamos. Alguém tem fósforos? Perguntou o Monitor. Lembrei
que papai colocou um isqueiro na mochila. Fizemos um fogo, aliviou o frio, nos revezamos
na noite escura. Dois sempre de guarda. O dia amanheceu o corvo estava lá.
Como num passe de mágica o
corvo pousou em meu ombro. Ninguém viu. Vi que ele tinha uma pena dourada e
todas as outras pretas. Ele me fixava como se me conhecesse. Leones chamou a
todo para cantar os Cavalos a trotar. Esquentamos um pouco. O corvo voava em
nossa volta mostrando onde devíamos ir. Duas horas depois avistamos o acampamento.
Eu agradeci a Deus e quase chorando todos nós nos abraçamos. Não houve acesso
de gritos do Chefe a não ser a gozação das demais patrulhas. O corvo ficou
conosco até a partida e sempre grasnando. Na partida no ônibus vi pela janela
ele nos acompanhado, bicava o vidro querendo quem sabe dizer adeus até sumir de
vez. Cansado por uma noite mal dormida desmaiei de sono e só acordei quando
chegávamos à sede. Disse para o Chefe e o Monitor que iria pagar a bussola.
Eles não aceitaram. – São coisas que acontecem disseram, mas que sirva de
lição.
No sábado seguinte a Tropa formada
para o Cerimonial de Bandeira. Ao final do hasteamento fui convidado para
dirigir a oração. Fiquei no meio da Ferradura. Quando ia começar senti no ombro
o pousar do Corvo da pena dourada. Levantou voo e sumiu entre casas da vila.
Voltou em seguida voando em círculos tendo a bussola perdida no bico grosso que
possuía. Quando peguei a bussola uma pena dourada caiu de seu corpo. Ele mesmo
pousou no chão, pegou a pena com o bico e colocou no meu chapéu, voando em
seguida grasnando rumo sul. Sumiu no céu azul daquela linda tarde de primavera.
Um silêncio sepulcral. Ninguém dizia nada. Até o Chefe estava extático e
deslumbrado com o fato. Ele sabia da história do Corvo. Não acreditou em nós
quando contamos. Tirei meu chapéu. Coloquei a pena dourada do meu querido corvo
entre a correias. Não ficou ali para sempre. Só colocava o troféu do meu amigo
corvo nas atividades e solenidades que participávamos.
A pena dourada fez história.
Tornou-se um mito. Está lá em letras de forma a história no livro de Ata da
Patrulha. Contam até hoje sua saga em todas as Patrulhas e no Grupo Escoteiro.
– Olhei para o Chefe Lávio. Todos olhavam para ele com um ar de incredulidade.
Ele se levantou e foi até sua barraca voltando em seguida. No topo do seu
chapéu de três bicos lá estava a pena dourada. Linda, nunca tinha visto igual.
Ah! Histórias são historias. Algumas marcam outras lembramos de tempos em
tempos. E como diz um Velho Chefe Escoteiro: Histórias são feitas para
sonhar...
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