terça-feira, 30 de junho de 2015

O repouso do Guerreiro.


Lendas escoteiras.
O repouso do Guerreiro.

           Ele não podia medir o tempo. Seus antepassados não lhe ensinaram. Mas ele sabia que muitas luas haviam se passado e seu fim estava próximo. Ele não foi o único, seus pais já tinham ido para as Terras Bravias do Sol Nascente. Seus dias estavam próximos a terminar. Em breve iria se juntar a eles. Sua herança ele não deixaria para ninguém. Aplanã não deixou que Amanara lhe desse filhos. Na tribo somente as lendas dos guerreiros passavam de pais para filho. Ele era uma lenda? Não era. Nunca foi. Era que era um simples índio que conhecia as histórias dos seus ancestrais; Conseguiu sobreviver de muitas guerras com os Tapuias, os Caraíbas e tantas outras tribos que sempre tentaram raptar suas mulheres e tirarem o que era deles. Foi o único que sabia conversar em Macro-Jê, Tupi e Arauak. Aprendeu nas guerras e nas inúmeras vezes que fora aprisionado. Acostumou-se a sentar embaixo da Aroeira que dizem os espíritos foi plantada por Aplanã, um valente guerreiro, que dizem correu pelos céus como um raio flamejante a mil luas atrás. Seus olhos miúdos percorriam as inúmeras Tabas de sua aldeia. Quanto tempo! Nada é mais como antes. O homem branco nada trouxe de bom.

           O Grande Espirito já o tinha avisado que sua morte seria breve. Não tinha medo dela. Nunca teve. Já a enfrentara inúmeras vezes. Afinal fora um guerreiro cujo nome se espalhou por toda a Floresta de Akanã. Amanara sua mulher o olhava com carinho. Porque nunca tiveram filhos? Ele daria tudo para ter um herdeiro que levasse seu nome através da história. Que pudesse narrar seus feitos. Sabia que quando fosse para as Terras Bravias nada sobraria de sua vida na terra. Seus pensamentos velejavam através das nuvens brancas espalhadas pelo céu. Teria milhares de coisas para recordar. Viveu uma época que hoje seus descendentes não irão viver. O homem branco agora mandava. Eles não passavam de meninos obedecendo ordens, o que fazer e que comer. Desobedecer? Muitos da sua tribo se tornaram homens sem valor. Bebiam, faziam arruaça, viajavam e diziam representar a tribo. Nunca seriam nossos representantes. Eram sim de si próprios em busca de facilidades que um verdadeiro guerreiro desprezaria.  

           O viu chegando em sua jangada atravessando o Rio Morcego. Sempre fora assim. A cada vinte ou trinta luas ele aparecia. Lembrou quando o viu pela primeira vez. Jovem ainda, sempre com cabelos brancos soltos ao vento, olhos pequenos azuis, um chapéu esquisito, um lenço amarrado no pescoço, um calção da cor da camisa parecida com a folha de bananeira desbotada. Uma meia que ia até os joelhos e uma botina preta. Desceu de sua jangada e fez um sinal de alô. Não disse mais nada. Ele não falava muito. Aproximou-se de mim e levou sua mão esquerda ao meu coração. Como ele sabia? Nos velhos tempos só os fortes entre os mais fortes se saudavam assim. Fiz o mesmo que ele e um sinal a Ibaretama aquele que veio do céu para que não o matasse com sua lança. Um homem branco nunca fora bem recebido na Aldeia. Uma época que os Bororós eram temidos. Cabelos da Neve sentou embaixo da Aroeira. Cruzou as pernas como se fosse um de nós, tirou de seu bornal um cachimbo pequeno e o fumou por horas. Não disse nada. Chegou calado e calado ficou. Lembro que Amanara levou-lhe uma cuia com cuscuz cozido e ele comeu com gosto.

           Otinga o Pajé logo que a noite chegou começou uma pajelança pela cura de Oititaba, um jovem que caiu da Pedra Solta bem depois da curva do rio Morcego. O viu bebendo o tafiá e mesmo evocando os espíritos de seus ancestrais e muitos animais da floresta não houve cura de Oititaba. A tribo dançou com ele freneticamente e fez as mimicas conhecidas do animal que estava incorporado a Otinga. Oititaba morreu pela manhã. Cabelos da Neve recusou dormir em alguma Taba ou mesmo na sua. Dormiu ali embaixo da Aroeira sob o calor de um pequeno fogo que fez. Não o vi pela manhã. Ao raiar do dia deve ter partido. Sua jangada não estava apoitada na areia branca do rio Morcego. Passaram mais de vinte luas quando ele voltou. Parecia mais Velho assim como eu. De novo nos cumprimentamos e pouca conversa. Seu silêncio me agradava. Apontou a Montanha dos Abutres. Por sinal por a mão em meu peito e me convidou sem falar a subir até o topo.

          Não podia ir. Minhas pernas recusavam a obedecer. A tribo aprendeu a admirá-lo. Com seu chapéu cuia colocou sua mochila, atravessou seu bornal e partiu rumo à montanha. Uma semana depois voltou. Descansou por algumas horas e em sua Jangada sumiu nas águas tranquilas do Rio Morcego. Mais uma vez fiquei só. Ou melhor, sempre estava só, mas quando Cabelos da Neve aparecia havia no ar um encantamento que toda tribo sentia. O passado não perdoa o presente. Éramos milhares e hoje? Um punhado que vinte ou trinta tabas acomodavam todos. As nações indígenas foram dizimadas. Caçar, plantar, pescar já não era a maneira correta de sobrevivência. Um posto da FUNAI nos dava o que Comer. Parecíamos mendigos sem nome, sem honra a depender do homem branco a nossa sobrevivência. A nossa terra não era mais nossa. Nossas crenças desapareceram. As forças da natureza que nos impeliam aos nossos antepassados não existiam mais. Os espíritos dos ventos riam de nos. Deuses e espíritos fugiram das nossas cerimonias, dos rituais e festas. O Pajé era uma figura que ninguém mais dava valor.

           Na vigésima lua desde que ele se foi fiquei doente. Muito. A pajelança não adiantou. Era questão de dias para me encontrar com os espíritos dos meus pais e dos meus ancestrais. Já tinha passado o meu poder de Cacique ao Conselho da Tribo. Cabia a eles agora escolher quem devia conduzir a aldeia, as mudanças e as guerras se elas tivessem que existir. A mim me restava à lembrança do que fui e do que sou. Preferia não olhar o mundo ao meu redor. Quanta injustiça, quanto sofrimento e dor. Eu sabia que todo mundo temia a morte, mas o índio ria dela. Um guerreiro tem de saber enfrentar tudo a qualquer hora. Para ele o amor, a indiferença e a ambição não seria uma lança cortando o ar procurando seu coração. Mesmo nos meus últimos dias eu ainda me considerava um guerreiro. Vieram me dizer que ele chegou. Cabelos da Neve com seu chapéu esquisito cumprimentou-me a moda índia e a mão no meu coração. Na taba em que eu agonizava ele sentou com as pernas cruzadas. Tirou seu cachimbo e rolos de fumaça encheram o recinto.

           Deixaram-me a sós com ele. Ele me olhava e eu a ele. Tirou o chapéu e fez uma espécie de saudação. Com as mãos no peito começou a cantar baixinho uma canção. Dizia que não era mais que um até logo, não era mais que um breve adeus. Eu não o ouvia mais. Meu espirito abandonava meu corpo e me vi junto aos meus ancestrais. Eram centenas de amigos que agora estavam ali nas Terras Bravias do Sol Nascente. Voltei um dia depois como espírito. Meu funeral não teve nada diferente. Envolvido na rede dentro da minha maloca, fiquei por dois dias. Nivelaram a superfície da minha sepultura com barro socado. Quando me retiraram a maloca foi queimada. Seria abandonada para sempre. Todos os meus pertences estavam comigo. Em cima da minha sepultura Cabelos de Neve colocou uma placa de metal em formato de uma flor de lis. Todos já tinham ido e ele permanecia sentado de pernas cruzadas, fumando seu cachimbo e olhando para o céu. Eu o ouvia cantar a mesma canção: - Não devemos perder as esperanças de um dia tornar a nos ver.


           Uma semana depois ele se levantou. Deu um leve sorriso, fez o gesto de amizade colocando a mão esquerda no meu coração invisível. Fiz o mesmo com ele. Parece que ele sabia que eu estava ali, pois disse baixinho que breve, muito em breve tornaremos a nos ver. Entrou em sua jangada e partiu nas aguas calmas do Rio  Morcego. A história não termina aí, muitas luas depois os dois guerreiros se encontraram nas Terras Bravias do sol Nascente. Dizem que até hoje ficam sentados e sorrido na sombra da Aroeira que um dia pertenceu à tribo dos Bororós e que hoje não pertence a mais ninguém. 

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Era uma vez... Em uma montanha bem perto do céu...

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