Lendas
Escoteiras.
O
último voo do Falcão.
O horizonte desaparecia no
infinito. Quem o visse ali com as asas entreabertas naqueles penhascos longínquos
do Pico das Mil Vidas nunca imaginaria que um Falcão estava vivendo seu ultimos
dias de grandes jornadas. Sua vida estava se esvaindo. No seu pensamento lembrou-se
de um poema que seus ancestrais lhe ensinaram – “Combati o bom combate,
completei a carreira e guardei a fé. Não espero o prêmio da vitória, pois mesmo
tendo levado uma vida correta nunca me senti um vencedor”. Ele sabia que seu
fim se aproximava. Estava ali há vários dias. As forças já não existiam mais.
Diziam que ele era a ave mais rápida do mundo. Suas asas pontiagudas e finas o
ajudavam na caça em espaços abertos. Quanto tempo se passou quando lá pelos
lados do Vale dos Sonhos coloridos, ele e Abbat voavam pelos céus, quem sabe para
se mostrarem belos, majestosos e admirados pelas outras aves que nunca poderiam
fazer o que eles faziam.
Abbat, onde andará ela? Ainda
no ninho do Sol Nascente? Mas suas duas proles não estavam crescidos e tinham
ido procurar viver suas vidas em outras plagas? Abbat, sua eterna companheira.
Lembrava que todas as manhãs ele via a gazela acordar, ele sabia que ela
precisava correr lépida para sobreviver às sanhas dos leões. Não importa se
você é leão, gazela ou um falcão. Quando o sol nascer era hora dos voos em
busca do vento, olhar o firmamento e pensar que precisava se alimentar para
sobreviver. Viu do outro lado do Vale da Felicidade um Jaguar. Enorme. Parecia
um gato manchado de preto e amarelo. Estava firme com seu olhar tentando saber
como chegar até ele. Tudo mudou. De caçador agora era a caça.
Sabia que mais cedo ou mais
tarde o Jaguar das Terras Altas chegaria onde ele estava. Sabia também que não
podia voar, não podia reagir, a morte seria o fim da vida? Sua mente voava
pelos campos floridos. Nunca esqueceu Abaat. Quantas vezes ele voou para levar
a sua companheira e sua prole a refeição do dia? Lembrou-se dos mundos
coloridos que conheceu. Voou para todos os lugares e conhecia o caminho do sol,
das estrelas, era um falcão valente e que agora estava no fim da vida. Olhou
para baixo e viu no Vale da Esperança vários meninos e meninas de azuis e
lenços rindo e brincando. Já os tinha visto antes. Todos iguais com uma espécie
de coroa azul na cabeça que chamavam de boné de lobo e um lindo lenço amarrado
no pescoço.
Olhou novamente. O Jaguar havia
desaparecido. Ele sabia seu destino. Ele sabia que o Jaguar o encontraria. Pensou
em seu Deus. Ele também acreditava num ser supremo. Deus! Ó Deus! Onde estás
que não responde? Em que mundo em que estrela tu te escondes? Ele pensava e
ria. Ele morreria com honra. A morte estava enganada. Eu vou viver depois dela!
Olhou para o vale novamente. Os meninos de azuis montaram barracas, corriam
satisfeitos, saltitantes, cantantes como o regato que com suas águas mansas corria
lentamente pelo Vale da Esperança. Olhou sua plumagem. Considerava-se belo.
Suas patas amarelas se tornaram lendas para quem as enfrentou. Seus olhos
negros com anel amarelo eram enormes. Podiam ver o infinito. Amava suas asas,
enormes. Com elas correu mundo.
Sentiu um toque em suas asas.
Assustou-se. Tão rápido o Jaguar o encontrou? Fechou os olhos. Não podia
reagir. Não tinha forças. O Valente Falcão Peregrino agora era uma sombra do
passado. Morrerei com honra pensou. Sentiu o toque novamente. Olhou. Não era o
Jaguar. Era uma menina. Linda de olhos azuis. Com seu lencinho verde e amarelo no
pescoço ela sorria. Ele queria falar, sabia que não seria entendido. Mesmo
assim ele crocitava, piava e a menina entendeu! Tirou do seu bornal um farnel
que seria seu lanche do dia e deu para ele. Sabia que a Akelá iria compreender.
O Falcão sorriu. Ele precisava. Estava fraco. Cinco dias sem comer e beber
água. Comeu tudo! Sentiu suas forças voltarem. Agora estaria pronto para
enfrentar o Jaguar. Um apito ecoou ao longe. A menina de olhos azuis se
levantou e disse – Adeus meu amigo Falcão! Ele não entendeu.
Em um esforço sobre humano ele deu
três passos para frente e alçou voo. Iria
fazer o ultimo voo do Falcão no espaço para ela. Para a menina lobinha. Queria
que ela soubesse do seu agradecimento. Ela lhe devolveu a vida. Alçou voo rumo
ao infinito e voltou célere. Fez uma virada lateral como fazia no passado. Viu
que ela batia palmas. Partiu rumo ao Vale do Sol Nascente. Um voo que nunca na
vida ele tinha feito com aquela velocidade. A menina sorria lhe acenou com os bracinhos
como a dizer adeus. Ele partiu. Sabia aonde ia. Seguiria o sol no seu caminho
para o oeste. Precisava encontrar Abbat. Viu o Jaguar próximo da escarpa onde
estava olhando para ele. Sorriu. Não foi desta vez meu amigo. Quem olhasse para
o céu, veria um Grande Falcão Peregrino com suas asas enormes, voando junto ao
sol e que aos poucos desaparecia no horizonte.
Não sei se ele encontrou Abbat.
Deve ter encontrado. Ele sabia que sua linhagem não iria desaparecer no tempo.
Suas duas proles velejavam pelos céus a mostrar sua raça, a mostrar sua força e
coragem. Em sua mente eu sei que ele dizia para si próprio: - “Às vezes eu falo
com a vida, às vezes é ela quem diz – Qual a paz que eu não quero conservar
para tentar ser feliz”?
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