Lendas Escoteiras.
A saga de Rich, um lobo da matilha cinzenta.
Ele chegou com sua família
e conquistou a todos. Quem imaginaria que ele se tornaria quem se tornou? Era
negro, assim como seus pais. Um porte altivo, sem um sorriso a nos olhar com
bondade. Não sei se sentiu-se diferente ao ser apresentada a matilha. Contaram
para ele a mística, como era a Jângal, como era a Gruta, lhe mostraram o bastão
totem, gostou da Roca do Conselho e franziu a testa ao ver os lobos no Grande
Uivo. – Seu dia vai chegar e você também estará saudando a todos, lhe disse a
Kaa. Rick era obediente e disciplinado. Com três meses de atividade foi
acantonar. Foi para ele uma das maiores aventuras de sua vida. Sentou-se com um
lobo disciplinado na viagem e não se levantou. Uma tarde do segundo dia ele
sumiu. Sua matilha o encontrou embaixo de uma frondosa árvore e parecia estar
em transe com os olhos semicerrados a balançar a cabeça para frente e para
trás. Quem o encontrou chamou o Balu que junto a Bagheera vieram correndo ver o
que havia. O que se passou foi incrível. Rich passou a narrar trechos do Livro
da Jângal:
- Não me temam, disse Mowgly, eu sou amigo
de vocês. Quando estive com Bagheera na encosta do morro frente à Waiganga, no fim
do inverno vi um vale semi-deserto. Vi um pássaro cantando notas incertas
tentando aprender para quando viesse à primavera. Bagheera lembrou que o tempo
das Falas Novas está próximo e disse que precisava recordar o seu canto e se
pôs a ronronar. Mowgly adorava as mudanças das estações. Ficava triste, porém
porque os outros corriam para longe o deixando sozinho. - Em minutos toda a
Alcateia sentou em sua volta e se encantaram com sua historia. Parecendo viver
uma mística verdadeira, com os olhos fechados contava de uma maneira tão
bondosa tão simples, que o melhor contador de historia teria ali um professor.
Ninguém dizia uma só palavra. – Senhor da Jângal, sabe que eu tenho que viver
sozinha – disse Bagheera olhando para Mowgly. Sabe que é na primavera que vou
para todos os lugares, fazer coro com os outros animais, onde posso correr até
o anoitecer e voltar ao amanhecer. – Sabe que é o tempo das Falas Novas, e eu
faço parte de tudo. Mowgly sabia que naqueles tempos, via-os rosnando, uivando,
gritando, piando, silvando e eram tão diferentes! Uma sensação de pura
infelicidade o invadiu da cabeça aos pés. Mas se arrependeu.
Tratei mal a Bagheera e aos outros. Esta noite
cruzarei as montanhas, e darei também uma corrida em plena primavera até os
pantanais. Todos haviam partido. Só Mowgly ficou. Saiu sozinho aborrecido.
Correu naquela noite, às vezes gritando, às vezes cantando. Correu até que o
cheiro das flores no pantanal ao longe chegou a suas narinas. Avistou uma
estrela bem baixa e lembrou-se do touro que lhe deu a Flor Vermelha. Akelá
estava perplexa, todos estavam. Rich continuava sem prestar atenção a ninguém.
- Raksha, nossa mãe também disse que o homem vai para o homem. E Akelá na noite
do ataque dos Dholes, e também Kaa, a serpente da rocha. - lembrou Mowgly. E tu
irmão Gris, que disse tu? – Eles te expulsaram uma vez. Disse o Lobo. Eles
queriam te lançar na flor vermelha. Mandaram Buldeu te matar. São maus,
insensatos. Foste admitido na Jângal por causa deles. - Para! Que estás
dizendo? - - Lobo Gris respondeu - Filhote de homem, senhor da Jângal, filho de
Raksha, meu irmão de caverna – O teu caminho é o meu caminho. A tua caça é a
minha caça e tua luta de morte é a minha luta de morte.
Rich parou de narrar. Levantou, olhou para todos e saiu rumo à sede onde
estavam acantonados. Todos suspiraram esperando o final da historia que não
veio. A Embriaguez da Primavera sempre era contada por Bagheera. Mas não da
maneira que Rich contava. Foi um acantonamento marcante. Rich não contou mais
historias. Voltou como era e sempre foi. Calado, taciturno e amigo de todos. Um
dia, Rich deixou sua matilha e foi sentar no primeiro degrau da escada que
levava a biblioteca. Surpreendentemente começou a cantar músicas de um vasto
repertório de Cantos Gregorianos (canto gregoriano é um gênero de música vocal, monódica de uma só melodia), não havia um Organum,
não havia acompanhamento. Sua voz retumbava em todo o pátio para surpresa de todos.
Começou baixinho interpretando o “Veni Sancte Spiritus”, depois mais
alto o “Lauda, Sion” e a “Ave, Maria... et benedictus”. Ninguém conhecia tais
cânticos, mas eu tinha diversos CDs de canções Gregorianas. Parei, fiquei
estático com aquele cântico tão bem interpretado por Rich. Conhecia todos eles.
Sua voz, linda, maravilhosa, um verdadeiro Castrato, ou talvez um soprano, ou
um mezo-soprano. Todo o Grupo Escoteiro parou suas atividades. Ficaram ali,
embasbacados não acreditando no que viam ou ouviam. Rich não precisava de
acompanhamento, uma orquestra. Durante mais de uma hora, Rich cantou
maravilhando a todos. Não perguntou se podia, se aquela era à hora. Decidiu por
si só. Não era para se exibir para os ouvintes ali sentados no chão. Ninguém
tirava os olhos maravilhados com aquele lobinho de uniforme azul, com seu Boné
azul, seu lenço verde e amarelo, sorrindo para todos. Era a primeira vez que
sorria. Isto foi surpreendente.
Foi mesmo uma apresentação primorosa. Todos ficaram fascinados por aquele
lobinho. Foram surpreendidos, pois nunca esperavam que isto pudesse acontecer
com eles. Rich não tinha hora ou lugar para contar uma historia ou cantar. Isto
vinha naturalmente. Continuou na Alcatéia por muitos anos, foi Lobinho Cruzeiro
do Sul. Espontaneamente resolvia cantar e ou contar historias. Quando isto
acontecia, todos acorriam. Ele passou para a Tropa escoteira, e nos seniores
abandonou o escotismo. Seu pai fora trabalhar em outra cidade e ele foi junto.
No seu ultimo dia sem ninguém esperar foi ao centro da ferradura e cantou
maravilhosamente a Canção da Despedida. Cantou simplesmente. Não houve mãos
entrelaçadas, ele cantou sozinho, pois todos ali naquele círculo não tirava os
olhos dele. No final as lagrimas apareceram e os soluços também. Seus pais que
estavam presentes sorriam. Quando terminou todos acorreram para abraçá-lo.
Ninguem nunca mais esqueceu aquele dia.
Rick se foi e os anos se passaram. A Alcatéia colocou sua foto e seu feito
quando era Lobinho na Gruta e na Roca do Conselho. Ficou ao lado de tantos
outros famosos como Balu, Bagheera, Kaa... Pelos motivos que o destino nos
reserva a qualquer tempo, eu ganhei dois ingressos para assistir a ópera O
Elixir do Amor “Una Furtiva Lagrima” no Teatro Municipal. Fui com minha esposa
e ali estava nada mais nada menos que um grande Tenor famoso e que eu nunca
poderia imaginar quem seria. Surpresa. Era Rich, agora com o nome de Boono
Lastimer. Interpretou com tanto sentimento que apesar de não conhecer Enrico
Caruso, o mais famoso interprete desta opera, Rich nada ficou a dever, foi
aplaudido de pé, por mais de cinco minutos.
Tentei me aproximar de seu camarim. Impossível. Ele não reconheceu meu nome.
Claro, nossa intimidade escoteira foi por pouco tempo. Acompanhei por muitos
anos a carreira de Rich. Foi convidado a cantar no Teatro La Scala de Milão na
Itália e por lá ficou por vários anos. Soube que a sua turnê pela Europa e América
fizeram retumbante sucesso. Ah vida, quem sabe de você? Quem sabe nosso
destino? Nunca me esqueci de Rich. Quando penso nele me lembro das palavras de
Kaa que na sua nobreza de serpente sempre disse – Somos do mesmo sangue, tu e
eu!
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