Lendas
Escoteiras.
Do
mundo nada se leva.
Rato louco não perdoava ninguém. Gostava de
roubar. Nunca matou, nunca fez mal ou feriu alguém. Roubava por roubar.
Pensando bem não precisa disto. Rato Louco era Tomé dos Santos, filho de Doninha
uma lavadeira que trabalhava de manhã à noite na beira do Rio Ponches. Nunca
deixou faltar nada para ele. Porque roubava? Ela não entendia. Sempre o ensinou
a ser bom, amigo, tratar bem as pessoas e estudar para ser alguém. Na escola ele
ficou dois anos e foi expulso. Roubou a professora Matilde, o Diretor Tolon e
os meninos mais bem aquinhoados da classe. Na rua todos corriam dele. Ele
sorria se achava o tal, o valente o dono do mundo. Um menino magro, cabelos
louros até bonito com seus treze anos fazer isto? Doninha perdeu as contas de
quantas vezes foi à delegacia. Perdeu muitas freguesas por causa dele. O
Delegado Paredes ameaçou dar um fim na sua vida. – Dona Doninha, levá-lo para a
FEBEM na capital é perda de tempo. Ele vai fugir e continuar na sua sina de
ladrão!
Agora ele tinha
passado dos limites. Entrou na mansão do Juiz Moreno e roubou o que achou de
valor. O Juiz subiu nas tamancas. Até sua medalha que o Presidente lhe deu ele
roubou. Para que e para quem pensou o juiz. Sua mãe foi chamada e a coitada
chorava. Não sabia o que fazer. Rato Louco nestas horas sumia. Ninguem sabia
onde se escondia, pois viraram a tapera da Rua 12 onde sua mãe morava e nem
sinal. O que será que ele pensava? Porque roubava? Era sua sina? Quando o
entusiasmo penetra em tudo que fazemos, não pensamos no que foi ou será. Rato
Louco nunca sentou para chorar, para pensar nos seus atos e consequências. Seu caminho era este, um caminho de pedra sem
imaginar se tem sol ou estrela no céu. Ele sorria ao saber que era um bandido. Não
tinha amigos e quando sonhava se achava o mocinho das histórias de cinema. Para
ele sua escolha era viver roubando sozinho, sem saber se vai morrer um dia ou
se fica para a prisão que era a única que poderia lhe restar em sua vida.
Houve uma reunião
secreta na casa de Mortimer, o Prefeito de Lagoa dos Mares. Ninguem nunca
contou o que discutiram e quem estava lá. Ninguem viu pelo negrume da noite
Rato Louco escondido na janela a espiar os quatro do apocalipse que discutiam o
fim de sua vida. Um delegado entreguista, um Juiz desonesto, um prefeito mais
ladrão que ele. Ele sabia que seria caçado e morto. Não tinha escapatória.
Mandaram chamar o Tenente Macabeus da capital. Tinha fama de matador e seus
soldados diziam rir quando alguém gritava pedindo perdão. Passou em casa na
madrugada e sua mãe dormia. Olhou para ela e sentiu pela primeira vez um pingo
d’água sair de seus olhos e rolar pela face até o chão. Pegou sua mochila,
alguma matutagem um cobertor e partiu. Seguiu a estrada do Patrão e sumiu nas
matas da Serpente. Andou até o dia começar a clarear. Sua barriga chiava de
fome, tirou uns biscoitos comeu e continuou a se embrenhar mais e mais na
floresta densa.
Nem lembrava quem lhe
disse o que era sua vida desgraçada, gostava de declamar para si mesmo: - As ruas me ensinaram a ser o mais forte possivel...
Não chorar por bobagem... Enfrentar o sofrimento com coragem... Vivendo,
sofrendo e morrendo... Mas sempre lutando em busca do ouro... Da felicidade.
Ria quando declamava. Sabia que nunca seria feliz. Sentiu o cheiro de fumaça
quando o dia raiava. O sol entre as árvores tentava espantar a nevoa da
floresta ao amanhecer. Na beira do Riacho do lobo viu duas barracas. Parou e
esperou quem sabe poderia roubar alguma coisa? Notou meninos saindo debaixo
delas. De uniforme no costado, chapelão encabeçado, brincavam cantando e
dizendo que o dia era belo e tinha de ser aproveitado. Quando se sentiu notado
pensou em correr, mas um deles o convidou para o café.
Do café ficou para o
almoço para o jantar, para o leite quente antes de dormir novamente. Dormiu
como nunca tinha dormido antes. Sentia uma paz que nunca sentiu. Tornou-se sem
perceber um deles. Não tinha uniforme, mas lhe deram um lenço, um lenço lindo
que amou pelo resto de sua vida cujos dias tão pouco durou. Aprendeu nós,
amarras, ser um bamba com cipós a fazer coisas boas para usar. Pediu para ser
ajudante do cozinheiro, nunca foi um bom mateiro, mas como aguadeiro e lenheiro
não deixou de trabalhar. Aprendeu a gritar patrulha lobo, a cantar o Rataplã.
Aprendeu a sorrir e pensou que poderia ser feliz. Agora tinha bandeira no
mastro, bandeira arvorada, mata e pátria amada. Sentiu que podia mudar.
Perguntou na noite do fogo se podia jurar, se podia prometer, se podia ser um
menino honesto e com palavra como eles eram.
Dias menos dias o
acampamento acabou. O sonho sumiu, os meninos escoteiros partiram e ele chorou.
Porque não podia ser um deles? Alguém da patrulha lhe deu a mão, sapecou-lhe um
abraço, enxugou suas lágrimas. – Seja um de nós, seja nosso irmão, somos do
mesmo sangue Badeniano. Tu e eu seremos um só. Partiu com eles para a cidade.
Sorria marchando na estrada, sorria pensando na vida que se transformava. Parou
na curva da porteira. Viu um Jipe policial, reconheceu o Tenente Macabeus rindo
pela sua presa encurralada. Os meninos escoteiros fizeram um círculo a proteger,
mas nada segurava a soldadesca que sorria ao ver que sangue seria derramado. Os
meninos escoteiros choravam, pediam por ele sem intercessão de ninguém.
Jogaram-no jipe como se fosse um saco de estrume. O jipe soltou poeira partindo
para destino ignorado.
O tempo passou,
a chuva chegou, o sol saiu e a lua cheia bela como sempre apareceu no céu de
Lagoa dos Mares. Diziam que a paz voltou à cidade. Nos Escoteiros seis meninos
sentiam um nó ao dizer seu nome. Quando se reuniam choravam de tristeza como se
tivessem perdido alguém que muito amavam. Para eles Rato Louco nunca existiu.
Quem estava com eles era Tomé dos Santos, um amigo conquistado. Passou semanas
e meses e nunca mais se ouviu falar em Rato Louco. De novo nas matas da
Serpente os meninos escoteiros acampavam. O dia passou, a noite chegou. Não
havia luar, mas o firmamento cheio de estrelas traziam saudades do ar. Uma
fogueira, um triste cantar, uma vontade enorme de dar as mãos e rezar. E eis
que uma voz gemida, tremida aparece entre a fumaça do fogo e as brasas quase adormecidas.
- Amigos, quanto
tempo parei no tempo esperando vocês, aqui eu moro aqui eu vivo aqui eu sonho
em ser Escoteiro. Foi aqui que vivi os dias mais belos de minha vida. Hoje sou
espírito, sou fumaça, sou errante perdi a graça, pois já não vivo junto a
vocês. Elevo-me no ar, faço piruetas, vou aos cumes, sem sossego, sou um sopro
que perdeu o canto, hoje quando canto os passarinhos se calam na mata. Não vejo
a hora de me calar também! - Um silêncio profundo. Escoteiros em pé, mãos
entrelaçadas, alguém canta que não e mais que um até logo, outro saudando o
amigo que partiu para eternidade! – Um por todos! Todos por um!