Lendas
escoteiras.
Sombras de um
passado.
O trem serpenteava o Rio do Sono.
Pouco dava para ver, pois a escuridão da noite mal deixava ver a fumaça branca
da locomotiva correndo sobre trilhos que o levaria a próxima estação. Durval na
poltrona 74 dormitava. Voltava de um curso escoteiro que foi fazer na capital. Foi
bom pensava. Aprendeu coisas que nunca pensava em saber. Lembrou quando tudo
começou. Foi Thiago quem o convidou. Um menino gordinho filho de Dona Cecília
sua vizinha. Não entendia nada, não tinha estudo mal um quarto ano primário.
Cinco dias depois Thiago foi a
sua casa com mais cinco meninos desta vez uniformizados. Sorriu quando
renovaram o convite. Prometeram ser disciplinados e afirmaram que ele nunca ia
se arrepender. Mesmo sabendo que sua mãe não ia entender, pois sofria do mal de
Alzheimer ele sentou ao seu lado e contou tudo dos meninos do que ele viu nos
livros da biblioteca e pensou em ajudar. Sua mãe sorria, entendia, mas logo
esquecia.
Quando seu pai morreu de “morte
morrida” ainda não tinha feito doze anos. Sentiu uma falta enorme. Prometeu ao
seu pai na sepultura que iria tomar conta de sua mãe para sempre. Tinha uma
pequena sapataria, costurava, fazia meia sola, engraxava, e atendia a muitos
fazendeiros e sitiantes com belas botas de cano alto que fazia com perfeição.
Nunca foi rico. Como diziam na roça, “dava pru gasto”. Sua casa tinha dois
quartos um para a mãe e outro para ele. Apareceram oportunidades de casamento.
Nunca se casou. Sua mãe em primeiro lugar e agora o escotismo em segundo.
Fazia menos de seis anos que se
tornou um Chefe. Chefe? Nome pomposo demais e que ele nem sempre entendia o
significado. Um amigo que sempre ia a capital comprou para ele alguns livros do
fundador. Lia e relia. Era ali que aprendia a fazer escotismo com sua meninada.
Ele amava a todos e todos o amavam também. Sentiu que alguém sentava ao lado
dele. Continuou de olhos fechados, pois muitos viajantes não gostavam de prosa
e ele pouco falava. Ouviu soluços, abriu os olhos e viu uma moça de seus vinte
e cinco anos, morena clara sentada ao seu lado.
Não sabia o que fazer. Nunca teve
facilidades para conversar principalmente com uma moça tão linda. Linda demais.
Suspirou fundo e disse: - Posso ajudar? – Ela não sorriu balançou a cabeça como
a dizer não. O trem continuou seu traque-traque levando seus passageiros cada
um para seu destino. Por várias horas ela continuou chorando. Parou. Olhou para
ele: Desculpe moço. Minha vida se tornou um inferno. Ela se abriu com ele como
ninguém nunca tinha feito antes. Disse seu nome: - Barbara Heliodora, uma
simples mulher e não a poetiza e ativista politica brasileira. Ele notou que
ela era estudada.
Duas horas antes de chegar a sua
cidade, ela terminou de contar sua saga. Fugiu da capital por medo de um
ex-policial militar. Casado fez dela sua amante. Deu tudo de bom e melhor para
ela. Nunca soube onde ele arrumou tanto dinheiro. Batia nela quase todos os
dias. Começou a se sentir mal e fez exames vendo que tinha AIDS e quase se
matou por isto. Fugiu dele. Tinha uns tostões guardados. – Para onde a senhora
vai? – Ela sorriu. – Para nenhum lugar especial. Peguei este trem nem sei por
quê.
Ao parar na sua estação ele disse:
Desça, venha comigo, darei hospedagem em troca de nada. Terá respeito e
consideração. Ela quis dizer não, mas o convite era sincero. Na Rua Peçanha e
na Av. Tiradentes os moradores chegaram a janela para ver o Chefe Escoteiro e
uma madame cheia de penduricalhos. Onde ele arrumou esta “coisa”? Se
perguntavam. Sua mãe a recebeu com carinho. Ficaram amigas. Ela agora dormia em
seu quarto e ele na sala. Cinco meses depois se casaram. Nunca se amaram, pois
ele ainda não sabia como enfrentar a doença dela. Viviam felizes, passeavam,
ele a levou em inúmeros acampamentos.
Tempos passados na loja da
sapataria viu quando um Jeep parou na porta de sua casa. Um homem desceu. Ela
estava no quintal colocando roupas no varal para secar. Ele Não entendeu. Ouviu
tiros, correu até lá, Barbara estava caída de bruços e muito sangue na boca e
no coração. O Jeep partiu a toda. Ele a pegou com as mãos e foi correndo até o
hospital. Chegou morta. Ele sabia que estava morto também. Pensou em ir a
capital e vingar sua morte. Sua mãe aconselhou. Os monitores o abraçaram
dizendo que o perdão vale para todos.
Nunca mais a esqueceu. Voltou a
sua rotina na sua sapataria com sua mãe e nos escoteiros. Às vezes a dor
machuca, não adianta chorar, ficar de pé seguir em frente era a melhor maneira
de enfrentar sua solidão e sua perda. Nos guardados dela viu o nome do
ex-soldado. Em um jornal de TV disseram que tinha sido morto por traficantes. O
perdoou. Sabia que ele ia sofrer no céu e no inferno.
Em cima da Pedra do Sino, na serra
da Piedade, ele olhou o horizonte. Uma chuvinha leve e intermitente caia.
Lágrimas caíram, pois não podia esquecer. Ouviu a voz dela dizendo: Thiago vou
te esperar, não posso viver sem você! Um arco íris se formou quando a chuva
passou. Enxugou as lagrimas e pensou ao
olhar os escoteiros sentados ao seu redor: - Meus irmãos, não tentem me
entender, sou aquele Chefe que convidaram um dia e continuo o mesmo. Sem
Barbara eu sei que dói muito, mas não vou desistir.
Eu não sei se este é o melhor
caminho. Se agi certo ou errado. Vou seguir o meu destino e guardar sua
lembrança no coração. – Um pequetito escoteiro foi até ele, deu um abraço e
disse: - Chefe! Vamos continuar a caminhada?
Nota – Meu filho instalou a Netflix. Procurava
uma série para ver. Veio-me a mente este conto. Deixei de lado a série que
escolhi. Corri liguei o micro e meti os dedos no teclado. Em pouco tempo
terminei. Estava pensando em mudar o final. Melhor não. Qual sua opinião? Ela
deveria sobreviver para que eles pudessem viver felizes para sempre? Sua
opinião será bem vinda.
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