O céu mandou
alguém.
Uma história,
uma lenda escoteira.
Era uma vez... Chega um tempo na vida que a gente aprende que ninguém
nos decepciona, nós que colocamos expectativa demais sobre as pessoas. Cada um
é o que é e oferece aquilo que tem para oferecer. Querido passado, obrigado por
tudo que me ensinou... Querido futuro, pode vir!
Rosa não tirava por um segundo seu
olhar para o Canteiro de Flores que plantou, regou e tinha o privilegio de
sentir o perfume que elas exalavam. Eram Rosas, Begônias, Gardênias, Jasmim e
Camélias. Cada uma mais linda que a outra. Se não fosse Geraldo ela não teria
conseguido. Foi ele quem trouxe as sementes e a terra. – Onde ele está? Havia
dois meses que não a visitava. Não demonstrava, mas sentia falta dele, pois
todo o segundo domingo do mês era o único que a visitava. Sentava ao seu lado e
ambos de olhos baixos calados ficavam ali como se só o pensamento transmitisse
todas as palavras que queriam dizer. Olhou para o horizonte e viu que o sol
iria em breve e se esconder nas montanhas distantes. O aroma adocicado das
Camélias ajudava nas suas lembranças que varriam sua mente a procura de
detalhes para que nunca fosse esquecido quando tudo fosse escrito no livro do
tempo. Livro do tempo? Foi Don Antonio quem disse quando confessou pela última
vez. - Ele existe sim, Rosa!
Quanto tempo? Dezenas... Nunca esqueceu o dia
que sua mãe a levou aos escoteiros. Reservada, sempre ingênua e acanhada se
escondeu atrás dela com vergonha do Chefe Escoteiro. Não foi ela quem pediu
para entrar, mas uma amiga de sua mãe insistiu. As patrulhas femininas
brincaram com ela, até puseram um nome que ela teve que procurar no dicionário:
- “Pudica”. Nunca disse a ninguém, mas sua vida tinha dois destinos. O antes e
o depois de ser escoteira. Obedecia às ordens emanadas da Chefe e da Monitora
sem pestanejar. Morreu de vergonha quando promessou a bandeira e a pátria. Não
era convidada para festinhas, aniversários, pois se sentia uma intrusa e quando
foi em uma se escondeu no banheiro por horas. Quem sabe Sigmund Freud poderia
explicar melhor aquela menina escoteira que amava o que fazia e não dizia a
ninguém.
Nunca
fora convidada para nada na patrulha. Ajudava sim, fazia faxina, lavava as
bandeiras, o forro da mesa, e aprendeu com Geraldo um Escoteiro da Tropa
Masculina a achar o ponto certo do fio de uma ferramenta cortante, afiar e
olear. Gostava disto. Nunca foi elogiada por isto. Ela nunca se perguntou se
era importante seu gesto e seus afazeres na patrulha e na Tropa. Nem sabia se
era observada pela sua Chefe Maria Joana. Sabia que todos tinham por ela simpatia
e amizade. Cresceu na Patrulha e sempre calada, não sabia o que dizer. Um
paradoxo. Como Guia tentou ser igual as demais e não conseguiu. Mesmo sabendo
que suas amigas da Patrulha a olhavam com modéstia e a considerando fragilizada
não saiu. Perseverante continuou até ser uma pioneira... Mas não foi uma. A
Bagheera Isabel a convidou para ser uma assistente de lobinhos. Entre sair e
ficar decidiu ser uma loba da Alcatéia de Seeonee mesmo com seus dezenove anos incompletos.
Olhando o portão que não se abria, estava a
pensar que Geraldo poderia aparecer. Havia suavidade nos seus gestos. Não
casou. Ninguém a convidou para casar. Namorar? Achar um Principe Escoteiro
Encantado? – Geraldo era o único que a fazia sorrir. Durante o tempo que
ficavam juntos ele contava piadas sem malícia e ela sorria sem gargalhar. Uma
vez ou outra ele a visitava em sua casa. Sua mãe nunca disse não. Quando ela
morreu foi Geraldo que a acompanhou até o Campo Santo e a abraçou. Ela não
chorou nem ele. Não falaram uma palavra desde então. Foram anos ele a visitando
e calados olhavam para a Serra do Sol como se ali fosse ser a morada divina da
vida eterna. Ficou no escotismo até os setenta e seis anos quando caiu em um
acampamento feito uma abóbora quebrando a perna um braço sem contar duas
costelas.
O Chefe Morel foi quem sugeriu que ela fosse
viver seus últimos dias em uma casa de repouso. O Grupo Escoteiro pagaria a
diferença da mensalidade já que ela recebia pequena pensão de sua mãe que não
era lá estas coisas. Entre ficar sozinha ou ter companhia ela aceitou o
convite. Nos primeiros meses recebia visitas do grupo escoteiro. Ficavam pouco
tempo davam adeus dizendo que breve iriam voltar. Um dia não voltaram mais. Ela
não ficou esquecida, pois Geraldo todo segundo domingo do mês a visitava até
que um dia não apareceu mais. Os monitores da casa de Repouso estranharam
quando ela começou a conversar com as flores. Chegou ao ponto de cantar canções
Escoteiras como se as flores dessem retorno. As demais internas faziam rodas só
para a verem cantar.
Sem dizer nada e sem comentar um dia se calou
novamente. Sentada no banco de madeira suas lembranças tomavam forma. Agora
estava no Vale do Rabino com a patrulha a explorar uma nascente de águas
cristalinas. Suas andanças voavam no tempo, sorriu ao retornar em pensamento a
Serra do Sino quando a chuva torrencial as pegou em cheio. Os raios pipocavam
no ar com trovões retumbantes. Mas ela sabia que o sol ia voltar. Ele sempre volta.
Viu-se recebendo a segunda Classe naquele fogo de conselho nas Terras de
Gibraltar. A promessa bateu em cheio em sua memória... Prometo pela minha
honra... Fechou os olhos e viu Geraldo chegando em uma nuvem branca dizendo: -
Venha vou levar você para onde será o Nosso Lar. Ela na sua timidez lhe deu a
mão e subiram pela nuvem até uma estrela brilhante no céu.
Os monitores da instituição viram quando ela
caiu do banco. Correram para socorrê-la. Era tarde demais. Ela tinha partido
para nunca mais voltar. Não sei se o Grupo Escoteiro ainda sente sua falta ou
se algum dia valorizou tudo que ela fez e colaborou. Nunca recebeu um elogio uma
medalha ou mesmo um abraço. Culpa de quem? Da vida, ela é assim mesmo. Cecília
Meireles é quem dizia: - Ai,
palavras, ai, palavras, que estranha potência a vossa! “Todo o sentido da
vida principia à vossa porta; o mel do amor cristaliza seu perfume em
vossa rosa; sois o sonho e sois a audácia, calúnia, fúria, derrota...”.
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