quinta-feira, 12 de fevereiro de 2015

Lendas Escoteiras. Ninguém pode fugir ao seu destino.


Lendas Escoteiras.
Ninguém pode fugir ao seu destino.

                  - Eu só o vi Chefe quando ele passou em frente ao meu mercadinho. Assustou muita gente. Contaram-me depois que surgiu lá na trilha que leva ao arraial de Santana e passou pela rua do centro, ou melhor, pela única rua do nosso arraial de cabeça erguida, só olhando para frente e não cumprimentou ninguém! – Quando vi me assustei, ele estava de uniforme chefe, calça curta, Chapelão e uma imponência de fazer inveja. Uma barba grisalha, os cabelos também grisalhos amarrados atrás como um rabo de cavalo. Andava devagar, como se estivesse em transe, atrás seu cavalo e que cavalo Chefe. Um Baio de pêlo castanho com crinas pretas. Eu vi logo que era um Manga-larga marchador, daqueles descendentes dos Alter Real que chegaram ao Brasil por meio dos nobres da corte portuguesa. Era realmente uma imagem incrível para se guardar para sempre. Ele não segurava a rédea. Estava preso em uma linda cela de prata e o baio seguia seu dono onde quer que ele fosse. Todos que estavam nas janelas e portas estavam embasbacados. Ninguém disse nada um silêncio arrepiante. Só quando ele sumiu na esquina que o levaria a Fazenda Céu azul que pertenceu ao falecido Salomão foi que todos deram conta que algum estranho estava para acontecer.

                       Depois daquele dia ele nunca mais apareceu aqui no arraial. Sumiu por completo. Alguém dissera que era um feiticeiro. Que iria destruir o arraial. O boato morreu assim como surgiu. Soubemos dele pelo Terrinha, um meeiro que mora lá pelas bandas da fazenda Céu Azul. Foi ele que nos contou que o Chefe Leopardo comprou a fazenda. Sabíamos que não havia fazenda nenhuma, só terras banhadas pelo Rio Barrento. Terrinha disse que ele construiu uma choupana na beira do rio e ninguém pode chegar até ele. Quando ele vem à cidade o Chefe Leopardo pede que ele compre algumas coisas para ele. Sempre Pó de café, açúcar e sal mais nada. Sempre dá a ele uma gorjeta. Olhei para Campanário o dono da Mercearia. Não duvidava, mas seria mesmo o Chefe Leopardo? Sabia que ele sumiu de um dia para o outro de Monte Azul, deixou tudo para trás, não disse adeus a ninguém. Nem mesmo seus Escoteiros souberam de nada. Eu tive pouco contato com ele, mas quando me contaram do seu sumiço tentei saber o porquê. Chefe Noraço seu amigo não sabia, Malemont um sênior que vivia junto a ele também não. Ele não tinha namorada, pais nada. Morava sozinho.

                         Não poderia deixar passar em branco aquela notícia. Eu tinha de saber o que houve. Parei ali em Verdes Mares, um arraial que nem rio tinha só para completar o tanque do meu carro e porque não bater um papo com Campanário. Ele tinha sido da minha patrulha sênior e o que fizemos naquela época era como se fosse um motivo para não esquecermos nunca nossa amizade. Fiz um lanche na Mercearia dele a única do arraial, pois era um povoado pequeno não mais do que umas duas mil almas. Eu seguia para Lontra Verde, uma cidade não muito distante a pedido de uma fábrica de tijolos, uma olaria do Seu Tanquinho. Já nos conhecíamos. Sempre prestei serviços de manutenção em máquinas para ele. – Campanário, preciso ir lá. É uma oportunidade única. Você consegue um cavalo para mim? Chefe ele disse, são três léguas, mais de dezoito quilômetros a cavalo vai demorar umas três horas. Sem problemas Campanário. Preciso tirar isto a limpo. Ele prestativo deixou a mercearia e meia hora depois apareceu com uma mula linda, uma Andaluz alta, arriada – Chefe Zé Birosca me alugou. Depois o senhor paga para ele.      

                          Duas horas e meia depois avistei a choupana do Chefe Leopardo. Incrível! Toda feita de madeira original nos moldes das cabanas americanas. Em volta ele mesmo cavou um fosso em meio circulo, pois sua choupana era na beira do rio e ninguém poderia chegar sem atravessar o fosso. O mais espetacular era o mastro de bandeira que construiu. Vi que o cabo subia automaticamente tocado pela correnteza do rio. Uma linda bandeira Nacional estava hasteada. Desci do cavalo e ele chegou à porta. – Tarde! Eu disse. – Ele não disse nada. – Ficamos olhando um para o outro. Vi que sua mente tentava lembrar-se de mim. - Olá Vado, o que fazes aqui? – Visita Chefe Leopardo. Ou não posso visitá-lo uma única vez? – Ele pegou um cipó curado, e vi que uma ponte pênsil rodava para se firmar no fosso. –Sua mula fica aí. Perigoso para ela atravessar a ponte. Senti uma pontada de orgulho e inveja. Construiu o mais belo local para morar com suas próprias mãos. Não usou cordas, cabos ou cipós. Tudo na base do encaixe. Pioneirías que poucos um dia podiam fazer. Um belo chiqueirinho, um belo galinheiro e uma horta de tirar o chapéu. Ele plantava mandiocas, na beira do rio fervilhava aboboras de todo tamanho. Tinha pé de manga, goiaba, laranjas e até uma macieira eu vi. – Entrei na sua casa e meu queixo caiu. Uma linda mesa toda de madeira, bancos confortáveis, um quarto com uma cama e mosquiteiro feito de lascas de bambuzinho chinês.

                          - Sente Vado, olhe não me conte as novidades. Sou feliz assim sem saber o passado, o presente e nem o futuro quero adivinhar. Pegou-me de surpresa. – E você? Eu disse. – Quer saber a minha história não é? Nunca falei para ninguém. Só me dirijo uma vez por mês com o Terrinha. Um bom sujeito. Gosto do silêncio da minha choupana, do meu trabalho, eu estou sempre fazendo uma pioneiria ali e acolá, adoro pescar traíras a noite. Gosto de Caçar um quati, uma capivara com meu arco para comer carne fresta. À noite acendo meu fogo, deito na relva para contar estrelas, amo o por do sol e nunca deixei de ver o nascer do sol com as borboletas ciscando meus ombros e cabelos. Um dia vi que a vida que tinha não era o que eu queria. Amava meus Escoteiros. Mas eu precisava de algum mais. Juntei um dinheirinho e fui para o Nepal. Passei quatro anos em um mosteiro. Também não era o que sonhei para mim. Nunca seria um monge mesmo gostando do silêncio. Comprei esta fazenda. Aqui tenho tudo que quero. A terra é boa, ela é minha amiga, tudo que planto ela dá o retorno. Aqui eu tenho tudo que eu desejo. Não quero companhia, não vou casar e ter filhos. Quando meu corpo não me obedecer mais e chegar a hora de morrer, morrerei aqui, sentado na curva da lontra onde fiz uma linda cadeira de balanço. É lá que vivo e faço parte da natureza. É lá que sinto a minha liberdade e me sinto livre de todas as amarras da civilização.
                          

                          Chefe Leopardo sorriu. Disseram-me que ele nunca sorria. - Hora da bandeira ele disse. – Quer participar? – A bandeira farfalhava ao sabor do vento ali na beira do Rio Barrento cujas águas eram límpidas claras e serenas onde se podia ver os peixinhos a nadar. Durante a descida ele cantou o Hino Alerta. Sua voz rouca não titubeou uma única vez. Apertei sua mão esquerda, ele me agradeceu a visita e me pediu que não contasse a ninguém onde estava. Ele queria continuar sua vida de ermitão. Ali morava e ali iria morrer. Agradeceu-me e quando partia  ele me disse – Dê lembranças ao Campanário! – Você o conhece? Perguntei. – Claro Vado, ele foi Escoteiro junto a você. Parti pensando o que era a vida. Não entrei em detalhes com Campanário. Chefe Leopardo queria ter uma vida só dele. Não queria dividir o silêncio e os ventos do norte que sempre sopravam em sua choupana com ninguém. Chefe Leopardo confiou em mim. Sua vida, o que queria e o que escolheu seria um segredo meu guardado para sempre. Que ele vivesse em paz. Sempre pensei comigo: - Ele não quer ter razão, só quer ter uma vida assim. Quem sabe eu não invejo sua escolha?       

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