Lendas Escoteiras.
O destino de uma vida.
Prólogo: - Apenas um homem, nada mais que isto. Diziam que não era
simpático, não sei, mas sua história me marcou para sempre!
- Há muito tempo fui convidado por um Grupo Escoteiro de
uma pequena cidade do interior de Minas Gerais para proferir uma palestra sobre
os Valores do Escotismo. Um Grupo simples, efetivo excelente e uma amizade que
não se encontra facilmente. Pela apresentação pelo uniforme e garbo, moças e
rapazes sorridentes olhavam-me respeitosos e dentro de seus olhos sentia o
verdadeiro “Espírito Escoteiro”. Durante a palestra, em um salão paroquial
repleto, composto por pais, amigos simpatizantes e membros da sociedade
política da cidade observei um chefe, que permaneceu encostado em uma parede,
me olhando com olhos ávidos, prestava uma atenção canina, que fez com que me
perdesse algumas vezes na continuidade da palestra.
- Era um chefe aparentando uns 50 anos, com um aspecto desagradável
apesar de estar muito bem uniformizado com o caqui tradicional (um pouco velho,
mas limpo e bem passado) um chapéu de abas largas bem posto, meiões dentro dos
padrões e o lenço impecavelmente bem dobrado. Seu semblante deixava a desejar. Uma
mancha no rosto e uma enorme cicatriz na face. Cabelos negros, lisos e
compridos, contidos por um “rabo de cavalo” dava uma conotação estranha e
extravagante. Tinha uma maneira de andar meio bizarra com os braços abertos,
ombros curvados, mas seu sorriso era contagiante. Após a palestra, fui dar uma
volta no pátio onde se realizava as reuniões, e vi ali um bom escotismo sendo
praticado por uma alcateia mista, uma tropa masculina e uma feminina e uma
tropa sênior mista composta de três patrulhas.
- O chefe em questão em pé observava o andamento das
atividades sempre curvado, olhos fixos e esperando que alguém o chamasse.
Estranhei que ele não participasse diretamente. O Chefe do Grupo vendo minha
curiosidade explicou:- Apareceu aqui há uns quatro anos. Fica sempre afastado,
pois sabe que sua fisionomia assusta os jovens e também os adultos. Já nos acostumamos
a ele. Remo é o seu nome, o sobrenome ninguém sabia. O uniforme foi doado por
um antigo chefe que mudou desta cidade e ele se entusiasmou tanto a vestir o
uniforme que não impedimos. Vimos que era uma grande pessoa. Sua alegria apesar
da aparência contagiava. Não o convidamos para assistente. Não fizemos sua
promessa, havia uma duvida quanto a sua pessoa. Os pais não o viam com bons
olhos. Acreditávamos que fosse analfabeto e você sabe a dúvida em colocar
alguém assim em uma sessão é preocupante.
Ele é um dos primeiros a chegar à sede, faz a limpeza com
esmero, e depois encosta no muro da sede a espera que peçamos alguma coisa.
Prestativo no inicio das reuniões está pronto a colaborar com a chefia,
buscando materiais, limpando o pátio antes e depois das reuniões. Muitas vezes
quando venho à noite à sede, o encontro sentado no meio fio me esperando. Entra
e enquanto faço minhas obrigações ele fica a ver figuras na pequena biblioteca do
Grupo Escoteiro. Sempre empresto algum livro Escoteiro para ele levar para
casa. Ele sorri e me agradece. Enfim, nos acostumamos com ele, como se acostuma
com um... Ele ia dizer cão amigo, mas preferiu se calar. Acho que não era sua
intenção desmerecê-lo. O pouco que sabemos é que trabalha no moinho do
português (muito conhecido na cidade) e mora em um pequeno quarto alugado num
bairro afastado.
- Achei interessante, para mim inusitado. Os anos
passaram e de novo voltei ao Grupo a convite. Após os comprimentos e papos
agradáveis dei falta do Chefe Remo. Seu lugar onde ficava encostado à parede
estava vazio. Vi com espanto lágrimas nos olhos dos chefes e a tristeza nos
demais quando perguntei a respeito. - Ele desapareceu e não voltou mais.
Sentimos uma grande falta. Não tínhamos mais aquele que limpava que ficava a nossa
disposição como um servo sem salário, nunca reclamava, e pronto a ajudar. Chegamos
à conclusão que não demos o valor necessário ao um grande homem, a um grande Escoteiro
que foi sem nunca ter sido.
A falta que ele fez foi enorme. Nunca nos pediu nada, nem
nada exigiu. Os jovens sentiram seu afastamento. Aos poucos tinha conquistado o
coração de todos. Esperamos duas semanas e fomos ao moinho onde ele trabalhava.
O português nos informou que ele desapareceu do trabalho. Seu Manuel dono do
moinho foi com a policia ao quarto dele e nada encontrou. Convidou-nos a ir até
lá para vermos como era. Meu amigo foi uma punhalada no coração, pois o quarto
era uma linda sede escoteira, com um quadro enorme de BP pintado por ele, um quadro
de nós, de sinais, bandeirolas de semáforas penduradas na parede, uma colcha
bordada com flor de Liz jazia em sua cama e uma linda Bíblia aberta na pagina
onde se lia o salmo jazia acima de uma pequena cômoda. Ficamos chocados com
tudo. Nunca esperávamos isto.
Seu quarto era
limpo e bem arrumado. Não havia cartas, papeis nada que pudesse identificar de
onde era. Meses depois ficamos sabendo que ele tinha sido atropelado em uma
cidade próxima e falecido. O enterraram como indigente. Ele estava com o cinto
escoteiro e um dos investigadores resolveu fazer uma consulta à direção
escoteira do estado. Em vão. Ele não tinha registro. Alguém sugeriu consultar o
Grupo Escoteiro mais próximo. Passaram-se vários meses. Um pai que sempre ia
aquela cidade amigo de um policial ficou sabendo do que aconteceu ao Chefe
Remo. Um choque para todos nós. Alugamos dois ônibus e em um domingo fomos
todos do grupo até a cidade onde havia sido sepultado.
Em volta de sua campa simples fizemos uma oração, a
cadeia da fraternidade, todos chorando, engasgados dizendo com dificuldade que
não era mais que um até logo, e que um dia tornaríamos a nos ver. Ali, com os
olhos marejados de lágrimas, vimos um beija flor verde azulado, sozinho,
batendo asas em volta do seu tumulo, e enquanto permanecemos lá ele também
ficou, sem pousar, sem cansar. Não digo que seria um sinal, nada disto, eu
mesmo não acredito. Sou céptico com essas coisas. Ao retornar me senti culpado
por não ter dado a ele o que merecia. Ele fez por merecer. Nem mesmo sua
promessa fizemos. Voltamos silenciosos. Não havia canções, só as lembranças e a
tristeza no íntimo de cada um. Agora sabíamos que tínhamos conhecido um grande
escoteiro, um grande chefe, mas só demos o valor quando ele se foi. Não houve
medalhas, não houve certificados de gratidão. Nem um abraço um aperto de mão e
um simples agradecimento verbal. Só mesmo a lembrança ficou. Saudosa, dolorida
e que nunca mais vai ser esquecida por nós.
- Lembrei-me do que disse Jesus: Há muitas moradas na
casa de meu pai. Não teve aqui na terra o que merecia, mas lá em cima todos
devem reconhecer seu trabalho sem recompensas. Voltei para casa meditando. Era
um Escotista cumpridor de seus deveres. Não almejava nada. Fazia seu trabalho
sem esperar elogios. Era o lixeiro, o carregador, o apanhador de sonhos. Vi
então que a Lei do Escoteiro também é a lei do Chefe Escoteiro. Nunca mais
voltei lá. Não porque não quis, não houve oportunidade. Mas o chefe Remo ficou
marcado para sempre em minha memória.
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