sexta-feira, 20 de março de 2015

O meu último toque de silêncio!



Lendas Escoteiras.
O meu último toque de silêncio!

           Tony Blanco chorava copiosamente a minha frente ali naquele bar em uma travessa da Avenida São João. Não me lembrava do nome da travessa, mas ficava próximo ao número 300. – O Senhor se lembra Chefe Vado do Pintassilgo? – Claro que me lembrava. Ele e Tony Blanco eram amigos inseparáveis. – Pois é nunca tive um amigo fiel como ele. Amigo mesmo. De todas as horas. Éramos de Patrulha diferente da sua. Lembro que o Senhor era da patrulha Lobo e nós da Touro. Mas fizemos juntos muitos acampamentos. Lembra-se daquela jornada na Ilha do Cajuru? Foi demais não? – Eu lembrava. Minha mente passeava pelo passado. – Pois é Chefe Vado, desculpe chamá-lo assim. Não sou mais Escoteiro. Eu hoje não sou nada. Um molambo largado na vida. Não tenho família, amigos, nada e nem ninguém que se preocupe por mim.

            A vida sempre a nos reservar surpresas. Um filho me pediu para ir até a Santa Efigênia comprar uns itens de computador para ele. Quando desci do ônibus na São João senti que ia passar mal. Corri até um bar em uma travessa da avenida e pedi um copo de água mineral. O remédio estava comigo. Ajuda mas não muito. Depois tinha que sentar e respirar por alguns minutos. Foi então que o vi. Nada mais nada menos que Tony Blanco. Maltrapilho, sujo, cara lisa, mantinha o mesmo corpo forte do passado quando puseram nele o apelido de Maciste. Mas era uma sombra do passado. A última vez que o vi foi em 1976, em um Seminário Escoteiro em Juiz de Fora. Nunca mais nos encontramos. – Pois é Chefe faz tempo não? Mas ele não sorria. Tony me conte o que aconteceu ao Pintassilgo?

            Morreu Chefe. Morreu. Uma morte horrorosa. Ficamos juntos até 1990. Morávamos juntos, mas sempre mantendo a fleuma de amigos somente. Ele nunca me deixou. O Senhor sabe disto. Por causa dele não casei com a Das Dores. Gostava dela, mas mesmo aconselhando a ele arrumar uma namorada ele ria e dizia – Não quero. Se arrumar vou casar. Se casar você deixa de ser meu amigo. Olhe Chefe muitos interpretaram mal esta amizade. Acho que não entendem que para ser amigos de verdade não precisamos de subterfúgios. Basta gostar. Gostar de maneira simples, sem desejos, sem aspirações que não seja estar junto de quem gosta. Das Dores riu de mim quando disse isso a ela. Interpretou mal. Vim para São Paulo. Pintassilgo veio também. Comecei a trabalhar em uma construtora como Mestre de Obras. Ele também. Alugamos uma pequena casa no Bairro Cajuru. Pequena mas dava para nós.

             - Tony, você ainda toca o Clarim? Perguntei. Lembra quando eu e você nos exibíamos na “banda” do Grupo Escoteiro mostrando nossas qualidades? E quando formos servir no exército? Ficaram em dúvida entre eu e você ser o corneteiro da unidade. Ele me olhou e mesmo com os olhos marejados de lágrimas deu um pequeno sorriso e disse – O joguei fora. Tinha de jogar – Porque meu amigo? – Pintassilgo um dia desapareceu. Tentei encontrá-lo por toda a cidade. Perdi o emprego por que não ia trabalhar. Passou-se dois meses. Que falta Chefe eu sentia dele Chefe. Nada ajudava. Não conseguia emprego fixo. Fui para as ruas. Virei Morador de rua. Aqui e ali uns trocados. A vida ali é dura, mas hoje aprendi. Sei me virar.

               - Largou mesmo o escotismo? – Larguei. Cheguei a ajudar em um grupo próximo a minha casa. Mas senti dificuldade. Aqui se fazia tudo diferente. Gostava dos jovens, mas implicaram com Pintassilgo. Ele sempre junto. Falaram coisas que não gostei. Não entendiam o valor de uma amizade. – Olhe, eu fui a várias delegacias, lá zombavam de mim pelo que eu era. Fui a hospitais, Rodei em prontos socorros, fui ao IML e nada. Não dormia direito. Ainda tinha meu clarim guardado na caixa como quando comprei. Havia anos que não tocava. Um dia com minha carrocinha na descida da Avenida Angélica eu avistei o Nonô, o Senhor deve lembrar-se dele. Era Monitor da Pica Pau e sumiu também com sua família. Eu não sabia quem era ele. Não tinha cabelos e seu nariz fino e comprido não dava para esquecer. – Ele me viu e me reconheceu. Convidou-me para tomar uma cerveja e até pagou para mim um almoço. Fazia dois dias que não comia.

                 - Você soube o que aconteceu ao Pintassilgo? Ele disse. – Não! Conte-me. Faz cinco anos que estou procurando. – Morreu torturado por traficantes na Favela da Caixa D’água. – Chorei na hora. – Por quê? Porque meu Deus? – o confundiram com o Maneco Tiro Certo. Eram quadrilhas rivais. Você não sabe, mas sou investigador da 17º Delegacia. Fui ver uma denuncia anônima. Cortaram sua cabeça, seus braços e pernas. Depois atearam fogo. – Ficamos em silêncio por muito tempo. Eu não sabia o que dizer. – Depois perguntei – E onde foi enterrado? Acho que no Cemitério de Vila Alpina. – E você meu amigo, ainda nesta vida de morador de rua? – Conversamos mais algumas horas e ele se foi. Deixou-me um cartão. – Se precisar telefone disse, ainda somos irmãos escoteiros. Lembrei-me do Chefe Tonho que dizia – Um Escoteiro é sempre irmão. Nunca deixa um dos seus na mão.

                     - À tarde do dia seguinte fui até o cemitério de Vila Alpina. Tomei um banho no Albergue que fiquei hospedado. Coloquei meu uniforme Escoteiro. Estava guardado. Nunca me desfiz dele. Todos os mendigos de lá assustaram. Peguei um ônibus até Vila Alpina. A mocinha que me atendeu não tirava os olhos de mim. Disse-me onde ele estava enterrado. Joviel Peixoto. Eu sabia seu nome. Não havia sepultura. Um buraco. Mais nada. Pedi uma pá emprestada. Fiz uma tampa de terra. Tirei de outros túmulos um pouco de capim. Claro algumas flores também. Achei duas taboas. Fiz uma cruz. À mocinha me olhava de longe. Já estava escurecendo. Tirei da minha bolsa meu clarim. Meus olhos se encheram de lágrimas. A boca seca. Não conseguia tocar. Era demais! Estava engasgado!

                    - Chefe Osvaldo, eu o vi em pé na sepultura. Sorria, não disse nada, estava de uniforme Escoteiro. Brilhava na escuridão. Fez-me a saudação Escoteira. Desta vez toquei meu clarim com garra. E como toquei. O mais triste toque de silêncio que toquei em minha vida. – Sabe Chefe Osvaldo, eu vi, eu vi mesmo muitos que ali morreram ficarem de pé em suas sepulturas calados. Eu vi relâmpagos no céu. Eu vi uma estrela brilhante em cima de nós.
             
                    - Enquanto ele me contava o acontecido eu me lembrei de um pequeno poema que tinha lido – “Os clarins tocam pelos heróis, que morrem pela ignorância humana. O Silêncio é das vozes que se calam diante das injustiças e barbárie que são cometidas contra quem não pode por si, se defenderem”.  Eu conhecia o toque. O toquei milhares de vezes. É um toque triste. Fiquei ali com Tony. Eu também chorava. O bar vazio. Dei a ele meu cartão. Escureceu. Não podia mais comprar o que meus filhos pediram. Despedi-me dele oferecendo ajuda. – Obrigado Chefe Osvaldo. Obrigado. Já tenho o suficiente para viver minha vida de morador de rua. É minha sina. Aqui estou vivendo e aqui morrerei. Saiu me dando um aperto de mão e um Sempre Alerta.

                   - Falar mais o que?

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Era uma vez... Em uma montanha bem perto do céu...

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