Lendas
Escoteiras.
Rio
Negro, a cidade das sombras!
Um telegrama simples.
Dizia: “Gostaríamos de contar com sua presença nas festividades do Grupo
Escoteiro Enigma do Santo Sepulcro. Será dia 28 próximo em Rio Negro, a cidade
das sombras. Todas as despesas serão por nossa conta”. Mais nada. Que seria
isto? Alguma brincadeira? Eu recebia sim muitos convites para palestras e
pequenos cursos escoteiros em várias cidades. Mas aquele convite era
extraordinário. Na internet só descobri
uma cidade parecida próxima a Parecis, e mesmo assim diziam que a cidade não
existia mais. Deve ser alguma brincadeira pensei. Pitágoras o Comissário sempre
fazia isto comigo. Liguei para ele: - Não fui eu! Juro! Ele disse. Dei boas
risadas, mas fiquei inquieto, ou melhor, encucado com tudo aquilo.
Não dormi bem. Não tive
sonhos e nem pesadelos, mas acordei suando. Parecia que alguém dizia para eu ir
à estação Rodoviária comprar a passagem. Liguei para a região para me
informarem se tinha algum grupo com este nome. Riram na minha cara. Tirei o
carro da garagem e fui até a Rodoviária do Tietê. Nem bem entrei vi um homem de
paletó roxo, chapéu enterrado até os olhos, descalço, unhas enormes e com uma
placa – Passagens para Rio Negro. – Aproximei. Ele levantou o chapéu. Enormes
olhos negros. Um nariz comprido e afilado. Uma boca enorme cheia de dentes de
ouro. Não tinha orelhas. Nas mãos em cada uma dois dedos.
Tirou do bolso uma passagem. –
Mandaram-me entregar, o ônibus parte a meia noite. Terminal dois. O homem
desapareceu. Procurei em todos os guichês da rodoviária e nada. Informei-me
sobre a cidade. Ninguém conhecia.
Seja o que Deus quiser.
Não costumo me esconder de desafios. Iria lá nesta cidade fantasma. A final sou
um Escoteiro e o Escoteiro não foge dos desafios. Nunca! À noite já com minha mochila
e de uniforme social fui para a rodoviária. Eram onze e quarenta da noite. Lá
estava o morto vivo a minha espera. O “cara” era esquisito. Disse-me – Siga-me.
E lá fui eu. Descemos umas escadas, um corredor escuro, um vento húmido e frio
a soprar. Senti frio. Um frio que machucava. Vi o ônibus. Pequeno. Negro. Sem
nada escrito. Na placa Rio Negro. A porta aberta. Entrei. Ele pediu a mochila –
Vai no meu colo disse – Sentei bem à frente. Não tinha ninguém no ônibus. O
ônibus partiu em seguida. Só eu de passageiro. Alguém de voz rouca e cavernosa
começou a cantar a canção da Promessa. Dormi. Acordei com o dia amanhecendo.
Uma bruma cinzenta cobria minha vista. O ônibus parou. Desci. Suspirei fundo.
Um Chefe Escoteiro de uniforme. Brim roxo. Todo roxo. Um lenço negro com uma
caveira desenhada atrás. Sem sapatos. Descalço. Unhas enormes. Sempre Alerta
Chefe! Sou o Funério, seu assessor pessoal, disse. Venha comigo.
Um carro negro
fúnebre nos esperava. Atrás levava um caixão. Algum defunto para enterrar. A
cidade era coberta por uma bruma cinza e seca. Quase não se via as casas. Aqui
e ali pessoas atravessavam a rua devagar, como se estivessem pisando em brasas.
Não havia barulho. Nenhuma ave por perto. Não vi cachorro e nem gato. O carro
parou. Olhei o motorista. Sempre de costa. Um boné de couro preto. Abriu a
porta e sai. Estava em frente a um cemitério. Aqui? Perguntei. Ele se virou. O
rosto sem pele. Ou melhor, uma pele fina, mas só os ossos apareciam. – Não se
preocupe Chefe. A sede do grupo é linda. Foi toda construída pelos habitantes
do lugar. O Senhor vai gostar. Bragg! Comecei a tremer! Onde fui me meter? Ele
me pegou pela mão como se eu fosse uma criança. Fui com ele. Não tinha outra
saída. Nem sabia onde estava. Catacumbas e mausoléus enormes. Nomes estranhos.
Aqui jaz – Baldassari, morreu por falta de sangue – Em outro dizia: Aqui jaz,
Narkissa, a princesa beijada pelo Vampiro Damien. E assim se seguia. Meu Deus!
O lugar era misterioso, amedrontador.
Fechei os olhos, um medo
terrível. Abri. Lá estava a sede. Em letra góticas uma enorme placa: Grupo
Escoteiro Enigma do Santo Sepulcro. Enormes caixões enfeitavam o teto da sede.
Um belo esquife branco estava em pé, na porta e dentro um Chefe bem velho de
bigode e cabelos brancos e com a nova vestimenta da UEB. Estranhei. A tropa,
Alcatéia e os seniores formados na bandeira. Não havia bandeira nacional. Eram
bandeiras negras com escritos em grego e latim e desenhos de zumbis e cadáveres.
Um Chefe se aproximou. Bem vindo Chefe! Estamos tristes com sua chegada. Mas
não estão alegres? Falei espantado. Aqui Chefe é o contrário. Olhei a
escoteirada. Todos de uniformes negros e os lobinhos de roxo. Ninguém sorria.
Sérios. Como se estivessem mortos. Vi que nenhum dos jovens tinham olhos. Só um
buraco fundo. Putz! Onde fui me meter? Porque aceitei? Não havia volta. Um
zumbido e um grito e as bandeiras negras com símbolos vampirescos começaram a
ser içadas. Vampiros enormes voavam sobre nossas cabeças. Ao terminar não houve
oração. Olhei em uma catacumba mais alta e chacais davam uivos áulicos e
lamurientos. Achei que um deles o mais forte poderia ser Duamutef, o filho de
Hórus. Abraçaram-se todos os escoteiros e lobinhos e começaram a chorar. Todos
se lamentavam por haver morrido. Morrido? Eram mortos vivos? Pensei em correr
dali.
Pegaram-me pela mão. Levaram-me
até um alto mausoléu. Diziam que eu estava no campo santo. Em volta de mim vi
um jazigo cheio de ossos. Parecia que o cemitério estava acordando. Em cada
catacumba, em cada mausoléu, em cada cova uma mão, uma cabeça e logo uma
multidão de mortos em minha volta. Eram milhares. O Chefe do grupo me pediu
para fazer a palestra. Todos aguardavam ansiosos este momento. De que meu Deus!
Que palestra querem que eu faça? Nada sei do tal grande acampamento. Dizem que
lá ficam todos os escoteiros que morreram, mas eu? A última vez que fui a um
enterro faz anos! – Chamem Baden Powell. Ele entende disto melhor que eu! Não Chefe, nada disto. Todos aqui querem saber
como funciona a União dos Escoteiros do Brasil. Querem saber como funcionam as
alcateias. Querem nomes de akelás e chefes escoteiras que o Senhor conhece para
visitarem a meia noite. Todos se preocupam com as tropas. Querem nomes também. Pediram
sua opinião quem seria eleito este ano na Assembleia Nacional! Deus do céu! Que
era aquilo? Ajuda-me Baden Powell! Socorre-me almas escoteiras do outro mundo que
já se foram!
Chefe Patrulha Águia
convidando para o jantar. Chefe Patrulha Cucu convidando para o jantar. Chefe
Patrulha corvo se apresentando para avisar que o jantar está pronto. Acordei.
Abri os olhos. Obrigado meu Deus. Era apenas um sonho. Um pesadelo. Estava com
meus escoteiros num lindo acampamento. Vi o sol se pondo no horizonte. Bendito
sol! Vi o regato de águas límpidas logo ali. Vi um peixinho pulando nas
corredeiras. Graças a Deus. Graças a Deus. Ainda bem. Levantei-me. Espreguicei.
Dei um enorme sorriso de felicidade. Havia dormido no tempo livre dado a eles
para as refeições. Fui até o córrego lavar o rosto e me refrescar. Cantarolava
o Rataplã, agora sim, eu estava vivo e gostava de estar. Levantei peguei a
toalha para enxugar. Do outro lado do córrego, lá estava ele, o morto vivo da
rodoviária. – Disse alto com voz grossa cavernosa e fúnebre – Sempre Alerta
Chefe, à meia noite venho te buscar!
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