Lendas
Escoteiras.
João de Deus.
Dois dentes grandes o faziam
parecer um coelho quando sorria. Afável, gostava de um sorriso. Moreno cabelo
cortados com máquina zero. Fazia parte do lugar onde estava. Magro e pequeno
para sua idade de doze anos. Poderia ser Lobinho que ninguém viria à diferença.
Filho de Dona Maria Noêmia, mulher boemia que passava as noites onde ninguém
podia contar. Dificilmente ia visitar seu filho. Seu pai fugiu um dia e nunca
mais voltou. Ele sentia falta. Queria um pai. Olhava para Miro como se fosse seu
pai. O escotismo lhe deu outra vida outro motivo para voltar a viver. Esteve
internado havia dois anos. Suspeitavam de um câncer. Um tratamento de
quimioterapia nem sempre ajudava. Tossia, sentia dores tremendas no peito,
gritava de dor e os médicos sem nada poder fazer. Nunca esqueceu aquele dia que
Miro entrou na enfermaria. Na mão segurava um bastão com um totem do Tico-Tico.
– Gritou alto! – Quem quer ser de minha patrulha? João nem pestanejou. Gemendo
de dor se levantou. – Eu quero! – Disse.
Todo sábado pela manhã Miro
chegava, sempre só, sempre falando alto: - Patrulha em forma! João se levantava
com dores horríveis, mas formava com mais três. Leonel, Pedro e Josias. Josias
morreu cinco meses depois, Pedro ficou mais tempo na enfermaria até o dia que
saiu para operar e nunca mais voltou. Leonel morreu sorrindo no dia que a
patrulha ouvia a historia de Caio Vianna Martins que Miro contava com emoção.
Todos ouvindo atentamente. Ninguem viu Leonel escorregando da cama e caindo ao
chão. Chamaram as enfermeiras que o levaram. Também nunca mais voltou. A
patrulha teve mais dois patrulheiros novos na enfermaria que aceitaram entrar.
João contava nos dedos o dia de reunião. Aguardava ansioso. Miro um dia narrou
fazendo gestos como eram os acampamentos Escoteiros. As barracas, a mesa, as
poltronas de madeira a cozinha e o fogão de barro. João sorria um sorriso de um
jovem que sonhava em ser sem saber que nunca poderia ser um deles.
Ele imaginou como seria a
barraca, sorria pensando que estava dormindo em uma delas, como seria a mesa
que chamavam de pioneiria. Imaginou o fogão aceso, as brasas, a panela fazendo
arroz e a frigideira fritando ovo. Era lindo pensava. Um dia Miro não foi. João
de Deus sentiu tanta falta que chorou baixinho por muito tempo. Miro era seu
bastão, seu sonho que nunca se tornaria realidade. Dois sábados seguinte Pablo
chegou. Era o Sub. Monitor. Explicou que Miro foi operar na cidade grande.
Queria despedir, mas o Doutor do Hospital disse que não. Seria muito triste sua
despedida e não iria fazer bem para ninguém. Pablo era diferente. Pequeno,
olhos negros enormes como se tivesse forçando para ver. Mas era um Escoteiro
legal. Logo fez amizade com todos. Disse que a patrulha Tico-Tico não iria
acabar. Ele estava ali para levantar o bastão e darem o grito. João de Deus
sentiu saudades de Miro, mas voltou a sorrir o que não fazia há muito tempo.
Pablo ensinou a Canção da
Despedida. João gostou, mas achou muito triste. Preferiu o Cuco, a árvore da
montanha e adorava o Avançam as patrulhas. Pablo trouxe xerocado uma foto de
patrulhas correndo pelas campinas, com a bandeira do Brasil. Era do caderno
Avante. Lindo de morrer. João não tirava os olhos. O tempo todo ali olhando até
desligarem as luzes. Fechava os olhos e seu corpo era transportado para os
montes, para as montanhas, para as campinas e junto com seus companheiros eles
cantavam o Rataplã. Seu sonho era fazer a promessa, pois sabia a Lei de cor e
salteado. Um sábado também Pablo não veio. Ninguem explicou por que. Quem sabe
a enfermaria só com ele presente a patrulha não podia se reunir. Juca, Moisés,
Nonato também partiram para as estrelas conforme Dona Matilde a enfermeira
explicava a morte dos jovens enfermos.
Mas ele queria continuar
Escoteiro. Sabia que mesmo com um ele podia ser. Foi Miro antes de ir embora
quem disse que onde houver um Escoteiro tem uma Tropa. Ele não sabia o que era
Tropa, mas sabia que podia continuar amando sua patrulha e o escotismo. Um
sábado bem tarde apareceu um Escoteiro bem mais velho. Já com seus dezesseis
anos. Procurou João de Deus. Disse para ele que se chamava Rael. Não podia
ficar ali, pois o Diretor do Hospital proibiu. Achava que a patrulha estava prejudicando
muitos os meninos doentes e eles no último momento sempre pediam para dar o
ultimo grito de patrulha. Era impossível. Isto não ajuda contou Leo o Sênior. –
João, estou aqui a pedido de patrulha Tico-Tico. Ela está na porta do hospital.
Não deixaram eles entrarem. Só eu e me pediram para sair logo. Mandaram
entregar para você o Livro do Fundador do Escotismo. Baden-Powell O Escotismo
Para Rapazes. Eu mesmo comprei outro para presenteá-lo. O Caminho para o
sucesso também de B-P.
Leo partiu e João de Deus
começou a ler os livros que fizeram dele um Escoteiro diferente. Agora conhecia
tudo porque ele deveria ter sido um. Deveria ter acampado, deveria ter
conhecido trilhas e montes, deveria ter subido nos mais altos picos, deveria
ter acampado nas mais lindas florestas do Brasil. Seu sonho era sentar em volta
de um fogo, bater palmas, cantar sorrir e representar uma bela esquete. Quase não jantou naquele dia. Quando a luz
apagou ele chorou. Não queria parar de ler. Nunca na vida se sentiu assim.
Fechou os olhos devagar. Suas lagrimas caiam sobre a cama. Sentiu uma luz
azulada entrar no quarto. Viu um velhinho sorrindo para ele. Parou ao pé da sua
cama. Falou pausadamente o lema Escoteiro – Sempre Alerta João de Deus. Quer ir
comigo para o Grande Acampamento do céu? João de Deus parou de chorar. Olhou
para um lado e outro e viu centenas de patrulhas formadas. Havia uma, um jovem
sorrindo chegou até ele: - João vim buscar você. Era Miro. A Patrulha Tico-Tico
não é a mesma desde que você foi morar na terra!
Na vida real ninguém viu
uma enorme nuvem brilhante e alva sobre o Hospital. Uma linda estrela esperava
o menino João de Deus. O Doutor Tavares sentiu um calafrio. Correu até a
enfermaria e viu João de Deus de olhos fechados e sorrindo. Viu que ele estava
morto. Ninguem viu seu último suspiro, mas o Doutor Tavares sorriu pensando que
João de Deus morreu feliz. Na porta do hospital uma multidão de escoteiros de
mãos entrelaçadas cantava uma canção estranha para ele. Diziam que não era mais
que um até logo, não mais que um breve adeus. Completavam dizendo que breve
muito breve todos iriam se encontrar nos braços do Senhor.
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