Lendas
escoteiras.
O Corvo.
Ave ou demônio que negrejas! Profeta, ou o que quer que sejas! Cessa
ai, cessa! Clamei, levantando-me, cessa! Regressa ao temporal, regressa à tua
noite, deixa-me comigo. Vai-te, não fica no meu casto abrigo. Pluma que lembre
essa mentira tua, Tira-me ao peito essas fatais garras que abrindo vão a minha
dor já crua. “E o Corvo disse: “Nunca mais.” Edgar Allan Poe”.
Um acampamento, chefes em volta de uma
fogueira. A Tropa dormindo. Chefe Lávio contando esta historia. Com seu estilo
misterioso, chamas quase apagadas, pequenas fagulhas ciscavam o ar. Sua voz ribombou
como se não estive ali. - Nasci em Rio Vermelho... Abri os olhos e os ouvidos. Havia
motivos, a sua narrativa me prendeu. Até o Chefe Nevada um novato prestou
atenção. Escuro, céu estrelado, uma leve brisa soprando a sudoeste do
acampamento. Nada melhor que ouvir uma historia encantada por um Chefe que
sabia contar. Disseram-me que na Tropa tinha um apelido. O “Chefe que não ri”.
Olhar firme, rosto feito de mistérios, sua Tropa o adorava. Joguei minha manta
sobre os ombros. Olhei para o céu, uma estrela cadente saudou o acampamento dos
escoteiros. A aragem vinda da margem do rio Sucuri era gostosa e saudável. – tem
tempo... Muito tempo... Assim ele começou.
Contava
como se estivesse falando para o vento. Uma voz cantante, simpática como deve
ser em um bom contador de historias. – Foi em Monte Azul, uma pequena cidade no
interior de Mato Grosso do Sul. Vida simples, meninada solta nas ruas a soltar pipas,
a brincar com suas bolinhas de gude, abaixar a cabeça em sinal de respeito para
dona Marly ou dona Noêmia nossas professoras quando passavam. Na missa de
domingo a melhor roupa. Padre Thomaz na porta cumprimentava um a um. No púlpito
uma surpresa. Um calafrio correu na meninada presente – Amigos! Nossa cidade
vai organizar um grupo de Escoteiros. Inscrições abertas no Clube Remanso no
próximo sábado à tarde! Acordei às três da manhã. Coitado do meu pai. Papai! Vamos!
- Onde? Fazer minha inscrição. Nem almoçamos. Uma fila enorme. Chefe Noel
risonho cumprimentava a todos. A inscrição foi feita e tinha lista de espera. É
só alguns meses! Dizia. Voltei choroso, não fui dos primeiros escolhidos.
Esperei
três meses. Uma surpresa no sábado em que um Escoteiro uniformizado bateu em
nossa porta. A vaga do Lávio está aberta. Deve comparecer sábado às duas da
tarde. Almocei correndo. Carreguei meu pai pelas mãos. Meu primeiro dia. Indicado
para a Patrulha Corvo. Que orgulho. Seis patrulheiros. Agora era mais um. Leones
o Monitor nem sempre calmo com a gente. Gostei das reuniões, das atividades ao
ar livre, das primeiras jornadas no Morro do Cristal. No primeiro acampamento
em Águas Cantantes eu fiquei maravilhado. Achei que era um herói. Subir em
árvores, atravessar riachos, correr atrás de um macaco prego só para tirar uma
foto. Aprendi tudo sobre o corvo, símbolo de nossa patrulha. Seis meses depois me
considerava um veterano. Foi no acampamento em Morro Sião que tudo aconteceu. Uma
linda cascata formando um lago, peixes brigando para serem pescados. Eu gostava
de pescar. Aprendi com meu pai.
O acampamento
durou quatro dias. No terceiro estava programada uma jornada de seis
quilômetros até a Mina do Fantasma. Um pequeno mapa, um croqui bem feito, uma
bussola, e uma carta prego. Nela as instruções eram claras. Seguir rumo NNE,
encontrar uma seringueira virar para WSE. E seguir por cento e cinquenta metros
a contar no passo duplo. Sem erros. A Patrulha era boa nisto. Assim foi feito.
Havia uma passagem em um barranco estreito que dava para um enorme
despenhadeiro. Ficamos longe dele. O percurso era perfeito. A bussola indicava
sem erro. Ao orientar não achei a bússola. Eu era o responsável. Procurei no
bornal, na mochila nos bolsos nada. Deu vontade de chorar. Leones me olhou
espantado. Jair nem falou. Nonato o cozinheiro balançou a cabeça. – E agora? –
Pense Lávio, tente recordar. Nada. Assustados sem perceber caímos todos em um barranco
que ninguém tinha visto. Quase quarenta metros de queda. Caímos em um
espinheiro que feriu muitos escoteiros. Eu gritava de dor e meus companheiros
também. Com muito custo saímos numa ravina desconhecida.
E agora? Para onde ir? Onde estava a bússola? Todos
me olhavam e Leones o Monitor não sabia o que fazer. Ouvi ao longe um grasnado
de um corvo. “Croc, croc, croc”. Ele voava por cima de nossas cabeças, seguia
em uma direção e voltava. Porque ele fazia isto? Disse ao monitor que devíamos
seguir o corvo. Fui ridicularizado. - Monitor, insisti – Ele é nosso guia!
Nosso símbolo! Ninguem disse nada. Segui o corvo e a patrulha me seguiu. Com
dificuldades saímos do espinheiro, paramos próximo a um pequeno riacho para
tirar os espinhos. Para nós era o fim do jogo. Esquecemos o estojo de primeiros
socorros. Começou a escurecer. O corvo sempre voando sobre nossas cabeças e seguindo
em um direção. Perdemos a noção de tudo. Mas sempre seguindo o Corvo. Noite brava.
Sem lanternas tudo escuro. Não se via nada. Como estaria os chefes e as demais
patrulhas? Nos procurando? Deviam estar aterrorizados com nosso sumiço. Um frio
forte cortante e uma bruma da ravina nos pegou em cheio.
– Alguém tem
fósforos? Ninguém. – Lembrei-me do isqueiro que meu pai me deu. Fizemos uma
fogueira e deu para esquentar. Impossível dormir. Vi em um galho próximo o corvo.
Muitos dormiam. Sozinho cochilei e acordei com o corvo pousado em meu ombro.
Assustei e ele voou novamente. Antes do amanhecer partimos seguindo o corvo.
Duas horas depois avistamos o acampamento. Eu agradeci a Deus e quase chorando
todos nós nos abraçamos. Não houve gritos do Chefe nem gozação das demais
patrulhas. O Chefe preocupado nos parabenizou pela coragem. O corvo durante os
dias finais de campo sempre próximo ao nosso campo sempre voando e grasnando.
Croc. Croc. Croc. Na partida ele nos acompanhou por muitos quilômetros. Da
janela do ônibus eu o avistava e ele muitas vezes bicou os vidros querendo
dizer alguma coisa. Um sono pesado e dormi feito um anjo. Nunca mais achei a
bússola. No sábado seguinte no cerimonial fui convidado para dirigir a oração.
Fiquei no meio da Ferradura. – Quando iniciei parei. O corvo estava ali voando
em círculos sobre nós. Todos olhando espantados. Ele desceu até onde estava.
Pousou no meu ombro. Tinha preso no bico uma pena dourada. Voou para cima do
meu chapéu de três bicos. Colocou lá a pena e saiu voando e grasnando rumo sul.
Sumiu no céu azul daquela linda tarde de primavera para nunca mais voltar.
A
Tropa em silencio. A pena dourada coloquei entre a correia e meu chapéu. Fez
história a pena dourada do corvo. Tornou-se um mito. Lavrada no livro de Ata da
Patrulha. Histórias da saga do Corvo da Pena Dourada foram contadas durante
anos. - Olhei para o Chefe Lávio. Chefe Nevada também. Olhávamos para ele com ar
de incredulidade. Ele se levantou foi até sua barraca voltando em seguida. No
topo do seu chapéu de três bicos lá estava a pena dourada. Linda, nunca tinha
visto igual. Nunca mais duvidei de uma historia escoteira. Assim foi dito,
assim foi feito e assim será lembrado por todo o sempre!
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