Lendas Escoteiras.
A Árvore das folhas mortas.
Quando fiz cinco anos
meu pai olhando nos meus olhos contou a história da árvore que ele plantou no
quintal de nossa casa quando eu nasci. Era um Jequitibá e em cinco anos se
tornou uma linda árvore. Enorme, folhada, com quatro galhos espalhados para
cada ponto cardeal. – Meu filho nunca lhe contei porque plantei este Jequitibá,
é uma historia antiga, dos tempos do quilombo dos Palmares. Meu avô ouviu esta
história de seu pai que a recontou para todos seus filhos daí em diante. Dizem
que havia nesse tempo, um Velho Escravo que andava pelas praias a apanhar
destroços dos navios recolhia e os enterravam longe das praias. Um destes
destroços ganhou raízes e reviveu em árvore. Era um Jequitibá. Quando ela
cresceu ele disse para seu filho: - Eu sou essa árvore, venho dos destroços de
outro mundo. Aqui é meu chão e minhas raízes nasceram aqui.
Não entendi bem a
história e só mais tarde fui entender o porquê meu pai plantou o Jequitibá
quando nasci. Meu pai era para mim um sábio. Descendente de um escravo do
Quilombo dos Palmares, ele se orgulhava de sua raça. Todos nós, eu ele e minha
mãe éramos negros. Ele um Professor escolar que se orgulhava de sua missão e
profissão. Minha mãe uma costureira, simples sem afetação. Meu pai todas as
tardes de sol nos convidava a sentar a sombra do Jequitibá. Ali nós três
ficamos em silêncio até que ele começasse a contar uma história de seus
antepassados. Eu adorava meu pai e minha mãe. Ele fez com as próprias mãos dois
bancos em baixo do Jequitibá. – Um era para ver o nascer do sol de um lado e o
outro o por do sol. Um dia disse que cada galho da árvore representava um de
nós. – Pai! São quatro galhos e nós somos três! – Pois é meu filho, breve você
terá mais um irmão! Sorri, meu coração bateu. Sentia-me só, muito só e ter um
irmão era um sonho que nunca tive.
Joselito nasceu
quando eu fiz sete anos. Fiquei dias ali na porta do hospital esperando conhecê-lo,
pois meninos não podiam entrar. Em casa foi uma alegria imensa. Não sai de
perto de seu berço. Eu na minha inocência de criança contava para ele às
histórias que meu pai me contava. Minha mãe sorria e nada dizia. Quando as
tardes meu pai nos convidava para assentar ao pé do Jequitibá, eu fazia questão
de ter Joselito no meu colo. Ele era pequeno, magro, e meus pais estavam muito
preocupados. Os médicos disseram que ele tinha uma doença muito grave no
coração. Não iria viver muito tempo. Eu queria chorar, mas meu pai não deixou.
– Filho, deixe para chorar quando ele se for, agora é momento de alegria.
Façamos tudo para tornar sua vida um sonho possivel e não impossível. Eu sorri,
meu pai sabia o que dizer.
Quando Joselito fez
onze anos, me chamou para sentar ao pé do Jequitibá e com os olhos rasos d’água
me disse que queria ser Escoteiro. Tentei pensar como iria lhe dizer que não
era possivel. Ele não podia correr, não podia fazer coisas que eles faziam. Mas
não disse nada. – Olhei dentro dos seus olhos e disse: - Você vai ser um! Eu e
meu pai o levamos até o grupo. Eu pensei em explicar a todos sua vontade de
viver, de ser mais um, de sua doença incurável, mas sabíamos que não podíamos.
Ele tinha de aprender por si mesmo nem que isto fosse seus últimos dias aqui na
terra. O Chefe Norman ficou em dúvida. Era uma experiência nova e ele não sabia
como proceder. Meu pai o olhou e disse que tudo que acontecesse ele nunca seria
o responsável, mas que desse liberdade para ele tentar ser como os demais. Na
patrulha Cuco Montanha o Monitor tentou ajudar, mas como? Não era um bom
Monitor. Mas Joselito com sua bondade estampada nos olhos não se amedrontou.
Naquele domingo,
a família sentada ao pé do Jequitibá, Joselito disse que ia acampar. Minha mãe
levou um susto. Achou que ele não ia aguentar. Eu também me preocupei, mas não
dissemos nada. Não existiu nada mais belo para Joselito que os preparativos, a
saída o acampamento e o retorno. Quem o visse chegando iria pensar que agora
ele estava bom, não tinha mais nada. Nunca iria morrer como os médicos
disseram. Todos nós notávamos como a Tropa Escoteira mudou. A alegria de
Montanha na patrulha era outra. O Chefe Norman aprendeu a sorrir. Pareciam uma
grande família onde todos zelavam por todos. Quatro anos depois seria a
passagem de Joselito para os seniores. Sua rota estava pronta. Eu não entendia
porque ele agora não sorria mais. Quando as tardes sentávamos ao pé do
Jequitibá meu pai e minha mãe contavam histórias, e eu nem prestava atenção nelas.
Meus olhos se voltavam para Joselito. Sem saber como ele sabia que sua hora
estava chegando.
Joselito
morreu dois meses depois. Morreu sentado ao pé do Jequitibá, sozinho antes do
meio dia. Ele não foi à escola naquele dia, queria morrer onde viveu. Nunca vi
tanto sentimentos tantas saudades, tantos sonhos que não foram realizados.
Quando ele em seu esquife desceu naquela tumba fria, um vento frio sacolejou
por todo o campo sagrado. Escoteiros se assustaram, seus colegas de classe
correram. Uma chusma de folhas verdes bailavam no ar. Eu fiquei por muito tempo
ali em sua tumba querendo chorar e não podia. Meu pai veio me buscar. Ao chegar
em casa vi que um galho do Jequitibá tinha perdido todas suas folhas. Era o
galho de Joselito, ele se fora e as folhas foram com ele. Um ano depois minha
mãe morreu de desgosto. Ela mesma me disse que não podia suportar a falta que
Joselito lhe fazia. Ao voltar do campo santo notamos eu e meu pai que outro
galho do Jequitibá também perdeu suas folhas.
Sentar ao pé
do Jequitibá não era como antes, mas eu e meu pai fazíamos questão de estar
ali. Nunca contamos um para o outro nossos sentimentos, nossas dores nossos
amores que se foram. A perda nos machucou enormemente. O Jequitibá ainda tinha
folhas, do galho do meu pai e do meu. Aos setenta e cinco meu pai se foi. Eu
era homem feito. Trabalhava no hospital da cidade como administrador, função
que me formara a muitos e muitos anos. De novo mais um galho do Jequitibá
perdeu suas folhas. Ficou só o meu galho. Eu todas as tardes que estava em casa
olhava para ele e dizia: - Jequitibá meu amigo, quando vai chegar a minha vez?
Nunca abandonei meu lar. Não casei. Não queria passar minhas tristezas para uma
segunda pessoa. Não queria ter filhos e perdê-los como perdi Joselino. Uma
tarde sentado ao é do Jequitibá fechei os olhos. Não sabia se era sonho ou se
era uma ilusão. Na minha frente um lindo jardim com flores lindas, correndo
entre as samambaias, vi um enorme Jequitibá florido, lá em um banco, meu pai
minha mãe e Joselito me acenavam.
Dona Maria
Bonita nossa vizinha me viu sentando no banco. Notou que eu não mexia com o
corpo. Chamou a ambulância. Eu estava morto. No alto meu galho do Jequitibá
deixou a ultima folha verde cair e ser levada por uma brisa daquela tarde
faceira, onde encontros e desencontros se revelariam em uma enorme estrela
brilhante no céu!
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