Lendas Escoteiras.
O último toque de silêncio!
Tony Blanco chorava
copiosamente a minha frente em bar de uma travessa da Avenida São João. – O Senhor
se lembra Chefe Vado do Pintassilgo? – Claro que me lembrava. Ele e Tony Blanco
eram amigos inseparáveis. – Pois é nunca tive um amigo fiel como ele. Amigo
mesmo. De todas as horas. Éramos de Patrulha diferente da sua. Lembro que o
Senhor era da patrulha Lobo e nós da Touro. Mas fizemos juntos muitos
acampamentos. Lembra-se daquela jornada na Ilha do Cajuru? Foi demais não? – Eu
lembrava. Minha mente passeava pelo passado. – Pois é Chefe Vado, desculpe
chamá-lo assim. Não sou mais Escoteiro. Eu hoje não sou nada. Um molambo
largado na vida. Não tenho família, amigos, nada e nem ninguém que se preocupe
por mim.
A vida é uma surpresa atrás da outra. Havia
anos que não ia ao centro e eis ao descer do ônibus na São João senti que ia
passar mal. Corri até um bar em uma travessa da avenida e pedi um copo de água
mineral. O remédio estava comigo. Ajuda mas não muito. Ficar imóvel e respirar
bastante para voltar ao normal. Foi então que o vi. Nada mais nada menos que
Tony Blanco. Maltrapilho, sujo, cara lisa, mantinha o mesmo corpo forte do
passado quando puseram nele o apelido de Maciste. Mas era uma sombra do
passado. A última vez que o vi foi em 1976, em um Seminário Escoteiro em Juiz
de Fora. Nunca mais nos encontramos. – Ele me reconheceu. Muitos abraços e seus
olhos rasos d’água. Pois é Chefe faz tempo não? Mas ele não sorria. Tony me
conte o que aconteceu ao Pintassilgo?
Morreu Chefe. Morreu.
Uma morte horrorosa. Ficamos juntos até 1990. Morávamos juntos, mas sempre
mantendo a fleuma de amigos somente. Ele nunca me deixou. O Senhor sabe disto.
Por causa dele não casei com a Das Dores. Gostava dela, mas mesmo aconselhando
a ele arrumar uma namorada ele ria e dizia – Não quero. Se arrumar vou casar.
Se casar você deixa de ser meu amigo. Olhe Chefe muitos interpretaram mal esta
amizade. Acho que não entendem que para ser amigos de verdade não precisamos de
subterfúgios. Basta gostar. Gostar de maneira simples, sem desejos, sem
aspirações que não seja estar junto de quem gosta. Das Dores riu de mim quando
disse isso a ela. Interpretou mal. Vim para São Paulo. Pintassilgo veio também.
Comecei a trabalhar em uma construtora como Mestre de Obras. Ele também.
Alugamos uma pequena casa no Bairro Cajuru. Pequena mas dava para nós dois.
- Tony, você ainda
toca o Clarim? Perguntei. Lembra quando eu e você nos exibíamos na “banda” do
Grupo Escoteiro mostrando nossas qualidades? E quando formos servir no exército?
Ficaram em dúvida entre eu e você ser o Cabo Corneteiro da unidade. Ele me
olhou e mesmo com os olhos marejados de lágrimas deu um pequeno sorriso e disse
– O joguei fora. Tinha de jogar – Porque meu amigo? – Pintassilgo um dia
desapareceu. Tentei encontrá-lo por toda a cidade. Perdi o emprego por que não
ia trabalhar. Passou-se dois meses. Que falta Chefe eu sentia dele Chefe. Nada
ajudava. Não conseguia emprego fixo. Fui para as ruas. Virei Morador de rua.
Aqui e ali uns trocados. A vida ali é dura, mas hoje aprendi. Sei me virar.
- Largou mesmo o
escotismo? – Larguei. Cheguei a ajudar em um próximo a minha casa. Mas senti
dificuldade. Era tudo diferente do que conhecia. Gostava dos jovens, mas
implicaram com Pintassilgo. Ele sempre junto. Falaram coisas que não gostei.
Não entendiam o valor de uma amizade. – Olhe, eu fui a várias delegacias, lá
zombavam de mim pelo que eu era. Fui a hospitais, Rodei em prontos socorros, fui
ao IML e nada. Não dormia direito. Ainda tinha meu clarim guardado na caixa.
Havia anos que não tocava. Um dia com minha carrocinha na descida da Avenida
Angélica eu avistei o Nonô, o Senhor deve lembrar-se dele. Era Monitor da Pica
Pau e sumiu também com sua família. Eu não sabia quem era ele. Não tinha
cabelos e seu nariz fino e comprido não dava para esquecer. – Ele me viu e me
reconheceu. Convidou-me para tomar uma cerveja e até pagou para mim um almoço.
Fazia dois dias que não comia.
- Você soube o que aconteceu ao
Pintassilgo? Ele disse. – Espantado pedi a ele para me contar. Faz cinco anos
que estou procurando. – Morreu torturado por traficantes na Favela da Caixa
D’água. – Chorei como um bebê. – Por quê? Porque meu Deus? – o confundiram com
o Maneco Tiro Certo. Eram quadrilhas rivais. Você não sabe, mas sou
investigador da 17º Delegacia. Fui ver uma denuncia anônima. Cortaram sua
cabeça, seus braços e pernas. Depois atearam fogo. – Ficamos em silêncio por
muito tempo. Eu não sabia o que dizer. – Depois perguntei – E onde foi
enterrado? Acho que no Cemitério de Vila Alpina. – E você meu amigo, ainda
nesta vida de morador de rua? – Conversamos mais algumas horas e ele se foi. Deixou-me
um cartão. – Se precisar telefone disse, ainda somos irmãos escoteiros. Lembrei-me
do Chefe Tonho que dizia – Um Escoteiro é sempre irmão. Nunca deixa um dos seus
na mão.
- À tarde do
dia seguinte fui até o cemitério de Vila Alpina. Tomei um banho no Albergue que
fiquei hospedado. Coloquei meu uniforme Escoteiro. Estava guardado. Nunca me
desfiz dele. Todos os mendigos de lá assustaram. Peguei um ônibus até Vila
Alpina. A mocinha que me atendeu não tirava os olhos de mim. Disse-me onde ele
estava enterrado. Joviel Peixoto. Eu sabia seu nome. Não havia sepultura. Um
buraco. Mais nada. Pedi uma pá emprestada. Fiz uma tampa de terra. Tirei de
outros túmulos um pouco de capim. Claro algumas flores também. Achei duas
taboas. Fiz uma cruz. À mocinha me olhava de longe. Já estava escurecendo.
Tirei da minha bolsa meu clarim. Meus olhos se encheram de lágrimas. A boca
seca. Não conseguia tocar. Era demais! Estava engasgado! - Chefe Osvaldo, eu o
vi em pé na sepultura. Sorria, não disse nada, estava de uniforme Escoteiro.
Brilhava na escuridão. Fez-me a saudação Escoteira. Desta vez toquei meu clarim
com garra o toque de Silencio mais tristonho da minha vida. E como toquei. Chorava
copiosamente ao terminar.
– Sabe Chefe Vado,
eu vi, eu vi muitas almas que ali morreram ficarem de pé em suas sepulturas
calados. Eu vi relâmpagos no céu. Eu vi uma estrela brilhante em cima de nós. -
Enquanto ele me contava o acontecido eu me lembrei de um pequeno poema que
tinha lido – “Os clarins tocam pelos heróis, que morrem pela ignorância humana.
O Silêncio é das vozes que se calam diante das injustiças e barbárie que são
cometidas contra quem não pode por si, se defenderem”. Eu conhecia o toque. O toquei milhares de
vezes. É um toque triste. Fiquei ali com Tony. Eu também chorava. O bar vazio.
Dei a ele meu cartão. Escureceu. Esqueci o que pretendia comprar na Santa Efigênia.
Despedi-me dele oferecendo ajuda. – Obrigado Chefe Osvaldo. Obrigado. Já tenho
o suficiente para viver minha vida de morador de rua. É minha sina. Aqui estou
vivendo e aqui morrerei. Saiu me dando um aperto de mão e um Sempre Alerta. -
Falar mais o que?
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